domingo, 21 de julho de 2019

Luiz Sérgio Henriques*: Por um cosmopolitismo moderno

- O Estado de S.Paulo

O antídoto mais eficaz contra a ameaça de recuos pavorosos como o que se seguiu a Weimar

Analogias históricas são, sempre e ao mesmo tempo, tentadoras e inexatas. O fantasma da República de Weimar, a frágil experiência democrática que em poucos anos sucumbiu a seus dilaceramentos internos, costuma ser uma das fontes preferidas de tais comparações, como se a desordem contemporânea guardasse em si o germe de algo parecido com o fascismo clássico. Então como agora, a democracia constitucional parecia fadada à derrota diante do bolchevismo, cedo demais desfigurado por elementos crescentes de intolerância e fanatismo, e especialmente diante da reorganização corporativa e autoritária de sociedades como a italiana ou a alemã. A demanda de disciplina supunha homens fortes e não podia admitir o jogo dos partidos, que enfraqueceria povos e destruiria nações, as quais, como voltam a dizer, devem ser cultuadas über alles.

Não é razoável acreditar que fascismo ou comunismo estejam às portas ou que nossas ruas e instituições devam ser palco de combates tremendos entre os adeptos de uma coisa ou da outra. Mas de Weimar ainda vêm advertências inquietantes, como as que se relacionam aos riscos da exacerbação sectária – suicida, a divisão entre social-democratas e comunistas – ou da submissão dos conservadores aos modos de agir e pensar da extrema direita. A desordem, explorada com método por essa direita subversiva, não prenunciava nenhuma revolução socialista; antes era a melhor amiga da ordem autoritária em preparação. E Weimar ruiria sob o peso da intrínseca miséria política evidenciada no sombrio diagnóstico de que, no fundo, não era mais do que “uma democracia sem democratas”.

Analogias não bastam, mas às vezes jogam uma luz indireta. Nosso tempo está atravessado por uma grande variedade de contradições e talvez a maior delas seja entre a unificação mercantil do mundo, até recentemente realizada sob a bandeira do liberalismo econômico, e as limitações da regulação política dos impactos que provoca, não em último lugar o esgotamento de recursos num mundo percebido como a única casa de que dispomos. Em momentos de maior otimismo chegou-se a supor como inscrita na própria natureza das coisas a constituição paulatina de uma sociedade civil global, que se somaria mais ou menos organicamente ao arcabouço de acordos e instituições nascidos no segundo pós-guerra. Os processos da economia, assim, não teriam curso automático, condicionados que estariam por múltiplos atores e personagens portadores de outro tipo de lógica.

Celso Lafer*: O Brasil e o multilateralismo

- O Estado de S.Paulo

Não é o que está ao alcance com a crítica ao ‘globalismo’ e seletivas preferências ideológicas

O multilateralismo começou a tomar forma no século 20. Este se caracterizou pela unidade do campo diplomático-estratégico resultante dos processos técnicos, econômicos e intelectuais que unificaram, para o bem e para o mal, a humanidade, tornando o mundo finito. Foi o que passou a exigir mecanismos de cooperação entre os Estados.

Foram momentos inaugurais da diplomacia multilateral a Segunda Conferência de Paz de Haia, de 1907, e a Conferência de Paris, de 1919, que ao fim da 1.ª Guerra Mundial levou à criação da Sociedade das Nações. De ambas o Brasil participou, nelas identificando caminhos para a ação diplomática nacional, tendo em vista também as experiências do regionalismo multilateral interamericano.

Assim, nosso país mesclou, com consistência e os ajustes necessários provenientes das mudanças de circunstâncias, bilateralismo e multilateralismo na sua política externa. Essa mescla, favorecida pelo bom trânsito do Brasil no mundo, integrou a perspectiva organizadora da nossa inserção internacional na lida com a agenda de temas de interesse nacional, e no trato das simetrias e assimetrias do poder prevalecentes na ordem mundial.

