sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Gabeira e a onda que não morreu na praia


Deodato Rivera
Ex-jornalista, formado em Filosofia e pós-graduado em Ciência Política
DEU NA GAZETA MERCANTIL


Apesar de não ter sido eleito, Fernando Gabeira não "morreu na praia", já que sua campanha teve um significado político muito maior do que o mero resultado eleitoral.

Gabeira deu um exemplo, inédito no Brasil, de um novo paradigma político, ao conseguir tão expressiva votação frente a uma candidatura que praticou todas as tretas e mutretas tradicionais do carcomido paradigma político vigente. De fato, a campanha de Eduardo Paes:

1 - gastou cerca de R$ 50 milhões, ou mais, sem dizer donde vinham nem como se gastavam (Gabeira só gastou R$ 4 milhões, com origem e destino publicados diariamente na Internet);

2 - sujou profusamente a cidade com santinhos, panfletos, cartazes, posters, bandeiras de plástico, out-doors caríssimos etc. (Gabeira, por princípio, não sujou a cidade, como prometera);

3 - contratou e pagou um número enorme de "cabos eleitorais" e de comitês (Gabeira não teve comitês nem precisou pagar ninguém, pois contou com um voluntariado de milhares de cidadãos, principalmente jovens);

4 - beneficiou-se de métodos ilegais e repugnantes de propaganda negativa - crimes eleitorais constatados pela fiscalização do TRE -, com materiais, apócrifos ou não, cheios de mentiras, calúnias e injúrias, "demonizando" o adversário (Gabeira não ofendeu ninguém, como prometera, nem usou propaganda negativa);

5 - Beneficiou-se das "máquinas" federal, estadual, sindical-petista e "universal" (Gabeira não foi candidato de máquinas nem de maquinações de costas para a cidadania);

6 - muito provavelmente também beneficiou-se da "esperta" e vergonhosa manipulação do feriado pelo governador Sérgio Cabral, para afastar do Rio potenciais eleitores do adversário (Gabeira não teve "máquinas" e perdeu por apenas 55.000 votos num universo de 4,5 milhões de eleitores!);

7 - prometeu mundos e fundos - 83 promessas ao todo! -, mesmo sendo notório que a crise financeira mundial e a conseqüente recessão no Brasil afetaria o orçamento municipal nos próximos anos (Gabeira não fez promessas que não pudessem ser cumpridas);

8 - negociou no segundo turno alianças espúrias e fisiológicas com partidos que agora, com chocante voracidade, cobram suas "cotas" no governo: os cargos que lhes dêem acesso às verbas bilionárias das secretarias municipais e à formação ou manutenção dos nichos eleitorais que lhes garantam a sobrevivência política (Gabeira, se eleito, não lotearia o governo).

Desse modo, Gabeira demonstrou ser possível disputar uma eleição sem sujeira ecológica nem ética. Demonstrou também ser um grande equívoco dizer-se, por exemplo, que "a política é suja" (palavras da sexóloga Marta Suplicy, ao tentar justificar a propaganda caluniosa contra o prefeito Kassab). Ora, são exclusivamente os políticos sem ética que sujam a política - não todos os políticos -, como se viu no Rio.


A percepção de que a onda verde não morreu na praia foi bem descrita pelo jornalista Augusto Nunes, no Jornal do Brasil de 29 de outubro:

"Faltou platéia para comemorar a vitória de quem será prefeito. O povo festejou nas ruas o desempenho de quem por pouco não foi. No restante do País ninguém se interessou pela sorte de Paes, ninguém viu algo de novo no que dizia. Em contrapartida, distribuídos por todos os estados, milhões de brasileiros juntaram-se à distância ao bom combate. Os 1.640.970 do Rio de Janeiro transformaram o que parecia apenas uma onda num genuíno movimento popular. O movimento já exibe dimensões impressionantes. E só começou."

De fato, a onda verde do Rio está virando um tsunami. Um "tsunami do bem". Um tsunami que, em vez de afogar pessoas, vai afagar um velho sonho cívico que não quer morrer, e em vez de destruir vai ajudar-nos a construir uma sociedade finalmente livre da "banda podre" que enxovalha a nossa política. É essa "banda podre" que joga na mesma lama, aos olhos de boa parte da cidadania, todos os políticos deste país, inclusive os dignos e íntegros...

