quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Opinião do dia || Míriam Leitão*

O ministro Paulo Guedes tem declamado que “foram 30 anos de social-democracia e apenas seis meses de liberal-democracia”. Ele sabe que os últimos 30 anos não foram homogêneos. Do ponto de vista econômico, há muita diferença entre o governo Fernando Henrique, que privatizou e enxugou a máquina, e o governo do PT que criou estatais e inchou a máquina. Michel Temer tomou muitas decisões que ajudaram o governo atual. A maior abertura ocorreu com Fernando Collor. E ainda não vimos a cara da liberal-democracia até o momento. Um governo que quer impor uma cartilha fundamentalista na educação e nos costumes, esconder estatísticas desfavoráveis e definir até a propaganda do Banco do Brasil não é liberal. E é cada vez menos democrático.

*Míriam Leitão é jornalista. ‘Por que o país parou no semestre’, O Globo, 14/8/2019

Gilvan Cavalcanti || Um olhar no pensar e no agir

- Revista Política Democrática

Penso que uma revisita às ideias dos pensadores clássicos do passado ajudaria a pensar o novo mundo e o Brasil, em sua interconexão digital, fenômeno mais visível das mudanças contemporâneas, e poderá evitar se pensar e agir politicamente na tentativa de um retorno ao velho, ao antigo, como se novo fosse.

Há um consenso que o mundo material não é estático. Os pensadores clássicos, da Grécia antiga, já anunciaram: “Tudo flui” e “nada” é permanente, exceto a mudança”. Nos tempos modernos, com o surgimento do capitalismo, outro pensador sentenciou: “Tudo que é sólido desmancha no ar”. O movimento da história já comprovou essa tendência. É incessante e permanente a mudança, inclusive na ciência e na tecnologia. No pensamento e no agir político, ocorre o mesmo processo continuo de mudança, conflito, interdependência globalista, ou como outros preferem, cosmopolita.

É o instante de pensar o nosso compromisso com o País. Isto sugere tentar desvendar essa complexa sociedade brasileira. Acredito que devemos partir dos elementos embrionários que definam nosso processo de afirmação do capitalismo brasileiro, seu êxito nesses longos anos de profundas modificações moleculares ocorridas. Entender esse caminho facilitaria muito o nosso caminhar futuro. E só a democracia política é o porto seguro para um pensamento reformista. O caminho mais real é debruçar-nos sobre a conjuntura.

Como fazê-lo? Os clássicos da política já nos forneceram algumas sugestões, pelo menos metodológicas, para se analisar e fazer previsões e perspectivas. Posso lembrar algumas: Sócrates, na antiga Grécia, nos falava de persuasão, como arte política do discurso, dirigida à multidão; Maquiavel nos ensinou as relações da política com sua conexão de Virtú e Fortuna; Hegel nos advertiu que a cidadania tinha um conhecimento defeituoso; Montesquieu nos ensinou que o senso comum dobrava-se aos pensamentos e impressões de outrem; Tocqueville nos legou a relação circunstância e providência; Marx nos deixou as análises das relações entre estrutura e superestrutura; Lênin utilizava-se de estratégia e tática; Gramsci diferenciava o permanente e o eventual, o orgânico e o ocasional.

Estas ideais clássicas chegaram ao seu ponto mais avançado com a filosofia clássica alemã (Kant, Hegel e Feuerbach); a economia política inglesa (A. Smith e Ricardo); e o pensamento político de Maquiavel, Locke, Montesquieu, os teóricos da Revolução Francesa e Americana, o socialismo de Saint-Simon e Fourier.

Marx e sua filosofia da práxis entrou em cena com a tentativa de resolver os problemas mais avançados da humanidade. Surgia como a continuação direta e imediata dos maiores representantes da filosofia, da economia política e do socialismo. Procurava dar aos homens uma concepção unitária do mundo, que não poderia conciliar com nenhuma superstição. Apresentava-se como o sucessor de tudo aquilo que o gênero humano criou de melhor no século XIX. É conhecida sua tese inicial: ‘Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo’.

Já no século XX, Gramsci, em um balanço severo, afirmou que a filosofia da práxis tinha duas tarefas: a) superar o pensamento moderno em suas formas mais refinadas; b) persuadir o senso comum, cuja cultura era medieval. Esta segunda função absorveu todo o esforço tanto quantitativo quanto qualitativo. Por várias razões essa persuasão se confundiu com uma forma de cultura, um pouco superior à mentalidade do senso comum, incapaz, portanto, de superar a mais alta manifestação cultural do seu tempo. Já outro italiano, pois o dedo na ferida. Nos idos de 1970, Berlinguer, então secretário do PCI, afirmava, em Moscou: ‘a democracia é um valor permanente e universal’. O resultado da história é por demais conhecido.