É a importância dessa tradição que quero destacar aqui, fazendo um contraponto à diplomacia da Presidência Bolsonaro. Esta a ela se opõe. Parte do princípio de que a História começa do zero. Por isso se assume como uma discutível ruptura com o que veio antes, movida por seletivas e autorreferidas preferências axiológicas, desconhecedoras tanto da complexidade do mundo contemporâneo quanto das “forças profundas”, históricas e geográficas que têm caracterizado o modo de ser da diplomacia brasileira.

Eliane Cantanhêde: Nonsense

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro se suplantou com uma série de erros e declarações chocantes

Por onde começar? A fome no Brasil é uma “grande mentira”, a tortura da Miriam Leitão também, o desmatamento idem. E temos “filtro cultural”, o “programa” do FGTS, a multa de 40%, os governadores “paraíba”, “vou beneficiar meu filho, sim”, a embaixada nos EUA como filé mignon e, além da fritura de hambúrguer, a entrega de pizza... Ufa! Sempre muito inspirado, o presidente Jair Bolsonaro se suplantou na semana passada. O Brasil amanheceu no sábado de ressaca.

Segundo o presidente da República, brasileiros passando fome é “uma grande mentira”: “Você não vê gente, mesmo pobre, pelas ruas, com o físico esquelético como se vê em outros países”. Foi tão chocante quanto a defesa do trabalho infantil e, novamente, foi o próprio presidente quem tentou se corrigir mais tarde, admitindo, a contragosto, que “uma pequena parte” da população passa fome.
Ele, porém, não corrigiu os ataques à produção audiovisual no Brasil.

O governo vai parar de financiar “filmes pornográficos”, instituir “filtros” na cultura e enaltecer “heróis nacionais”. Ai, que medo! Bolsonaro vai assumir pessoalmente o controle da produção cultural, trocando o que considera “pornográfico” por seus próprios valores – talvez, quem sabe, por filmes evangélicos... E o que entende como “herói”? Brilhante Ustra, como Pinochet e Stroessner? Do outro lado, estão os “mentirosos”, como a brilhante jornalista Miriam Leitão, torturada aos 19 anos, grávida.

E a mania do presidente de desqualificar as pesquisas dos nossos melhores institutos e fundações? Depois do IBGE, da Fiocruz, do ICMBio, do Ibama, entre outros, é a vez do Inpe, pelos dados do desmatamento: “Parece até que está a serviço de alguma ONG”, acusou, e logo para jornalistas estrangeiros. Lá vem punição! As ONGs, aliás, são outro alvo permanente dos Bolsonaro.

Milhares, ou milhões, se frustraram com o “adiamento” da liberação de contas ativas do FGTS, mas a história é simples.

Merval Pereira: As lições da consolidação da democracia

- O Globo

Em tempos de democracia relativa e radicalização de posições políticas faz bem à saúde institucional do país a publicação de um livro como “Transições democráticas — Ensinamentos dos líderes políticos”

Em tempos de democracia relativa e radicalização de posições políticas, faz bem à saúde institucional do país a publicação de um livro como “Transições democráticas —Ensinamentos dos líderes políticos”, seleção de entrevistas e análises de nove dirigentes de seis países, responsáveis pela consolidação da democracia em lugares chave na geopolítica internacional como Brasil, Chile, México, Polônia, Espanha e África do Sul.

O livro originalmente foi publicado em inglês pela International IDEA, instituição sediada na Suécia dedicada ao fortalecimento da democracia. A edição em português, da editora Contexto, teve o apoio da Fundação Fernando Henrique Cardoso. Os autores, Abraham F. Lowenthal, professor emérito de Relações Internacionais da Universidade do Sul da Califórnia, e Sérgio Bittar, economista e político chileno, identificaram qualidades comuns nesses líderes políticos que enfrentaram ambientes hostis diversos para consolidar a democracia.

Desde a preferência natural pela transformação “pacífica e gradual”, em vez de violenta e convulsiva, até a capacidade de articular acordos, inclusive com organizações da sociedade, além de partidos políticos, e não apenas os seus aliados. Alguns arriscaram a própria vida, todos revelaram enorme persistência diante dos problemas, e muitos, embora de caráter reflexivo e analítico, não hesitaram em tomar medidas no momento certo.

