Foi solicitado por esta Conferência que falasse sobre Estado, Desenvolvimento e Democracia, no Brasil – da perspectiva dos avanços e desafios. Lembro-me do livro escrito por Celso Furtado, em plena ditatura militar, intitulado “O mito do desenvolvimento econômico”, mas lembro também de um outro, no meu período de estudante universitário, cujo nome era “A dialética do desenvolvimento”. É preciso frisar que Furtado não só foi um teórico do desenvolvimento, como um formulador de políticas de desenvolvimento para os países do Terceiro Mundo.
O tema do “desenvolvimento” deve ser pensado de um ponto de vista multidimensional. O desenvolvimento não é sinônimo de crescimento. O desenvolvimento não se resume à mera geração e acumulação de riquezas. Há desenvolvimento e desenvolvimento.
Quando os teóricos da CEPAL abordaram esse assunto, havia quase um consenso que o desenvolvimento era igual à industrialização. E que sem uma industrialização, não haveria desenvolvimento. Foi a época da chamada “Razão dualista”, tão bem criticada por Chico de Oliveira em seu famoso ensaio. Os autores dualistas acreditavam que o subdesenvolvimento, ou a falta de desenvolvimento, era produzida pela hegemonia do setor agro-exportador-primário (com uma agricultura extensiva, de baixa produtividade). Daí a ideia de incrementar a industrialização, submetendo à agricultura às necessidades da economia urbano-industrial. E claro, a necessidade de uma readequação da estrutura fundiária brasileira, com o aumento da produtividade e uso de tecnologias modernas no campo. Vem daí um clássica e antiga disputa entre os reformistas e reformuladores agrários, representados pelos circulacionistas e os críticos da “plantation”.
Na ideia dos dualistas, não havia nenhuma comunicação entre os dois setores da sociedade (rural e urbano). A agricultura era exportada: e a indústria sofria as consequências da disfuncional idade econômica do setor agrícola, tido como atrasado. A proposta de desenvolvimento coincidia, então, como o incremento da industrialização e a subordinação do setor agrícola ao setor industrial. E o desenvolvimento de mercado interno, através da generalização do trabalho assalariado e o aumento do poder de compra dos trabalhadores.
Este modelo ficou bem em evidência com a revolução de 30, tida e havida como a nossa revolução burguesa e a instalação do “Estado de Compromisso” no Brasil. A política de socialização das perdas, tão bem estudada por celso Furtado, minimizava o crise da cafeicultura e dava um impulso decisivo à indústria brasileira, pela generalização das leis trabalhistas, a formação de um mercado nacional e o processo conhecido como: Substituição das importações. Enquanto o setor agrícola pode financiar esse processo, com a contenção das importações e sua substituição pela indústria nacional, houve um grande avanço da indústria brasileira, sem grandes mudanças na estrutura agrária. O estrangulamento desse processo se dá quando não é mais possível impulsionar a indústria, sem o concurso da importação de insumos, máquinas, peças e acessórios e a falta de poupança interna.
Colocou-se, claramente, para a sociedade brasileira que o aprofundamento do processo de industrialização dar-se-ia com a internacionalização do Departamento de bens de produção, e não com a produção interna de máquinas e insumos industriais. A questão é que esse modelo dependente e associado não libertaria a economia brasileira da sua subordinação ao capital internacional, e o setor agrícola continuaria atrasado e improdutivo. A ideia de criar um mercado de capitais, com o fim da estabilidade dos trabalhadores, e a abertura econômica, pelos militares, dando a passagem ao capital financeiro, não ajudou a fortalecer a indústria, nem a mudar o campo, mas modernizou a infraestrutura do país e deu origem a um processo de diferenciação dos atores sociais muito grande no Brasil.
Vem daí o conceito de “Sociedade Civil” contra o Estado, de inspiração gramsciana e no bojo dasrevoluções contra o Estado, também chamadas de “recuperadoras”, por um filósofo alemão contemporâneo. Achava-se que por um paradoxo a modernização econômica do Brasil teria gerado novos atores políticos (modernos) num processo de socialização da política, e que a sociedade brasileira rumava firmemente para a “ocidentalização”, ou uma democracia de massas. Segundo essa análise, no Brasil o Estado era tudo, e a sociedade civil era nada. Entre nós, havia uma “Estadania”, não uma “cidadania”. E que o primeiro projeto de cidadania teria vindo com Getúlio Vargas, seria a cidadania regulada, a cidadania da carteira de trabalho.
Malgrado essas expectativas, a sociedade brasileira que surgiu foi uma mistura de Bélgica com a Índia, uma Belindia, em razão não só das características da transição democrática (pelo alto, através de uma conciliação entre as elites), mas também pelo formidável passivo social (e a falta de representação política) dos setores marginalizados. Produziu-se, com o governo Sarney, uma “societas sceleris”, uma sociedade de bandidos, com o império de uma “razão cínica”, representada pela “lei de Gerson” e seus heróis: Pele, Ayrton Senna, Macunaíma, Jeca tatu etc. Toda o ensaio de criação de uma nova sociedade civil e seus sujeitos políticos coletivos, atuando nos aparelhos privados de hegemonia, desapareceu num passe de mágica.