William Waack || A semelhança entre Brasil e Argentina

- O Estado de S. Paulo

Governos de esquerda pioraram os problemas, os de direita precisam provar que vão resolvê-los

É quase irresistível a tentação de dizer que Argentina e Brasil são espelhos de si mesmos. Os dois vizinhos tiveram seus populistas históricos cujas sombras políticas se projetam até hoje (Peron e Vargas). Desenvolveram Estados balofos que extraem desproporcional parte da riqueza gerada nos respectivos territórios – sem terem sido capazes de conduzir as respectivas economias para crescimento em bases sustentáveis. A Argentina era rica e ficou pobre, e o Brasil não conseguiu ficar rico.

Há notórias diferenças, até anedóticas. O argentino tende a assumir que o melhor ficou no passado, enquanto o brasileiro acha que o melhor estará no futuro. Ainda assim há grandes paralelos na linha do tempo entre os dois países. Brasil e Argentina experimentaram rupturas políticas em épocas muito próximas, passaram por ditaduras militares e “guerras sujas” de feições similares (ainda que de diferentes intensidades de trauma e violência), voltaram a regimes civis em períodos simultâneos, arcaram com graves crises de endividamento, recessão e, mais recentemente, com regimes de grotesca irresponsabilidade fiscal, em boa parte culpados diretos pelas dificuldades econômicas que ambos enfrentam.

Significa que o fracasso do governo argentino em implementar reformas econômicas estruturantes e, como consequência, a provável derrota eleitoral de uma proposta de liberalização da economia – e a volta pela urna ao descalabro de um regime populista de “esquerda” – é o espectro que ronda o Brasil? Claro que jamais se pode excluir o que ainda não aconteceu, assim como não se pode confiar na inevitabilidade do que virá, mas há algo que torna os destinos de Brasil e Argentina tão parecidos: é um desafio comum que não conseguiram resolver.

João Domingos || A Lava Jato sob controle externo

- O Estado de S. Paulo

A Lava Jato continua, mas submetida a um controle rígido tanto da parte do STF quanto da Procuradoria da República e do Conselho Nacional do Ministério Público.

Algumas conclusões podem ser tiradas das recentes decisões da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e do Conselho Nacional do Ministério Público em relação à Lava Jato.

Em primeiro lugar, ao decidir prorrogar a atuação da força-tarefa de procuradores da Lava Jato por mais um ano, Raquel deixou claro que a operação não está em risco, ao contrário do que muitos especulam. Dissolver a força-tarefa seria um erro político gigantesco.

A procuradora-geral, que sonha com a recondução, jamais faria isso. Mas ela aproveitou a decisão para lembrar aos procuradores que eles precisam agir dentro da legislação. O que é um puxão de orelhas sem tamanho em todos eles.

Em segundo lugar, ao reabrir ontem uma reclamação contra Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa, por causa da divulgação das mensagens que teriam sido trocadas entre ele, colegas, políticos e o então juiz Sérgio Moro, o CNMP impõe uma espécie de sanção antecipada ao mais famoso procurador da Lava Jato. Qualquer ato dele fora dos padrões pode levar a uma punição.

Ao mesmo tempo, o presidente do STF, Dias Toffoli, tem usado palestras e participações em eventos para exigir que a forçatarefa atue dentro do que determina a Constituição. Ou que pare de criticar o STF. A ponto de dizer que a Lava Jato só existe por causa do Supremo Tribunal Federal.

Em resumo, a Lava Jato continua. Mas submetida a um controle rígido tanto da parte do STF quanto da Procuradoria da República e do CNMP.

Vera Magalhães || Bolsonaro adia escolha do PGR

- O Estado de S. Paulo

A disputa pela Procuradoria-Geral da República embolou, e Jair Bolsonaro deve adiar a escolha do sucessor de Raquel Dodge.

Para tudo. O presidente fez um gesto na direção do subprocurador-geral José Bonifácio de Andrada, que entrou no páreo depois que o favoritismo do também subprocurador Augusto Aras foi abalado por uma campanha contra por parte de pessoas próximas ao presidente. O Planalto confirmou que a escolha, antes prevista para se dar até esta sexta-feira, deverá ficar para a próxima semana.

Climão. No interior do Ministério Público Federal, o clima é de apreensão. O desprezo demonstrado pelo presidente em relação à lista tríplice da categoria e a imprevisibilidade quanto ao critério que vai, afinal, definir a escolha, levam incerteza aos procuradores quanto à continuidade de investigações e procedimentos e à acolhida interna que o indicado terá.

Gestos. Ainda no páreo, Raquel Dodge segue fazendo gestos em direção ao governo. Deu parecer pelo arquivamento de uma representação que pedia abertura de investigação contra Sergio Moro no âmbito da Operação Spoofing. Isso depois de evidências de que segurou investigações que tinham o próprio Bolsonaro como pivô, como a denúncia de que abrigou funcionária-fantasma em seu gabinete de deputado.