Por tudo isso a eleição de 26 de outubro de 2008 no Rio será conhecida como o marco inicial de uma grande mobilização cidadã, com um novo espírito cívico, uma nova vontade política extremamente poderosa e transformadora.

Inspirada no exemplo da campanha de Gabeira, essa vontade cidadã será exercida estritamente dentro dos parâmetros legais e no respeito dos princípios e valores humanos superiores, democráticos e republicanos. Ela será participativa, organizada e responsável, sem ódio nem complacência, com alegria e respeito, criatividade, competência e transparência.

Essa vontade lúcida, que não se confunde com voluntarismo, caracterizar-se-á pela aprendizagem da participação e da ação democráticas por parte de cidadãs e cidadãos comuns articulados em rede - não dirigidos nem manipulados verticalmente por "caciques" de estruturas de poder-dominação. Será a aprendizagem do poder-serviço e da cidadania, engajada mas sem fanatismo nem ódio-atividade. Essas habilidades são indispensáveis ao exercício pleno e perseverante, não espasmódico, de dois poderes democráticos fundamentais, porém pouquíssimo ou nada usados no Brasil: o poder fiscalizador e o poder inspirador da cidadania.

Todos os que nos sentirmos convocados e capazes podemos e devemos exercer esses poderes - e não somente, a cada dois anos, simplesmente o poder e o direito de votar! -, a fim de que um dia o nosso atual modo arcaico de fazer política seja substituído por um modo limpo, decente e transparente, que inspire e mereça o respeito e a confiança da população.

Sem essa vigilância lúcida e permanente da cidadania, nos termos da lei, a democracia torna-se capenga, a política uma farsa, e as eleições, em muitos casos, uma gazua para o assalto aos cofres públicos em defesa de interesses escusos e de ambições pessoais doentias e muitas vezes funestas.

Trazer isso à luz do dia foi o serviço prestado à nossa democracia por Fernando Gabeira e pelos que lhe deram o seu voto. Sua vitória consiste em ter inspirado e orientado a onda que não morreu na praia.

Essa onda amplia-se agora com a missão que uma parte significativa do eleitorado do Rio lhe conferiu simbolicamente, e que Gabeira compreendeu e aceitou: assumir a liderança do movimento popular de tipo novo em gestação, que por certo não se restringirá ao Rio de Janeiro, para a regeneração do nosso arcaico e carcomido modo de fazer política e disputar eleições.

Parodiando o slogan de Alberto Dines, criador do "Observatório da Imprensa": depois da façanha de Gabeira, nós nunca mais devemos olhar a política e as eleições do mesmo jeito...

kicker
: "Fernando Gabeira demonstrou ser possível disputar uma eleição sem sujeira ecológica nem ética."

Trajetória da esperança


Fernando Gabeira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


RIO DE JANEIRO - A vitória de Obama é um manancial de interpretações. Muitos podem mergulhar nele e sair com sua verdade. Nos EUA, tudo é possível, dirão alguns maravilhados com a democracia norte-americana. Pela primeira vez um negro chega à Casa Branca, dirão os interessados em acompanhar a trajetória da luta racial.

Os mais modernos vão atribuir um grande peso à internet. Obama e sua equipe usaram o instrumento de forma competente. Mas é interessante observar alguns pontos: o simples fato de ser negro não define em si a vitória de Obama. Outros negros tentaram. A internet entregue a si mesma não faz nada; o domínio do instrumento não substitui a força do conteúdo.

Estou convencido de que a análise política de Obama foi um fator decisivo. Ele concluiu que um tempo estava se acabando, que as querelas dos anos 60 chegavam ao esgotamento. Viu o país dividido entre republicanos e democratas, assim como outros pequenos impasses que o debate nacional estimulava. Resolveu construir pontes.

Esta decisão, para mim, foi sábia. De que adiantam debates estéreis, em que se volta para casa com uma sensação de superioridade moral, mas nenhum avanço prático?

Uma realidade importante até para o Brasil: embora existam dois fortes partidos disputando o poder, grande parte da população não se identifica integralmente com eles. Nos EUA, são os independentes. O candidato fala para os independentes. É capaz de mobilizá-los? Entre eles estão 40 milhões de jovens, ávidos por proposta de esperança.

Ao longo de dois anos de campanha, foi possível colocar o país de pé, esperando, com orgulho, horas numa fila de votação.