Os autores ressaltam que a maioria cercou-se de aliados que, além de competentes, tinham valores políticos semelhantes e ajudaram na formação de consensos e construção de pontes políticas, inclusive com a oposição, quando possível. O livro ressalta a importância das lideranças políticas para a consolidação da democracia em diversos contextos históricos: De Klerk, da África do Sul; e Ernesto Zedillo, do México, são identificados como figuras-chave de regimes autoritários que ajudaram por dentro a transformá-los em democracias.

Míriam Leitão: Entre o grotesco e o perigoso

- O Globo

Os ataques ao meio ambiente são diários, a educação perdeu um semestre, o governo naturalizou a intolerância e encurralou a cultura

Pense no que o presidente Jair Bolsonaro fez e falou de grotesco em 200 dias. Você só conseguirá se lembrar de tudo se recorrer a uma pesquisa. São tantas esquisitices diárias que a gente se esquece porque precisa cuidar da vida. O presidente investiu contra radar, cadeira de criança, taxa cobrada em Noronha.

Defendeu o trabalho infantil, disse que, sim, beneficiará filho seu, postou notícia falsa, deu visibilidade a uma cena escatológica no carnaval e tratou com escárnio valores fundamentais. Qualquer lista que for feita aqui ficará incompleta. O problema é que junto com atos e palavras sem noção há perigo real contra pessoas e instituições.

Governar um país não é comandar um programa humorístico. As palavras bizarro e tosco têm sido usadas com frequência, mas talvez devamos pensar mais na palavra perigo. Enquanto renova o estoque da “última de Bolsonaro”, a Presidência contrata o desastre em inúmeras áreas.

Os ataques ao meio ambiente são diários, a educação perdeu um semestre, o Brasil se aproximou na ONU de países párias nos direitos da mulher, o governo naturalizou a intolerância, suspendeu a fabricação de remédios essenciais, escalou a liberação de agrotóxicos, estimulou o preconceito, encurralou a cultura e esteve nas ruas com quem pediu fechamento do Congresso e do Supremo.

Bernardo Mello Franco: A mentira como método

- O Globo

Aprendiz de Trump, Bolsonaro adota a mentira como prática cotidiana. Na sexta, disparou embustes sobre educação, fome, agrotóxicos e desmatamento

Todos os políticos mentem, mas alguns mentem mais do que os outros. Com Donald Trump, a mentira virou método de governo. O presidente dos EUA espalha fake news como quem troca de camisa. Desde o início do mandato, já divulgou mais de dez mil informações falsas ou distorcidas. A conta é do jornal “The Washington Post”, que criou um site só para registrar as cascatas do republicano.

Jair Bolsonaro é admirador declarado de Trump. Na campanha, seguiu sua receita de tuítes incendiários e “fatos alternativos”. Disseminou embustes sobre as urnas eletrônicas, a distribuição de livros escolares e a própria atuação no Congresso.

No poder, o presidente adotou a mentira como prática cotidiana. Na sexta-feira, ele bateu uma espécie de recorde pessoal. Em entrevista à imprensa estrangeira, mentiu sobre a fome, o desmatamento, a educação e o uso de agrotóxicos no país.

“Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí eu concordo. Agora, passar fome, não”, disse. O último relatório da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) mostrou que 5,2 milhões de brasileiros vivem em grave situação alimentar. Devem ser cidadãos invisíveis para o presidente.

Em resposta a um correspondente alemão, Bolsonaro disse que o Brasil está “nos últimos lugares no tocante ao uso de agrotóxicos”. A mesma FAO informa que o país é o mais consumidor de pesticidas no mundo. Nos primeiros seis meses do ano, foram liberadas 239 novas substâncias.