Congresso. Enquanto isso, no Legislativo, a pauta econômica avança, a despeito da ausência de uma base parlamentar formal. Sinal de que Bolsonaro estava certo e “reinventou” a articulação política? Apoiadores do presidente dirão que sim, mas o fato é que a agenda econômica tem mais aderência no Parlamento que os demais projetos, entre eles os relativos a segurança e à pauta de costumes (que avançam a passos lentos ou sofrem derrotas).

Morde e assopra. Além disso, ao mesmo tempo em que votam matérias como a reforma da Previdência e a MP da Liberdade Econômica, deputados investem num grito de independência, avançando com projetos próprios, discutindo a limitação ao uso de instrumentos como decretos e MPs e aprimorando instrumentos que lhes garantam poder, como o Orçamento impositivo.

Zeina Latif* || Não alimente o Leviatã

- O Estado de S.Paulo

O Brasil deveria criar um fundo para evitar o mau uso da receita do petróleo

O Brasil está diante de uma riqueza imensa de petróleo da camada do pré-sal a ser explorada nos próximos anos. O especialista Adriano Pires estima uma receita na casa de US$ 750 bilhões em 15 anos. O ministro Paulo Guedes apontou algo nessa mesma magnitude: entre US$500 bilhões e US$ 1 trilhão no mesmo período. A intenção do governo federal é garantir a repartição desses recursos com Estados e municípios.

É crucial evitar que os recursos sejam gastos com despesas correntes. Utilizar uma riqueza finita (um recurso não renovável que já vem sendo paulatinamente substituído por outras fontes de energia mais sustentáveis) com despesas que não geram crescimento econômico futuro é receita para o desastre.

O Estado do Rio de Janeiro é exemplo de fracasso nesse quesito: tem usado há anos os recursos dos royalties de petróleo para cobrir o rombo na Previdência estadual, em vez de fazer reformas.

Exemplos semelhantes não faltam entre municípios. Muitos tornaram-se mais dependentes desses recursos e não colheram avanços nos indicadores econômicos e sociais.

Segundo a imprensa, o Ministério da Economia pretende enviar uma proposta ao Congresso vedando o uso dos royalties para o pagamento da folha, devendo ser usados para investimentos e para pagar dívidas com a União e precatórios judiciais. A motivação é clara: a tentação para usar os royalties para pagar as despesas crescentes com a folha é elevada.

Maria Cristina Fernandes || A MP do Estado anarcocapitalista

- Valor Econômico

Medida ignora que relações econômicas também são de poder

Jair Bolsonaro prometeu a pequenos comerciantes e empreendedores tirar a trava do Estado do caminho de sua prosperidade. Com a MP da Liberdade Econômica, o presidente vai além do cumprimento de uma promessa de campanha. Em apenas quatro meses fez passar na Câmara uma iniciativa que ameaça a capacidade regulatória do Estado e mina os freios contra o abuso do poder econômico.

A Câmara que, na reforma da Previdência, funcionou como um contrapeso às medidas mais radicais do governo, desta vez, se limitou a podar as selvagerias mais gritantes contra o que restou da legislação trabalhista. Sob o escudo de uma proposta que, aparentemente, não afeta a vida da população, tornou-se sócia do anarcocapitalismo que inspira a equipe sub-30 que o Paulo Guedes colocou na secretaria de desburocratização do Ministério da Economia.

O texto aprovado tem a ambição de mudar os princípios constitucionais que regem a atividade econômica. Prevê que o Estado terá uma intervenção "subsidiária e excepcional" sobre o exercício de atividades econômicas. A Constituição já prevê que o Estado apenas explore uma atividade econômica sob o imperativo da segurança nacional ou de relevante interesse coletivo. Mas estabelece que o Estado é agente regulador, devendo fiscalizar, incentivar e planejar a atividade econômica (artigo 174).

Os meninos maluquinhos que gestaram o texto da MP nunca devem ter se perguntado se um Estado subsidiário comporta, por exemplo, a Embrapa, empresa pública que fomentou a salvação da lavoura na balança comercial. Ficam igualmente deslocadas, na definição de Estado prevista pela MP, as políticas de compras governamentais. A de merenda escolar, usada pelo Estado há muitos anos para incentivar a agricultura familiar, é apenas a mais inocente na bilionária lista de compras do Estado, de aviões a tecnologias sensíveis.

Ribamar Oliveira || Suécia é exemplo para as regras fiscais

- Valor Econômico

Limite para a dívida pode ser a âncora da política fiscal

A comissão criada pelo relator da proposta de emenda constitucional (PEC) 438/18, deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), para definir um novo desenho de regras fiscais para o Brasil debateu, recentemente, o modelo utilizado pela Suécia. Desde 1997, o governo daquele país adota uma política fiscal que tem um limite para a dívida pública bruta - a âncora do regime - uma meta fiscal e um teto para os gastos de base móvel.