No Brasil, com nossos métodos modernos, podemos suprimir as filas. Mas estamos em condições de injetar esperança menos de uma década depois da eleição de Lula?

Mestre-sala porta a bandeira


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


O governador de Minas Gerais, Aécio Neves, assustou um bocado de gente em sua última passagem por Brasília. Reuniu-se com a bancada de deputados federais do partido e, na saída, não fez por menos: "Será perverso para o Brasil (agüentar) mais quatro anos disso que está aí".

A saber: "Um governo extremamente perdulário""", que empurrou "a ética para debaixo do tapete" e cujo presidente não tem condições políticas de manter unida a tropa de aliados na eleição de 2010 nem dispõe de dons eleitorais suficientes para "ungir alguém à cadeira presidencial".

Isso dito na quarta-feira, porque já há algumas semanas o governador vem mostrando os dentes. Entre o primeiro e o segundo turno das eleições municipais ele já defendia a caça aos aliados de Lula, apontava defeitos na conduta do presidente nos seis anos passados - "não arbitra nada, por isso não fez as reformas" - e afirmava que o PSDB poderia se apresentar como um contraponto de eficácia, principalmente "para gerenciar os efeitos da crise mundial".

Terminado o pleito, veio a público defender duas vezes - uma delas ao lado de José Serra - a realização de prévias para a definição do candidato ainda em 2009, a fim de não se repetir o desgaste da escolha de 2006.

Proposital ou involuntário, o uso da expressão "isso que está aí" - o bordão contra tudo e contra todos, consagrado pelo PT oposicionista - na denúncia da "perversidade" de um novo mandato petista não deixa de ser significativo como marco da atuação mais nítida do PSDB na oposição ao governo Luiz Inácio da Silva.

E por que Aécio Neves, o patrocinador da aliança entre os dois partidos que acabou de eleger o prefeito de Belo Horizonte, no papel de portador da voz e da bandeira dos tucanos para a batalha da sucessão presidencial?

Uma rápida consulta ao breviário dos ritos internos do PSDB sugere que justamente por ser conhecido como o mais ameno entre os moderados do partido, o governador de Minas tem o perfil ideal à ocasião.

Do ponto de vista externo sua posição gera impacto e, sob a ótica interna, lhe garante o espaço de pré-candidato à Presidência, evitando ficar numa posição subalterna em relação ao governador de São Paulo, José Serra, hoje em vantagem nas pesquisas, na percepção do mundo político e na estrutura do partido.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso trabalha para junto com a cúpula do tucanato, o comando do DEM, a direção do PPS e os agregados do PMDB em favor de uma chapa puro-sangue com Serra na cabeça e Aécio na vice.

Por isso mesmo, a todos eles interessa acima de tudo que Aécio Neves ocupe lugar de primeira grandeza. Com direito a rechaçar a proposta da chapa São Paulo-Minas até que o cenário se defina por aí ou tome outro rumo.

Quanto mais candidatos competitivos a oposição puder apresentar ao público, mais expectativa de poder criará, já que na seara governista por enquanto só existe uma tênue incerteza na figura da ministra Dilma Rousseff.

Turma do funil

O Supremo Tribunal Federal está preocupado com o que os novos prefeitos e vereadores farão com a Súmula 13, que proíbe o nepotismo no funcionalismo. Há ministros desconfiados de que os vereadores e prefeitos eleitos poderão fazer tábula rasa da regra logo após tomarem posse.

A julgar pela atitude de sete das 26 câmaras municipais das capitais dos Estados, que já aumentaram por conta os salários dos novos vereadores, os magistrados têm razão para desconfiar do espírito público das excelências recém-eleitas.

Mediante muita pressão, Câmara e Senado já demitiram 189 parentes e fizeram a sua parte. Ficam ainda devendo as respectivas listas de demissões as assembléias legislativas, as câmaras municipais e os Poderes Executivo e Judiciário em todos os níveis.

Gato comeu

Nunca mais se ouviu falar dos entendimentos entre o Legislativo e o Judiciário para aprovação de reajuste dos salários dos ministros do Supremo, de R$ 24,5 mil para R$ 25,7 mil.

O projeto dormia na gaveta dos guardados estratégicos, até que no final de agosto último a Câmara acenou ao STF com a possibilidade de pôr a proposta em votação. Isso, logo depois da proibição do nepotismo.

