Meval Pereira
DEU EM O GLOBO
A profunda divergência que existe entre a maioria da bancada petista do Senado e o presidente Lula com relação à permanência do senador José Sarney à frente do Senado reflete a diferença de visão que os dois lados têm sobre a eleição de 2010, embora não seja tão forte a ponto de fazer com que o PT se rebele contra seu criador. O máximo que a bancada conseguirá é não ser obrigada a dar uma declaração formal de apoio a Sarney, e fingir que nada aconteceu, na esperança de que os eleitores se esqueçam deste e de outros episódios.
Para começar, as divergências surgiram na escolha da candidata petista à sucessão de Lula, a ministra Dilma Rousseff, imposta ao partido por Lula, que tirou seu nome do bolso do colete há mais de dois anos, e vem trabalhando com afinco sua identificação junto ao eleitorado não com o PT, mas consigo mesmo.
Assim como Lula tem como objetivo prioritário eleger sua sucessora, os senadores do PT têm outro objetivo: nove dos doze da atual bancada vão tentar a reeleição, e, na maior parte, são políticos de voto de opinião, que não se beneficiarão diretamente da mudança de público operada por Lula nos últimos anos.
Com essa mudança, que fortaleceu sua imagem política no Norte e no Nordeste do país, é importante o apoio do PMDB mais até do que o do PT, já que há um consenso em torno do eleitorado ideológico petista, que dificilmente deixará de votar no candidato do partido, seja ele quem for.
Esse eleitorado, pelas pesquisas, gira em torno de 20% do total, e Dilma Rousseff já está praticamente com ele garantido. O eleitorado chamado "de esquerda" tem cerca de 30% dos votos, e essa diferença de 10% é que Dilma disputará com o governador de São Paulo, José Serra, e com outros eventuais candidatos que se apresentem, como Ciro Gomes, do PSB.
Portanto, para vencer a eleição o candidato petista terá que fazer o que Lula já fez a partir da eleição de 2002, correr atrás dos 30% do eleitorado que, não sendo de esquerda, pode eventualmente votar num candidato esquerdista "palatável", no que Lula se transformou pelas graças do marqueteiro Duda Mendonça.
A partir daí, ele mesmo tratou de aprofundar sua relação com as oligarquias políticas no governo, e é por isso que está tão empenhado na defesa de Sarney e na manutenção da parceria política com o PMDB.
Da mesma maneira, tratou com a mesma dose de atenção os que estavam abaixo da linha de pobreza e os "do andar de cima", conseguindo a proeza de agradar aos dois, o que não é ruim se as doses de bondade distribuídas forem sustentáveis, o que é discutível.
O cientista político Cesar Romero Jacob, da PUC do Rio, vem fazendo há anos estudos sobre as transformações da geografia eleitoral dos candidatos a presidente. Seus estudos mostram que para se ganhar eleição no Brasil, o candidato não pode deixar de lado as oligarquias que dominam os grotões, os pastores pentecostais e os políticos populistas das periferias metropolitanas pobres.
As oligarquias continuam sendo as máquinas eleitorais nos grotões do país, e os trabalhos do professor Cesar Romero indicam que o programa Bolsa Família, em vez de ter substituído as oligarquias nos grotões, transformou-se em mais um instrumento dessas oligarquias, manipulado pelas prefeituras.
Os programas assistencialistas do governo como o Bolsa Família fizeram do Nordeste a base do lulismo, e alteraram a oratória eleitoral do próprio Lula, que trocou a ênfase em sua origem operária pela do pobre nordestino. Uma sutileza que o distancia do PT do voto de opinião e o aproxima do populismo e das máquinas oligárquicas, porque nos municípios pobres as oligarquias não têm ideologia, e o chamado "voto de opinião" fica para as classes médias urbanas das cidades grandes e médias.
Em 2002, os mapas de Cesar Romero já mostram que a capilaridade da candidatura de Lula cresce para o interior do país graças às alianças com as oligarquias políticas.
Todos esses movimentos políticos não acontecem por acaso, representam o lulismo em ação, para um segundo mandato acima dos partidos e baseado nos programas assistencialistas que lhe deram a reeleição.
Lula teve 17% da votação em 1989, 27% em 1994 e 32% em 1998, um "crescimento endógeno", somando os votos da esquerda, na definição de Cesar Romero: se somar os 17% de Lula com os 16% de Brizola em 1989, dá 33%; em 1994, os 27% do Lula com os 3% do Brizola dá 30%; e Brizola e Lula juntos em 1998 somam 32%.
Quando o presidente Lula alcança esse ponto, se afirmando como o principal líder de esquerda, para chegar à Presidência ele tem que fazer um movimento para o centro, e foi o que aconteceu em 2002.
O PT seguiu quase que involuntariamente esse traçado lulista, e cresceu no Nordeste, onde ganhou diversos governos estaduais, e caiu no Sudeste.
Atualmente, tem dificuldade até mesmo de ter um candidato ao governo de São Paulo para a disputa de 2010 e não existe no Rio de Janeiro, onde há uma intervenção branca para garantir o apoio do partido ao governador do PMDB Sérgio Cabral.
É esse o partido que se transformou em mero fantoche do presidente Lula, infestado de fisiológicos, mensaleiros e aloprados de todos os calibres, que disputam um lugar na máquina administrativa em busca de consolo para a utopia perdida, se é que houve utopia um dia. Parece irreversível sua peemedebização.