O PT está há 11 anos no governo federal, é o principal e mais bem organizado partido do País, mas não fixou uma orientação de sentido que agregue os brasileiros, ou a maioria deles. Tem votos, mas não consensos. Sensibilizou a opinião pública para o tema da desigualdade social, mas fez isso por meio do assistencialismo, e não de uma imagem de vida coletiva.
Passou-se o mesmo nos oito anos de FHC. Sua política de combate à inflação trouxe a cultura da responsabilidade fiscal para a gestão pública, mas não uma ideia de sociedade. Introduziu a linguagem da reforma do Estado e com ela pautou os governos que lhe sucederam, mas não conseguiu valorizar o Estado perante os cidadãos. E o que dizer das décadas seguidas de PSDB em São Paulo? Vitórias eleitorais sucessivas conseguiram atiçar algum sentimento an-tipetista, mas não anunciaram uma comunidade política. O legado tucano resume-se a obras e providências administrativas, como, aliás, ocorre em todos os lugares. Não contempla valores.
Há o "poder da mídia". Estrutura-se em imagens, informações, narrativas. A ilusão de que faz o que quer com a cabeça das pessoas tem levado a que se fale em ""mídia golpista", expressão tão provocativa quanto equivocada num contexto em que os grandes órgãos de comunicação têm suas "orientações" desmentidas no instante mesmo em que são emitidas. As redes sociais comprometem sua eficácia. Mas tais mídias alternativas são o espaço de todos e de ninguém. Não podem ser articuladas por uma ordem de comando ou por um sujeito unificador revestido de poder de agenda e capacidade de direção intelectual e moral.
Há muito poder econômico no mundo. A concentração de riqueza é assustadora. O capital não cabe em si e regurgita com frequência. A crise global é, na verdade, uma situação de conflitos incessantes que não conseguem ser coordenados e superados. É uma crise de direção política no sistema e no interior de cada Estado. A hegemonia do capital financeiro é real, mas não traz consigo uma fantasia organizada: é uma supremacia que não seduz nem convence, em que pese o investimento pesado em propaganda. A própria hegemonia dos EUA se faz hoje com muitos vácuos e oscilações.
O quadro é de crise de hegemonia. Não há mais, a rigor, uma "hegemonia neoliberal". Nem nenhuma outra. Cada sujeito, cada polo ou bloco tem limites (econômicos, corporativos, ideológicos) que o impedem de se tomar hegemônico, quer dizer, de dirigir em nome de um "projeto existencial".
No Brasil, as oposições não avançam porque não têm empatia ou discurso que as qualifiquem como artífices de mudanças. A presidente Dilma, por sua vez, é beneficiada pela posse dos instrumentos de governo e mantém posições mesmo sem dispor de propostas que empolguem.
Falar em hegemonia é falar em poder das ideias, componente decisivo de qualquer operação que tencione magnetizar pessoas ou mudar o mundo. Pode-se governar, com recursos político-administrativos e com dinheiro, mas não se muda a disposição cívica nem se deslocam estruturas sem ideias articuladas. A luta ideológica é mais decisiva que a eleitoral.
Fala-se de "hegemonia" sem muito rigor. Há os que a confundem com supremacia política. E há os que dizem que ela é a porta de entrada de uma visão totalitária do mundo. Não se valoriza o fundamental: hegemônico não é quem manda ou ganha eleições, mas quem consegue apresentar uma proposição crítico-racional para a sociedade. A busca de hegemonia é um exercício cultural interativo e dialógico. Não se resolve de uma vez por todas, com uma camisa de força, mas mediante discussão permanente. É uma construção sem prazo para terminar.
Privilegiada pelo marxista italiano Antonio Gramsci, a hegemonia é o dado que falta nos dias correntes. Há poder e poderes, mas não direção intelectual e moral, ou melhor, há muitas direções e nenhuma delas consegue prevalecer incontrastável. Há domínio e coerção, mas poucos consensos. O desentendimento dificulta a modelagem coletiva da experiência social.
Hegemonias existem, mas são imperfeitas. Carecem de base material e condições para que se unifique a vida social em tomo de projetos coletivos.
Gramsci queria, com o conceito, mostrar que não era preciso chegar ao poder político para ter influência no Estado e na sociedade. Que os subalternos e seus representantes políticos poderiam disputar posições importantes e fixar seus valores no arcabouço cultural das sociedades. Em suma, que dava para dirigir sem dominar, ocupar espa-: ços a partir dos quais direcionar a ação dos poderes estatais.
Não há como dizer que esse projeto não deu certo. As classes subalternas, ao longo do século 20, conquistaram muita coisa e imprimiram a marca de seus interesses, valores e projetos na comunidade política moderna. Mas essa hegemonia não foi suficiente para mudar com radicalidade a estrutura do poder. Houve maior compartilhamento de posições, mas o poder permaneceu concentrado e voltado para defender os interesses economicamente dominantes.
Quando Gramsci idealizou seu conceito, a hegemonia nascia da fábrica e podia ser pensada como estando enraizada no universo da produção. Hoje esse universo não referencia a sociedade. A fábrica está se robotizando, alterou suas plantas, espalha suas unidades longe do controle dos Estados. A classe operária, perdeu densidade e não pode mais ser vista como o sujeito político por excelência, levando consigo os partidos de massa e as utopias que desenhavam o futuro.
Vivemos cercados de poderes, mas eles coordenam pouco a vida social. Nem sequer regulam pressões e interesses. Fazem-nos mal, mas não são donos de nossa mente nem de nossos movimentos. São negativos mais pelo que deixam de fazer do que pelo que fazem. São pouco amados e muito difamados, agredidos e contestados, mas não conseguem ser responsabilizados. Desabam sobre as pessoas mas não as orientam.
Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
Fonte: O Estado de S. Paulo