O presidente do STF, Gilmar Mendes, achou ótimo, o presidente da Câmara avisou que o aumento entraria na pauta em breve mas, de repente, o assunto morreu. Resta saber se morto ficará.

Coisa de pele

Pode demorar, mas o arrefecimento da simpatia de Lula pela figura (descontada a mítica) de Barack Obama é uma questão de tempo.

Obama é o tipo do intelectual que importuna o pragmatismo simplificado de Lula. Em termos de personalidade, é muito mais o jeitão de George Bush.

Lula precisa cuidar da candidata


Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL

Lula parece que considera uma diversão prazerosa queixar-se da imprensa, fazendo o papel de vítima quando nunca na História, etc um presidente conquistou tanto espaço na mídia, seja nos jornais, revistas, emissoras de rádio e redes de televisão e nas rodas de maledicência de repórteres.

E a verdade é que o presidente merece a atenção da imprensa que não faz nenhum favor em registrar os êxitos nas viagens pelo mundo do recordista de milhagem nas asas do Aerolula e nos raríssimos deslocamentos nos jatos comerciais. Mas, se o tempo de todo presidente é curto para as tarefas da burocracia, Lula desperdiça uma fatia gorda com picuinhas, com a tardia cobrança do destaque do papel de bombom de cupuaçu que jogou no chão depois de deliciar-se com a guloseima e que foi notícia, com foto na imprensa.

Certamente não foi notícia no poderoso esquema de propaganda oficial, de matar de retardatária inveja o finado DIP da ditadura do Estado Novo.

Mas, enquanto inaugura obras do PAC ou da segunda casa de força da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, com a ministra-candidata ao lado, Lula não está prestando a devida atenção à fase delicada que a sua chefe da Casa Civil está atravessando.

A pré-campanha ganha velocidade com as disputas internas pelo sacrifício de salvar a pátria com a ocupação da sua poltrona no Palácio do Planalto. E a aferição da viabilidade dos pretendentes já começou a ser conferida pelas pesquisas dos institutos especializados.

Até agora, por uma delicadeza dos donos das empresas, a ministra-candidata vinha sendo excluída das listas dos candidatos ostensivos, como o governador de São Paulo, José Serra, o nome do dia no PSDB; o governador mineiro, Aécio Neves, também do PSDB e outros que ainda não emplumaram para alçar vôo.

Uma luz de lamparina piscou o alerta com a primeira pesquisa, de iniciativa do governador Eduardo Campos, de Pernambuco, restrita ao eleitorado do Estado e que inclui pela primeira vez o nome da ministra-candidata na lista dos presidenciáveis. E, como já comentamos neste espaço, a candidata do presidente Lula e do PT fechou a raia com apenas 4% de preferência dos votantes.

Há males que vêm para bem, ensina a sabedoria popular. A ministra Dilma Rousseff não é uma simples postulante na fila oficial. Mas, a candidata do presidente Lula e, portanto, do Partido dos Trabalhadores. E não apenas uma candidata assumida, mas em campanha à sombra do presidente puxador de votos e com a bandeira do Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC de fartas verbas e obras em todo o país, entregue à sua gerência.

A estréia da ministra numa pesquisa estadual deve ser analisada com toda a cautela. Nem merece o desprezo da arrogância nem o alarme que espalha o pânico. Mas, alguma coisa não está funcionando. Se Lula, na mesma pesquisa pernambucana, tem o seu desempenho qualificado como ótimo e bom por 82% dos consultados, os 4% da ministra Dilma advertem que a sua candidatura ainda não chegou ao Nordeste da gratidão pelo Bolsa-Família e o Bolsa-Escola dos cuidados assistenciais do governo e a sua mais poderosa alavanca política.

Obra só dá voto depois de inaugurada. Antes, é mais uma promessa. A candidatura da ministra Dilma precisa chegar ao distinto público e o mais depressa possível, para descontar o atraso.

Se não ultrapassar a barreira de um dígito nas próximas pesquisas, libera a vaga para a livre disputa entre os pretendentes, silenciados pela liderança de Lula.

E não se troca de candidato como quem muda a camisa suada.