Há um reforço importante às regras: a legislação adotada pela Suécia exige que o governo adote todas as medidas necessárias para evitar que o teto de gastos seja descumprido, inclusive encaminhando ao Parlamento proposições legislativas que julgar necessárias.

Quem tiver interesse em conhecer mais sobre o modelo de regras fiscais daquele país pode acessar o Estudo Técnico nº 24/2018, disponível na página da Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional, de autoria do economista Hélio Tolini, ex-secretário da Secretaria de Orçamento Federal (SOF) e consultor da Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados.

A Suécia enfrentou uma grave crise econômica no início da década de 1990 que derrubou o Produto Interno Bruto (PIB) do país por três anos consecutivos, aumentou o desemprego e provocou déficits nominais do setor público que excederam 10% do PIB. Para enfrentar a situação, Tolini informa, em seu estudo, que o governo sueco introduziu metas fiscais, fez a reforma da Previdência, a reforma tributária, deu independência ao banco central e instituiu o regime de metas para a inflação.

Uma agenda semelhante, é bom que se diga, à que o governo brasileiro está tentando executar neste momento, em que o país continua com altas taxas de desemprego e com a economia com crescimento anêmico, depois de forte recessão.

Pedro Ferreira* e Renato Fragelli* || A proeminência da ortodoxia

- Valor Econômico

A ampla dominância das teorias ortodoxas se explica por seus resultados, não por fatores ideológicos

Resumindo-se de forma caricatural as controvérsias entre economistas de diferentes correntes, pode-se dizer que, para os heterodoxos o nível de preços é determinado pela curva de oferta, enquanto o nível de atividade é explicado pela de demanda; para economistas ortodoxos ou do "mainstream", a explicação é exatamente a oposta.

Se o nível de preço - e consequentemente a inflação - fosse um problema exclusivamente de oferta, a simples redução da taxa de juros estimularia investimentos que gerariam aumento da produção, que por sua vez provocaria queda dos preços. A falha dessa visão está no fato de que o maior investimento somente gerará elevação da oferta no futuro, mas no curto prazo constitui aumento de demanda. Some-se a isso que a mesma queda de juros destinada a estimular o investimento também impulsiona o consumo. Quando a economia opera perto do pleno emprego - como durante parte do governo Dilma Rousseff - juros mais baixos elevarão a demanda, pois não há capacidade produtiva ociosa para a oferta crescer, resultando em maior inflação.

Não há teoria "certa". Pode-se - como foi feito por excelentes economistas - desenvolver teorias lógicas e internamente coerentes onde manchas solares afetam expectativas dos agentes e o nível de atividade. O importante para a tomada de decisões é se os dados e a evidência de alguma forma corroboram, ou pelo menos não rejeitam a teoria. No caso brasileiro, a abordagem da inflação pelo lado da oferta fazia sentido quando a inflação estava em três dígitos anuais, num ambiente de ampla indexação determinada por lei. Após a desindexação instituída pelo Plano Real, num ambiente de inflação de um dígito, os dados não foram generosos com teorias de combate à inflação pelo lado da oferta. Sua aplicação, via de regra, resultou em aceleração inflacionária.

O baixo crescimento brasileiro, este sim, é um fenômeno do lado da oferta ligado à baixa eficiência econômica. Como já dito neste espaço, mesmo controlando por diferenças de intensidade de capital físico e de qualidade da mão de obra, o produto por trabalhador brasileiro permanece muito menor que o dos países líderes, algo entre 50 a 60% abaixo. Somos muito ineficientes em produzir bens e serviços e não há evidências de que melhoramos muito no passado recente. Se o grosso de nosso atraso não está no capital, aumentar a taxa de investimento ajuda, mas não resolverá o problema.

Maria Hermínia Tavares de Almeida*|| Proposta amadora

- Folha de S. Paulo

O Future-se traz mais incertezas do que saídas razoáveis para o nó na educação

Termina hoje a consulta pública do Future-se —que nome! Assim foi batizada a proposta do Ministério da Educação que pretende ser a cura para a crise crônica do financiamento das 68 universidades federais. Seus orçamentos vêm encolhendo desde 2016, na presidência de Dilma Rousseff, mas chegaram a uma situação insustentável agora que o governo contingenciou 30% dos recursos do setor.

Concebido por quem parece ter pouca familiaridade com a vida universitária e decidiu não se aconselhar com quem tem, o Future-se traz mais incertezas do que saídas razoáveis para o nó que tenta desatar. Desde logo, assim como está, sua aprovação pelo Congresso exigiria considerável esforço político —afinal, trata-se de emendar a Constituição e alterar 17 leis.

Seu cerne é a possibilidade de que o MEC e as universidades, por adesão voluntária, estabeleçam contratos com Organizações Sociais (OS), transferindo-lhes atividades administrativas e de gestão de seus recursos. Criadas por legislação de 1998, as OS não estão submetidas nem à Lei das Licitações, nem à do Teto de Gastos que limita a utilização de recursos hoje administrados por fundações ligadas às principais universidades.