Elio Gaspari: Bolsonaro tem muito tambor e pouco violino

- Globo / Folha de S. Paulo

Houve época em que era mais fácil comprar cocaína que importar computador

Em julho de 2017 o procurador Deltan Dallagnol foi convidado para fazer uma palestra no Ceará, pediu cachê de uns R$ 30 mil, mais passagens para ele, a mulher, os filhos e estadia no Beach Park ("as crianças adoraram"). Em junho passado o ministro de Economia baixou a Portaria 309, que reduzia os impostos de importação de bens de capital, informática e tecnologia. Dezoito dias depois, suspendeu-a. Nada a ver uma coisa com a outra? Elas mostram como a mão invisível do atraso leva o leão a miar.

Quem pagou a villeggiatura do doutor Dallagnol foi a Federação da Indústrias do Ceará, uma das estrelas do Sistema S, aquele em cuja caixa de R$ 20 bilhões arrecadados compulsoriamente nas veias das empresas o doutor Paulo Guedes prometeu "meter uma faca".

Passaram-se seis meses sem que Guedes voltasse a falar no Sistema S, mas quando ele assinou a portaria 309 cumpriu uma das maiores promessas de campanha do capitão Bolsonaro. Baixando os impostos de importação de bens de capital e de equipamentos de informática, baratearia os preços de computadores, celulares e produtos eletrônicos. A alegria durou pouco pois recolheu-a prometendo revê-la.

A mão invisível de uma parte do patronato da indústria ganhou a parada mostrando ao governo que poderia bloquear seus projetos no Congresso. Ela já conseguira o arquivamento do projeto de abertura comercial deixado por Michel Temer. Esse jogo tem quase um século. Houve época em que era mais fácil comprar cocaína do que importar computador.

Quando a economia nacional começou a se abrir, o agronegócio foi à luta, modernizou-se e hoje é internacionalmente competitivo. A indústria blindou-se atrás de federações (alimentadas pelo Sistema S), aliada a "piratas privados e criaturas do pântano político" (palavras de Guedes). Poderosa, preserva-se com leis protecionistas. Resultado: os piratas prosperaram, a indústria definhou e seus produtos custam caro. Já as federações, nadam em dinheiro, custeando palestras que poucos empresários sérios custeiam.

O capitão Bolsonaro é um mestre do ilusionismo. A cada semana agita o país com tolices ("golden shower"), impropriedades (o conforto de um trabalho infantil que não conheceu) ou mesmo irrelevâncias (a nomeação do filho para a embaixada em Washington, ganha um almoço de lagosta no Supremo Tribunal quem souber os nomes dos três últimos embaixadores nos Estados Unidos).

Quando um assunto relevante como a abertura da economia vai para o pano verde, o leão revoga a portaria 309 no escurinho de Brasília, prometendo revisá-la em agosto. A ver, pois essa orquestra tem muitos tambores e poucos violino.

Dorrit Harazim: Selfie de uma nação

- O Globo

Trump percebeu em deputadas potencial para o papel de inimigas oficiais dos EUA, indispensável à sua campanha de reeleição movida a ódio

Mais de um século atrás, o monumental “Nascimento de uma Nação”, de D.W. Griffith, épico do cinema mudo que inspirou a criação da Ku Klux Klan nos Estados Unidos, moldou apercepção identitária do país em 1915. Primeiro filme a ser exibido na Casa Branca para o então presidente Woodrow Wilson, o clássico até hoje vilipendiado e cultuado foi um estrondoso sucesso de bilheteria. Tem três horas de duração.

O retrato da mesma nação em versão 2019 é uma selfie de 13 segundos. Produzida esta semana durante um comício de Donald Trump na Carolina do Norte, a selfie sonora mostra o mantra nativista que brota no ginásio de uma universidade local, sob olhar impávido do presidente-candidato: “Send her back, send her back!”. Traduzido para o português (“mande-a embora”), o refrão não tem força nem ritmo.

Cantado em inglês e em cadência hipnótica, porém, “Send her back!” adquire a potência mobilizadora de um “We Will Rock You”. Só que, ao contrário do sublime canto à liberdade criado por Freddie Mercuryea banda Que en, og rito produzido por patriotas da nação Trump conduz à supremacia da intolerância.