Ressentimentos


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. Muito se tem falado sobre as proximidades entre a vitória de Barack Obama nos Estados Unidos e Lula no Brasil, e o próprio presidente brasileiro vê semelhanças na trajetória de vida dos dois. Talvez a única similaridade entre as duas situações seja o fato de que tanto Obama hoje quanto Lula em 2002 simbolizaram um sentimento difuso de mudança que era latente nos dois países, mas catalisado pelos problemas econômicos. Fora isso, eleger um operário no Brasil tem quase o mesmo significado para nós que eleger o primeiro presidente negro nos Estados Unidos. Muito mais que raciais, nossos preconceitos são sociais.

Se Lula fosse um líder operário negro, teria muito mais dificuldades para chegar à Presidência, se é que chegaria um dia. No Brasil, Lula primeiro foi rejeitado por suas idéias radicais, e ele mesmo já admitiu que seria uma imprudência ter sido eleito em 1989. Mas ele mesmo diz que sentia uma tristeza imensa quando via que o povo não considerava votar num igual, por preconceito social.

Com seu imenso carisma e sensibilidade política, Lula foi se amoldando às exigências do eleitorado, aparando a barba e as idéias. A maior prova de que para chegar ao poder teve que mudar de imagem foi a contratação do publicitário Duda Mendonça, que, ao mesmo tempo em que retirava do candidato traços políticos radicais, criando a figura do "Lulinha Paz e Amor", também mudou-lhe o penteado e o terno, tornando-o palatável à maioria do eleitorado.

Se houvesse no Brasil um político negro com a postura elegante de Barack Obama, bom de negociação e de oratória, com título universitário e pós-graduação em Harvard, poderia ser eleito presidente da República sem questionamento sobre a raça. Um bom exemplo desse preconceito com raízes sociais é a candidatura de Celso Pitta a prefeito de São Paulo. Diretor da empresa de Paulo Maluf, apresentado como parte do establishment político, foi eleito sem que sua raça fosse questionada. E seu ostracismo político deve-se a acusações de corrupção que nada têm a ver com a cor da pele.

A desgraça de nossa sociedade é que ela não favorece a que uma criança pobre e negra tenha uma educação de base tão boa que lhe permita freqüentar boas faculdades, coisa que aconteceu com Obama, que cresceu num país que começou a dar oportunidades aos negros há apenas 44 anos, quando ele tinha 3 anos de idade.
Outra diferença entre os dois países: acredito que nos Estados Unidos "Joe, the plumber" ("Zé, o bombeiro"), personagem que o republicano McCain usou no final de sua campanha para exemplificar o americano médio que sofreria com as supostas taxações de um governo "socialista" de Obama, dificilmente poderia ter o sucesso de Lula, o metalúrgico, se se dispusesse a disputar a Presidência da República, pela falta de preparo intelectual, o que no Brasil pesou contra Lula apenas até determinado ponto.

As críticas à sua falta de preparo cultural são superadas pela idéia de que ele tem a sensibilidade popular para os problemas. Além, é claro, da indiscutível habilidade política.

Mas Lula vive se considerando discriminado pela elite brasileira e já revelou um ressentimento que parece não ceder nem mesmo diante de seus inegáveis sucessos. Sua relação com o sucessor e antigo amigo, Fernando Henrique Cardoso, é exemplar desse ressentimento.
Embora a esquerda latino-americana sempre tenha tido uma relação mais próxima do Partido Democrata, e o senador Barack Obama tenha tido um padrão de votos considerado em Washington como o mais liberal - o que nos Estados Unidos pode ser considerado "de esquerda" - de todos os membros do Senado no ano passado, o governo Lula preferia um futuro presidente republicano, porque seria "menos protecionista" e menos "próximo dos tucanos".

Se a relação dos tucanos com o Partido Democrata foi fortalecida pela amizade entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o ex-presidente Bill Clinton, uma relação, se não de amizade, também especial, nasceu entre Lula e Bush, que tem uma convivência mais amistosa com o atual presidente brasileiro do que a que teve com Fernando Henrique, que já declarou que sentiu "asco físico" por Bush.
Provavelmente Bush pressentia em Fernando Henrique uma rejeição intelectual que não acontece com Lula, cujo temperamento cordial é mais parecido com o dele. Seja por isso, ou por puro pragmatismo, Lula torceu pela reeleição de Bush, e agora gostaria de ver um republicano na Casa Branca de novo.

Ou então Obama, em cuja trajetória de vida vê semelhanças com a sua, e que é um democrata não ligado aos "tucanos", como os Clinton. Essa aproximação de Bush com Lula tem certamente as mesmas raízes. Recentemente, Bush sussurrou no ouvido do ministro da Fazenda, Guido Mantega, em uma reunião sobre a crise internacional, que gostava muito de Lula.