Fernando Schüler*|| Um caminho possível para o país

- Folha de S. Paulo

Vai se desenhando, na prática, um novo arranjo político, feito de um paradoxo

À época em que Donald Trump ainda montava seu governo, após as eleições de 2016, o veterano líder democrata Newt Gingrich fez um alerta: não tratem o novo estilo presidencial como uma bizarrice. Há certo método ali. O recado era para a mídia, que havia entrado de cabeça na polarização política. Mas servia para muito mais gente. Gingrich resumia o método Trump: “você tem que ter coelhos que a mídia vai perseguir, ou eles vão inventar seus próprios coelhos”.

Ter a hegemonia, no mundo politico, funciona assim. Você dá a pauta e escolhe as armas do jogo, e os outros correm atrás. Na era do populismo eletrônico, isso é feito frequentemente de maneira grotesca. O líder político, que deveria agir como estadista, buscar consensos, falar com todos de modo igual, funciona ele mesmo como o agitador-chefe do país. Estes dias me corrigiram: como humorista-chefe. Ok, há gosto para tudo.

Boa parte dos coelhos inventados pelo presidente não faz sentido nenhum. Não passa de conversa fiada, por exemplo, dizer que o governo não irá financiar filmes que agridam “nossa tradição judaico-cristã”. Incentivos culturais são regidos por lei e a escolha de filmes (felizmente) independe da vontade presidencial. Imagino que Bolsonaro saiba perfeitamente disso. Sua insistência nesse tipo de bravata diz respeito ao tal “método”.

Bruno Boghossian || Com o Supremo, com tudo

- Folha de S. Paulo

Aliança entre Planalto e STF contra abusos acelera esforço para estancar a sangria

O ex-senador Romero Jucá deve estar com inveja. Em poucos meses, o novo governo pôs de pé um pacote para estancar a sangria e redefinir a atuação de órgãos encarregados de fiscalizar atividades financeiras. A ideia ganhou velocidade rara depois que os farejadores se aproximaram da família do presidente e de outras autoridades.

Nas últimas semanas, o ministro Paulo Guedes anunciou a intenção de fatiar a Receita Federal e mudar a estrutura do Coaf —que produz relatórios sobre movimentações suspeitas de dinheiro. O objetivo declarado é limitar a influência política sobre as duas entidades e reduzir sua autonomia para evitar abusos.

Não foram poucas as ocasiões recentes em que órgãos de fiscalização ultrapassaram as fronteiras da lei, mas o movimento de reforma, por enquanto, cheira a oportunismo.

A atuação do Coaf e da Receita tem sido alvo de críticas justas das figuras mais poderosas da cena política. A insatisfação parece ter criado entre os personagens dispostos a frear esses excessos uma aliança incomum —com o Supremo, com tudo.

Renato Ortiz* || Verdades e mentiras

- Folha de D. Paulo

'Nós' e 'eles': Bolsonaro cria exílio em nosso próprio país

“Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira”; “Os dados da economia estão maravilhosos”; “Suicídio acontece, pessoal pratica” (em relação à morte do jornalista Herzog); “Estou convencido de que os dados de desmatamento são falsos”.

As afirmações são daquele que ocupa o mais alto cargo político do país: a Presidência da República. A lista poderia ser alongada, mas seria inútil ampliá-la; importa entender que elas são recorrentes. Uma forma de interpretar esse comportamento bizarro é dizer que simplesmente nos encontramos diante de um conjunto de mentiras.

Cada afirmação pode ser desmentida pela apresentação dos dados de realidade: há fome no Brasil; a economia anda mal; Herzog foi assassinado; o desmatamento é um fato. O equívoco seria desconsiderar o mundo real de maneira assim tão evidente. Entretanto, outra interpretação é possível.

Há, primeiro, um aspecto: se elas são recorrentes devem significar algo mais. A repetição não seria apenas expressão de mentiras. Mas, para entendê-las, é preciso circunscrever sua falsidade dentro de um contexto mais amplo: o governo Jair Bolsonaro (PSL) é uma ruptura em relação à vida política brasileira.

Nos encontramos diante de uma situação na qual o autoritarismo tornou-se banal, pois os mecanismos institucionais intrínsecos à democracia são sistematicamente destruídos pela eleição institucionalmente democrática de um oligarca.

Uma maneira de se compreender os traços deste autoritarismo é considerá-lo como um populismo. Mas faço uma ressalva: o termo não se confunde com a ideia tradicional de populismo existente no Brasil ou na América Latina, ele adquire um novo significado. O populismo atual é resultado de falha estrutural das democracias contemporâneas e manifesta-se em diferentes lugares: Trump nos Estados Unidos, extrema-direita em países da Europa.