E a velha política voltou a dominar o país, com o prolongamento do governo corrupto de Sarney e a destruição de canais de TV aos oligarcas regionais. Foi o período da hiperinflação e a moratória da dívida externa.
O próximo passo foi a introdução, a golpes de medidas provisórias e ataques a direitos e organizações de trabalhadores, da agenda dita moderna, das privatizações, redução do Estado, demissão de funcionários públicos, abertura da economia brasileira etc. De início, de forma atabalhoada, depois de forma sistemática, planejada, com FHC e sua gestão gerencial/regulatória, apoiada no tripé: desregulamentação do mercado financeiro, privatização de ativos públicos e abertura da economia brasileira. Câmbio flutuante, metas, juros altos e superávit primário. Sob o pretexto de criar um clima “ótimo” para os negócios, vendeu-se o país, na bacia das almas, com o preço depreciado e empréstimos do BNDES. Época das bandalheiras, dos negócios da China. A proposta de cidadania era a do cidadão-consumidor. Aquele que tinha a capacidade de escolher o modelo, a qualidade, o preço, o tipo de serviço, mediante pagamento. Cooptou-se a sociedade civil, através do “mercado altruístico”, do terceiro setor e flexibilizou-se ao máximo as relações de trabalho, quebrando o princípio básico da legislação trabalhista: a relação de continuidade da relação de trabalho. Foi a época do voluntariado, dos amigos disso, os amigos daquilo etc. Onde as fundações empresariais passaram a fazer filantropia, às custas do tesouro, e agregar valor às suas marcas.
A chegada de Lula ao Poder, através de uma coligação de centro-esquerda e um discurso econômico contemporizador colocou a questão da continuidade ou não dessa política econômica, a forma de garantir governabilidade através de uma ampla coalizão partidária e se essa seria uma janela de oportunidades para o avanço das lutas sociais no Brasil. Questão difícil de responder, tanto no plano econômico, como no político. Na pior hipótese, o governo petista teria acrescentado uma agenda social à política econômica de FHC. No plano da reengenharia institucional, ou das relação entre os poderes, temos de reconhecer honestamente que não houve avanço. O governo petista procurou tirar proveito de todos os vícios e defeitos do regime político (presidencialista e multipartidário) cooptando parlamentares e os partidos de sua base, dando uma enorme sobrevida às figuras teratológicas da política brasileira.
Estendeu muito a cobertura das políticas de transferência de renda, ajudando a tirar muitos brasileiros da linha de miséria. A política redistributiva, apoiada no fundo público, empréstimos consignados, investimentos em infraestrutura, expansão do ensino, renúncia fiscal, administração do preços públicos e o apoio ao setor agroexportador, contribuiu muito para criar um arremedo de mercado interno para os produtos da chamada linha-branca, construção de casas populares, redução da dívida externa, formação de grandes reservas em moeda forte. Mas quando mudou a conjuntura internacional e o preço das comodities despencou, produziu-se um enorme buraco nas contas públicas, acompanhado de mais inflação, mais taxas de juros, escassez do crédito, retração da economia e dificuldades para encontrar uma demanda sustentável para a indústria de transformação.
Houve uma mudança grande de agenda econômica, passando de uma política anticíclica, expansionista do crédito e investimentos estatais, para uma política contracionista, baseada em aumento de impostos, cortes de direitos, aumento de juros e uma necessidade premente de economizar dinheiro para o equacionamento das contas públicas. A dívida pública chegou a 37% de PIB, os índices previstos para o crescimento são negativos, como a inflação. Emprego e renda também sofreram queda. E o país enfrenta a má-vontade das agências de avaliação do grau de investimento no país. Há também um ataque especulativo ao real, que precifica a crise política e o mau desempenho da economia. O cenário internacional também é desfavorável.
A janela de oportunidade para os movimentos sociais não produziu os resultados esperados. Os movimentos foram atravessados pela divisão entre a resistência ao ataque aos direitos dos trabalhadores e a defesa das instituições democráticas. O que torna pouco enfática a defesa do mandato da Presidente da república, que praticamente entregou a sua sorte ao maior partido do Congresso, em troca de cargos, verbas e nomeações. A oposição golpista insufla os movimentos de rua e as redes sociais contra a permanência da Presidente da República, aproveitando-se dos processos contra ela, da Operação Lava-a-jato e dos péssimos indicadores econômicos. Mas não há unidade entre esses. A imprensa golpista também dá sua contribuição à fervura do caldeirão, mais preocupadas com seus interesses corporativos do que com o interesse público. É possível que a Dilma sobreviva a tudo isso. Mas a um custo extremamente elevado para o país e os interesses populares. E a gente se perguntando se vale a pena pagá-lo.
Democracia consentida e administrada. Sociedade civil tutelada. Capitalismo de Estado, que redistribui, por um lado, e ajuda a acumulação de capital das empresas e o fabuloso lucro dos bancos e agentes financeiros.
Que tipo de cidadania é essa? Que o governo petista ajudou a criar?
------------------------------------
Michel Zaidan Filho é professor da Universidade Federal de Pernambuco