Brahmins, a mais alta classe do sistema de castas indiano, é como os descendentes das famílias wasps (brancos, anglo-saxões e protestantes) são conhecidos. Já contei aqui, mas vale repetir: George W. Bush derrotou John Kerry, um legítimo Brahmin de Yale, a quem Bush atribuía uma atitude arrogante em relação a ele, a mesma que os colegas estudantes tinham na universidade, onde os Brahmins valorizam mais o preparo cultural do que o dinheiro.

Os dois têm raízes na Nova Inglaterra, mas, enquanto Kerry costumava passar férias na casa dos avós, numa cidade do norte da França, Bush nunca havia saído dos Estados Unidos antes de ser presidente.

Na eleição do dia 4, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos foi eleito por 153,1 milhões de eleitores, sendo que os brancos representam nada menos que 74% ou 113,29 milhões. Desses, uma minoria, 43% ou 48,71 milhões, votou em Obama. Dos 13% - ou 19,9 milhões de negros, 95% votaram em Obama; e dos 8%, ou 12,25 milhões de hispânicos, 66% ou 8,09 milhões votaram em Obama.

Os EUA em busca da convergência


Maria Cristina Fernandes
DEU NO VALOR ECONÔMICO

"Ele lutou muito e por muito tempo nessa campanha. Ele lutou ainda mais e por mais tempo ainda por esse país que ama. Ele enfrentou sacrifícios pela América que a maioria de nós nem pode começar a imaginar. Nós estamos melhores graças aos serviços desse líder corajoso e altruísta".

O trecho de seu primeiro discurso em que o presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, se refere ao seu adversário, tem várias traduções. Uma delas é que a mesma democracia que convive com sistemas arcaicos de votação e um colégio eleitoral que pode se contrapor ao voto popular, não abre mão da reverência à instituição da Presidência da República. É também uma tradução possível para o discurso de John McCain - "Ele era meu oponente, agora é meu presidente".

Esta reverência reflete a confiança, na pátria do capitalismo, de que é o poder político que comandará as saídas da crise. E são saídas que apontam para a não conformidade do Estado americano com uma revisão da organização financeira mundial que ponha em questão, por exemplo, a centralidade do dólar.

O tema, que vai dominar a transição Bush-Obama, já começou, com a atuação do Tesouro americano, o FED e o FMI, de garantir liquidez dos bancos centrais mundo afora, como demonstrou José Luís Fiori, em artigo neste Valor (05/11/2008). É uma iniciativa de tanto significado para o futuro das relações do governo americano com a ordem financeira internacional quanto o foi o histórico discurso do então candidato em Berlim para a Obamania mundial.

Outra tradução do discurso é o pragmatismo que deve nortear o seu governo. Se os desastrosos anos Bush, a crise econômica sem precedentes e as mudanças demográficas de um país mais jovem e miscigenado, foram determinantes para sua eleição, é da busca de convergências com os Republicanos rumo à conquista do centro político do Congresso que depende seu governo.

Esse centro foi mais radicalmente abandonado pelo único presidente eleito sem a maioria popular dos últimos 132 anos da história americana. Na era republicana dos anos Bush no Congresso, o governo foi capaz de reduzir a carga fiscal do Estado, aliviando a taxação sobre grandes empresas, aumentando os gastos militares e diminuindo as despesas com saúde pública e previdência, que afetaram a vida da maioria da população.

"Desde o pós-guerra, o Congresso americano funcionou à base de coalizões interpartidárias, que possibilitaram os avanços ora da agenda republicana, ora da democrata. Isso acabou com a era Reagan. O governo Clinton foi muito difícil do ponto de vista congressual e, com o Bush Jr., as divisões interpartidárias ficaram mais radicalizadas", diz o professor Fabiano Santos, que ministra o curso de Política Contemporânea nos EUA na pós-graduação do Iuperj.

Filho dessa convergência política que, a partir dos anos 60, possibilitou a ampliação da agenda dos direitos civis nos Estados Unidos, é a ela que Barack Obama terá que recorrer para governar.

Ainda que sem a composição final do Congresso americano, dado o atraso na apuração, não havia ontem apostas de que os democratas teriam a maioria de 60 cadeiras no Senado, capaz de derrubar obstruções republicanas na Casa.