Laura Carvalho*|| Herança maldita

- Folha de S. Paulo

Erros de Macri pouco lhe ensinaram sobre economia e respeito à democracia

A ampla vantagem com que a chapa liderada por Alberto Fernándezvenceu as primárias presidenciais argentinas do domingo (11) é mais um bom exemplo de que animar os mercados financeiros sem trazer melhora para o conjunto da população é o caminho mais curto para a derrota eleitoral.

Ainda assim, no discurso de segunda (12), o presidente Mauricio Macrifez questão de demonstrar que os erros de seu governo pouco lhe ensinaram sobre economia e, menos ainda, sobre o respeito à democracia.

Desde que foi eleito, em 2015, a taxa de inflação na Argentina subiu de 14,3% para 54,8%, ao mesmo tempo que a taxa de desemprego passou de 5,9% para 10,1%, freando o crescimento dos salários e elevando a pobreza. Desde 2018, a economia argentina está em recessão.

Ao longo desse percurso, a realidade cismou em descolar-se do que previa o receituário liberal, obrigando o governo Macri a passar das sucessivas elevações na taxa de juros às vendas de reservas internacionais e ao velho congelamento de preços de bens e serviços essenciais.

Em vez dos sólidos investimentos estrangeiros prometidos no discurso de campanha, a economia argentina —e suas taxas de juros mais altas— acabou atraindo capitais especulativos demasiado voláteis, cuja saída rápida acabou culminando na crise cambial de abril de 2018.

De acordo com os termos negociados em tal ocasião, o empréstimo de US$ 57 bilhões concedido pelo FMI —o maior da história do Fundo— deveria ter servido apenas para restabelecer a confiança dos mercados, mas acabou sendo parcialmente utilizado para o pagamento da dívida externa, evitando que o país quebrasse em 2019.

O FMI autorizou também a venda de parte dessas reservas pelo banco central argentino no início deste ano, evitando uma desvalorização ainda maior do peso.

Luiz Carlos Azedo || Qual será o novo modelo?

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“A modernização das relações trabalho-capital nunca teve uma correlação de forças tão favorável no Congresso, a favor da desregulamentação, é claro”

A grande mudança debatida ontem pela Câmara dos Deputados sobre a legislação trabalhista, com a chamada MP da Liberdade Econômica, foi o fim da remuneração em dobro do dia trabalhado aos domingos, que agora poderá ocorrer por até três fins de semana consecutivos, se houver compensação com uma folga correspondente no decorrer da semana, negociada individualmente. A aprovação da mudança é mais um avanço na desregulamentação das relações trabalhistas regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho.

Em outras circunstâncias, haveria grande mobilizações sindicais para evitar que isso ocorresse, mas não é o que acontece. Com o fim do imposto sindical, os sindicatos entraram em colapso, e os trabalhadores estão muito acuados pelo desemprego. Só se mobilizam em situação de desespero, como, agora, na greve dos motoristas do Espírito Santo, por causa dos ônibus que começariam a circular sem trocadores, quando em todo o mundo já começam a circular caminhões e ônibus sem sequer motorista.

A propósito, vem do Espírito Santo um “causo” que ilustra bem a situação, que me foi contado pelo ex-governador Artur Carlos Gerhardt Santos, que governou o estado no começo dos anos 1970 e foi o grande artífice da industrialização capixaba, cuja economia é a única do país voltada para o comércio exterior. Quando a ponte rodoferroviária Florentino Ávidos, também conhecida como Cinco Pontes, toda fabricada em aço e trazida da Alemanha, foi inaugurada, em 1927, um português de Vila Velha logo inaugurou uma linha de lotação ligando as duas cidades.

Em protesto, os catraieiros (barqueiros cujos remanescentes até hoje fazem transporte de passageiros de um lado para outro do canal que separa a ilha de Vitória do continente) resolveram fazer uma greve. “Não tinha a menor chance de dar certo”, ironizou o ex-governador. A ponte existe até hoje, foi um marco da expansão e modernização da economia capixaba, possibilitando a chegada ao Porto de Vitória dos trens da Vitória-Minas.

A modernização das relações trabalho-capital, premissa para a retomada do crescimento, nunca teve uma correlação de forças tão favorável no Congresso, a favor da desregulamentação, é claro. Essa é uma das consequências do fracasso petista no comando do país, depois do naufrágio do modelo de capitalismo de Estado adotado a partir do segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula das Silva e, principalmente, durante o governo Dilma Rousseff.

É jogo jogado. A estagnação da economia, com aumento acelerado da miséria e desemprego em massa, induz mudanças profundas na estrutura produtiva do país, com o uso de novas tecnologias, principalmente robotização e inteligência artificial, que tornam obsoletos dispositivos de uma legislação criada quando o Brasil se urbanizava e se industrializava. A Era Vargas, cujo fim já foi tantas vezes proclamado, parece realmente moribunda.