Fabiano Santos não vê como Obama possa colocar em ação seus planos de soerguimento da economia americana sem reverter as isenções fiscais concedidas a grandes conglomerados. E acredita que o presidente eleito tem habilidade política suficiente para fazer uso da legitimidade popular conquistada nas urnas e dobrar a resistência republicana no Congresso.

"Nem ele nem a bancada democrata são totalmente identificados com teses liberais, mas deverá haver momentos de maior radicalismo para que a polarização que hoje domina o Congresso retorne ao status quo do centro", diz Santos.

O professor do Iuperj acredita que as iniciativas parlamentares do presidente eleito podem vir a ser facilitadas pelo enfraquecimento, decorrente da crise econômica, dos grupos de pressão neoconservadores que oxigenaram ao longo desses últimos anos os extremismos da bancada republicana.

Sempre haverá o risco de esses grupos de extrema direita, desalojados do jogo institucional no Congresso, recorrerem à sociedade civil organizada - muitas vezes rude e violenta - para dar sobrevivência à agenda neoconservadora.

Um poderoso antídoto para isso está no comparecimento inédito do eleitor americano nesta que foi a verdadeira superterça. A tradicional apatia eleitoral, no país do faça-você-mesmo, foi sacolejada quando o Estado apontou os mísseis para seu próprio território ao empreender uma guerra que se dizia santa.

Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

Uma semana, passado remoto


Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


SÃO PAULO - Era uma vez um tempo em que a gente discutia a conjuntura econômica, toda sexta-feira, nesta Folha. Tempos de conjuntura econômica tumultuada, ao contrário dos pacatos cinco ou seis anos que, no Brasil, terminaram agora.

Eu ouvia os economistas-editorialistas da casa (nenhum deles continua, o time mudou todo) dizerem, numa semana, que tudo ia no melhor dos mundos, para, na semana seguinte, traçarem um cenário um pouco pior que o inferno.

Um dia, perguntei como era possível haver tamanha mudança em meros sete dias. Um dos professores-doutores, com aquela paciência que os sábios às vezes exibem com os ignorantes, respondeu: "Ah, meu filho, economia é uma coisa muito dinâmica". Pensei, mas calei: "Vai ser dinâmica assim na..., bom deixa pra lá".

Não é que hoje, com uns 15 ou 20 anos de atraso, esse professor-doutor poderia dar a mesma resposta e, desta vez, acertaria em cheio? O mundo, não apenas a economia, ganhou uma aceleração nos tempos que é quase impraticável para o cérebro humano acompanhar.

Dado mais recente: a evolução da produção e vendas da indústria automobilística. Em setembro, o número de licenciamentos havia sido 9,7% superior ao de agosto. Em outubro, foi 15% inferior ao de setembro. Uma brutal inversão em apenas um mês, acompanhada, de resto, por férias coletivas em inúmeras montadoras, o que é a antecipação do que vem por aí.

O grave é que a aceleração dos tempos torna arcaicas decisões ou avaliações muito recentes. É o caso da ata do Banco Central sobre a reunião da semana passada, em que o medo da inflação parece ser praticamente igual ao da desaceleração, equilíbrio que os dados do setor de autos desmentem de maneira contundente.

Resumo: hoje é arriscado até prever o passado -ou o presente.

Suficientemente inteligentes


Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - De Lula, dando aula ao presidente eleito dos EUA: "Espero que Obama não vá gastar um ano sem resolver imediatamente a crise. Agora, a crise pode ser debitada ao atual governo, mas, um ano após tomar posse, é dele também".

Lula não tem dúvida de que Obama é "suficientemente inteligente" para entender o recado/lição.Foi quase um ato falho, pois Lula tem quase a mesma pressa e a enorme necessidade de Obama em resolver logo a crise que os EUA produziram e exportaram para todo o mundo. Por causa da economia, mas também pela política, até porque elas andam juntas.

Hoje, Lula é um presidente com 80% de popularidade, num país com reservas de US$ 200 bi, produção industrial crescendo, desemprego caindo e um poderoso setor agrícola. Pronto para fazer o sucessor. Amanhã, ninguém sabe. Tudo pode estar nas mãos de Obama.

A recessão dos EUA puxa a da Europa, da Ásia e dos compradores de commodities em geral, ampliando a reversão de expectativa quanto ao crescimento do Brasil em 2009. Seria de 5%, baixou para 4%, ministros já admitem 3,7% e técnicos vazam que pode ser inferior a 3%. Se for assim, 2010 terá uma combinação explosiva de queda de arrecadação com o efeito retardado, por exemplo, do inchaço da máquina pública e dos aumentos salariais para o funcionalismo.

Para conter essa espiral negativa, é preciso "começar pelo começo": com medidas duríssimas nos EUA.

E lá, como aqui, presidentes tomam medidas duras no início dos mandatos, embalados pela vitória e pela popularidade.

Assim como Obama é "suficientemente inteligente" para saber disso, Lula é suficientemente inteligente para saber que, neste momento, tudo o que é bom para os EUA é bom para o Brasil, e tudo o que for ruim para Obama será péssimo para sua pretensão de fazer o sucessor em 2010.

Obama e Lula, tudo a ver.

A economia com Barack Obama


Luiz Carlos Mendonça De Barros
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Os mercados mudarão de idéia sobre o novo presidente americano quando suas ações ficarem mais claras


WALL STREET recebeu com muita frieza a vitória de Barack Obama nas eleições norte-americanas de terça-feira. Essa reação era esperada, pois os mercados tendem a não gostar de um presidente democrata na Casa Branca, muito menos quando acompanhado por uma segura maioria no Congresso. Mas os tempos são outros, e os mercados deveriam mostrar alívio desta vez, apesar de seus valores ideológicos ou políticos.

Certamente mudarão de idéia -talvez até a virada do ano- quando as ações do novo presidente ficarem mais claras. Explico a seguir por que espero essa reação.

Em primeiro lugar, porque há indicações de que o pacote de estímulo fiscal democrata será adequado para enfrentar a crise econômica atual.

Os democratas vão concentrar seus esforços no alívio financeiro da classe média, grupo mais importante para dar força ao consumo ao longo de 2009. Essa é uma visão oposta às crenças republicanas, de que o esforço fiscal deve ser dirigido aos americanos de renda alta e às empresas privadas com o objetivo de estimular novos investimentos.

Não é preciso mais de cinco minutos de reflexão para chegar à conclusão de que a forte recessão de agora está sendo alimentada por uma grande queda no consumo da classe média.

Isso vem criando uma significativa capacidade ociosa no tecido produtivo dos Estados Unidos, principalmente em setores industriais como o automobilístico. Falar em estímulo aos investimentos nestes tempos bicudos de recessão e crise bancária é nonsense.

Sem essa amarra programática, os democratas estarão mais livres para desenhar e para aprovar rapidamente um pacote de estímulos que realmente ataque a falta de demanda na economia. O primeiro objetivo será estancar o processo de retomada de casas financiadas por hipotecas, os chamados "foreclosures".

Sem isso, os preços dos imóveis não vão parar de cair, impedindo o consumidor de ter uma referência sólida sobre o valor real desse item fundamental de sua riqueza. Além disso, a estabilização nos preços dos imóveis permitirá uma precificação mais clara dos títulos de crédito lastreados em hipotecas, com reflexos positivos no mercado financeiro, já que tais títulos constituem a maior parte do ativo do sistema bancário.

Existem várias formas simples e eficientes de conseguir esse objetivo. A maioria democrata no Congresso vem tentando aprovar algo nessa direção, mas o presidente George W. Bush sempre ameaçou vetá-las. Com Obama, o programa poderá ser implantado rapidamente. Alguns bancos mais sensíveis aos ventos políticos já anunciaram o congelamento temporário dos "foreclosures".

Outra iniciativa será a redução de impostos com foco na classe média, visando potencializar os efeitos positivos da recente queda dos preços da gasolina e de outros produtos na renda disponível dos americanos.

Finalmente, um segundo pacote voltado para investimentos em infra-estrutura poderá dar mais um impulso para a economia a partir da segunda metade de 2009.

Quem conhece os Estados Unidos sabe que pontes, ferrovias e a rede de distribuição de energia são antiquadas e constituem um bom alvo para tal programa. Haverá ainda um esforço para reduzir a dependência de energia importada, o que demandará bilhões de dólares em investimento. Certamente a economia norte-americana continuará crescendo de forma medíocre até 2010, mas pelo menos estaremos livres do fantasma de uma depressão econômica no mundo.

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS, 65, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

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