Merval Pereira || Minoria equivocada

- O Globo

Presidente tem pouca probabilidade de montar um governo de coalizão, e nem tem essa intenção

Embora na teoria o governo não tenha uma base parlamentar homogênea, na prática todos os projetos econômicos enviados ao Congresso estão sendo aprovados com facilidade. Sinal de que a maioria, de tendência liberal, de centro direita, pode ajudar ainda muito o governo, apesar do próprio presidente, das suas atitudes e pensamentos. Lula e Dilma fizeram maiorias defensivas, sem critérios programáticos, que na teoria existiam para evitar uma ação parlamentar contra eles. Não deu certo para Dilma. Bolsonaro nem isso tem.

Devido a ter uma minoria na Câmara, ao extremismo ideológico, e à retórica agressiva e frequentemente indecorosa, tem pouca probabilidade de montar um governo de coalizão, e nem quer, pois identifica nele, equivocadamente, a gênese da corrupção política no Congresso. Confunde o uso indevido de uma aliança política com o instrumento de governança na democracia.

Já nos projetos referentes a valores e a comportamentos da sociedade, os ruídos são grandes. Ao querer dobrar o Congresso, logo no início de seu governo, acusando os parlamentares de só agirem em troca de favores, Bolsonaro criou uma clima inamistoso mas, ao mesmo tempo, estimulou um sentimento de autodefesa dos deputados e senadores que serviu para revigorar a atividade parlamentar.

Quem entendeu o momento foi o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que partiu para o confronto com o Executivo na defesa da corporação, ao mesmo tempo em que convenceu seus pares de que a única resposta possível às afrontas do presidente seria demonstrar que eles assumiriam o controle das reformas estruturais da economia.

Ascânio Seleme || Dois anos é muito

- O Globo

De onde vejo as coisas, não consigo imaginar que a estratégia tenha sucesso. A política de choque permanente com a opinião pública de Jair Bolsonaro é uma das mais conhecidas receitas para o fracasso. Mas, claro, o articulista pode estar enganado, dirão os que defendem o presidente. Pode mesmo. Acontecem coisas na política por vezes impensáveis, ou inacreditáveis. A própria eleição de 2018 prova esta tese. De todo modo, a história mostra que esse embate permanente só tem êxito se for acompanhado de resultados que mexam para melhor na vida das pessoas. E é isso o que está faltando. Não se veem resultados. Nem agora, nem no futuro imediato.

O PIB do primeiro semestre pode ser negativo. E os indicadores para o segundo não são melhores. O ministro Paulo Guedes falou que é preciso paciência e voltou a culpar o passado pela estagnação do país. E pediu, nas suas palavras, “um ano ou dois” para que as reformas sejam implementadas e o país deslanche.

É muito, ministro. Um ano ou dois pode ser um prazo razoável na economia, mas é uma eternidade na política. Em um ano haverá novas eleições, e em dois, o governo Bolsonaro estará entrando na sua fase final. Na fase do café frio.

A Argentina é exemplo de como as coisas podem desandar na política. O presidente Mauricio Macri vai sendo varrido pelo que Bolsonaro chama de “esquerdalha” simplesmente porque não cumpriu o que os argentinos esperavam dele e o que ele havia prometido para os argentinos. Ele não consertou a economia no prazo estabelecido pelo calendário eleitoral. No nosso caso, além de ver a economia patinando, o brasileiro já está cheio da retórica beligerante e falsa do seu presidente.

Bernardo Mello Franco || No escurinho dos gabinetes

- O Globo

Bolsonaro diz que opiniões sobre armas e meio ambiente influirão na escolha do novo PGR. O risco é que esses temas virem cortina de fumaça para a indicação de um engavetador-geral

Uma guerra de lobbies, intrigas e dossiês. Assim está a disputa pela Procuradoria-Geral da República. Desde que Jair Bolsonaro sugeriu que não seguiria a lista tríplice, a corrida se deslocou da superfície para os subterrâneos de Brasília. No escurinho dos gabinetes, vale tudo pela indicação presidencial.

A confusão foi gestada pela procuradora Raquel Dodge. Impopular entre os colegas, ela desistiu de disputar a eleição interna. Depois informou que estava “à disposição” para um segundo mandato, com apoio velado de figurões do Congresso e do Supremo.

A atitude encorajou outros candidatos a correr por fora da lista. Até o início da semana, Augusto Aras despontava como favorito. Ele apostou em outro tipo de padrinho: o ex-deputado Alberto Fraga, prócer da bancada da bala e amigo do presidente.

Aras fez de tudo para se mostrar alinhado a Bolsonaro. Elogiou o presidente, esbravejou contra a “ideologia de gênero” e atacou o MST. Quando sua indicação parecia certa, deputados do PSL descobriram que ele não é bolsonarista desde criancinha. Agora o procurador tenta se explicar para os caçadores de comunistas.

Míriam Leitão || Reduzir o cipoal de entraves


- O Globo

MP da Liberdade Econômica aprovada na Câmara tem que ser vista como apenas o início da redução de entraves burocráticos

A maior vantagem da MP da Liberdade Econômica não é uma medida ou outra, é a atitude de começar a enfrentar o cipoal de entraves que existe desde muito tempo na economia brasileira. Não fará o país ser livre amanhã, é apenas um passo tímido, mas como diz o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), que relatou o assunto, é “uma mudança até psicológica”. Segundo ele, é o Estado avisando que acredita que “o empreendedor tem boa-fé”.

Qualquer jornalista de economia sabe o quanto já ouviu de histórias surreais sobre barreiras, normas, exigências feitas pelas diversas burocracias do Estado a quem quer montar um negócio. No clima de devastação econômica como estamos vivendo, depois de seis anos de crise, com tantos milhões de desempregados, é evidente que esse é um passo certo.

Dentro das regras alteradas, perguntei ao relator o que ele achava que era o mais importante. Ele me falou que era o todo.

Ricardo Noblat: Moro perde mais uma

- Blog do Noblat / Veja

Sem chances no Congresso
Irá para a conta do ministro Sérgio Moro, da Justiça, uma vez que o presidente Jair Bolsonaro não admite que vá para a sua, a aprovação pela Câmara dos Deputados do projeto que criminaliza o abuso de autoridade. Faz sentido que seja assim.

Era pedra cantada. O Senado já havia aprovado o projeto contra a vontade de Moro e o alheamento de Bolsonaro. A Câmara limitou-se a seguir o exemplo do Senado. Nem foi preciso submeter o projeto a voto no plenário. Fez-se uma votação simbólica e pronto.

Deputados e senadores toleram Moro como ministro porque não há outro jeito, mas não gostam dele e abominam o modo como ele se comporta no combate à corrupção. Jogam nas costas do ex-juiz a culpa pelo que chamam de criminalização da política.

Se nada mudar ali, Moro só deve esperar do Congresso uma derrota atrás da outra. Perdeu o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), que Bolsonaro prometera que ficaria no Ministério da Justiça e que irá parar no Banco Central.

O pacote de leis anticrime apresentado por Moro está sendo cozinhado na Câmara a fogo brando. No final, o que sair dali pouco se parecerá com o pacote original.

O que pensa a mídia || Editoriais

E os militares? || Editorial / Folha de S. Paulo

Com atraso, Câmara instala comissão para a reforma previdenciária das Forças

Só agora, depois de aprovada a reforma da Previdência dos servidores civis e dos trabalhadores da iniciativa privada, a Câmara dos Deputados instalou a comissão que analisará o projeto do Executivo que trata das pensões militares. O sinal parece pouco promissor.

A proposta que dormitava na Casa já provocara críticas quando o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), não por acaso lotado de quadros oriundos da caserna, a deu por conhecer em março.

Ali se evidenciava que a distribuição dos inevitáveis sacrifícios a serem feitos na mudança das aposentadorias poderia não se dar de maneira justa entre os segurados.

Verdade que há na norma em exame providências acertadas e necessárias. Entre elas desponta a extensão do tempo mínimo de serviço (de 30 para 35 anos) para a obtenção de benefícios e o aumento da alíquota de contribuição (de 7,5% para 10,5% dos proventos). Pensionistas também contribuirão, se o texto for aprovado.

Tais medidas, quando em vigor, implicariam economia de R$ 97 bilhões em uma década, o equivalente a pouco mais de um décimo do esforço imposto aos civis pelo que já se aprovou na Câmara. O projeto do Planalto, entretanto, pretende devolver com a outra mão o que tomaria com a dos cortes.

Poesia / Carlos Pena Filho || Olinda, do alto do mosteiro, um frade vê

(A Gilberto Freyre)

De limpeza e claridade
é a paisagem defronte.
Tão limpa que se dissolve
a linha do horizonte.

As paisagens muito claras
não são paisagens, são lentes.
São íris, sol, aguaverde
ou claridade somente.

Olinda é só para os olhos,
não se apalpa, é só desejo.
Ninguém diz: é lá que eu moro.
Diz somente: é lá que eu vejo.

Tem verdágua e não se sabe,
a não ser quando se sai.
Não porque antes se visse,
mas porque não se vê mais.

As claras paisagens dormem
no olhar, quando em existência.
Diluídas, evaporadas,
Só se reúnem na ausência.

Limpeza tal só imagino
Que possa haver nas vivendas
das aves, nas áreas altas,
muito além do além das lendas.

Os acidentes, na luz,
não são, existem por ela.
Não há nem pontos ao menos,
nem há mar, nem céu, nem velas.
Quando a luz é muito intensa
é quando mais frágil é:
planície, que de tão plana
parecesse em pé.

Música || Aquela Rosa - Geraldo Azevedo, Alceu Valença e Maestro Spok