No caso, clamava-se pela expulsão do país de uma combativa deputada muçulmana, Ilhan Omar, cidadã americana vinda quando criança da Somália e eleita em 2018 pelo estado do Minnesota.

Luiz Carlos Azedo: Política, sexo e religião

- Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Não há força no mundo capaz de mudar a realidade das famílias policêntricas e multiétnicas, nem a complexidade das identidades de gênero no estilo de vida contemporâneo”

Clássico da sociologia brasileira, Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é uma obra polêmica desde sua primeira edição, em 1933, pois desnudou aspectos da formação da sociedade que a elite da época se recusava a considerar. Teve mais ou menos o mesmo impacto de Os Sertões, de Euclides da Cunha, lançado em 1902, a maior e mais importante reportagem já escrita no Brasil. Seu autor descreveu com riqueza de detalhes as características do sertão nordestino e de seus habitantes, além de narrar, como testemunha ocular, a Guerra de Canudos, no interior da Bahia, uma tragédia nacional.

Nas palavras de Antônio Cândido, o lançamento de Casa-Grande & Senzala “foi um verdadeiro terremoto”. À época, houve mais críticas à direita do que à esquerda; com o passar do tempo, porém, Freyre passou a ser atacado por seu conservadorismo. Essa é uma interpretação errônea da obra, por desconsiderar o papel radical que desempenhou para desmistificar preconceitos e ultrapassar valores desconectados da nossa realidade: “É uma obra surpreendente e esclarecedora sobre a formação do povo brasileiro — com todas as qualidades e seus vícios”, avalia Cândido. Consagrou “a importância do indígena — e principalmente do negro — no desenvolvimento racial e cultural do Brasil, que é um dos mais complexos do mundo.”

O presidente Jair Bolsonaro talvez tenha lido Os Sertões, de Euclides da Cunha, porque a Guerra de Canudos faz parte dos currículos das academias militares. Esse foi o livro de cabeceira dos jovens oficiais que protagonizaram o movimento tenentista, servindo de referência para toda a movimentação tática da Coluna Prestes (1924-1927), que percorreu 25 mil quilômetros pelo interior do país. Certamente, porém, não leu Gilberto Freyre, obra seminal sobre a formação da cultura brasileira, traduzida em diversos países. Se o fizesse, talvez conhecesse melhor e respeitasse mais os “paraíbas”, como são chamados os nordestinos por aquela parcela dos cariocas que se acha melhor do que os outros. Ser paraibano é naturalidade, não é pejorativo.

Mas voltemos ao leito antropológico do sociólogo pernambucano. A ideia de que o livro defende a existência de uma “democracia racial” no Brasil, disseminada pelos críticos de Freyre, é reducionista. Casa-Grande &Senzala exalta a formação de nosso povo, mas não esconde as mazelas de uma sociedade patriarcal, ignorante e violenta. A origem dessa crítica é o fato de que o autor destaca a especificidade de nossa escravidão, menos segregacionista do que a espanhola e a inglesa. O colonizador português não era um fanático religioso católico como o espanhol nem um racista puritano como os protestantes ingleses.

Janio de Freitas: Moro e Dallagnol ensinam

- Folha de S. Paulo

Há mais do que o suficiente para admitir a providência de Toffoli

Na volta de mais uma viagem aos Estados Unidos, onde tem buscado inspiração quando seu chão se abala, as primeiras palavras de Sergio Moro foram muito bem-vindas.

No ato ansioso de pretensa explicação para novas revelações do The Intercept Brasil em parceria com a Folha, Moro deu sua autenticação à veracidade das palavras e práticas reveladas. Se negadas, ou postas em dúvida, não teria do que se explicar.

Desta vez, o Intercept e a Folha divulgaram diálogos que expõem a interferência de Sergio Moro em negociações do Ministério Público, vedadas à sua intromissão, para as compensações por delação premiada.

Mas, além de confirmar a interferência, Moro volta ao expediente de entrar por um atalho fraudulento, para fugir à conduta decente que não pode adotar.

“Juiz tem o dever de negar benefícios excessivos para delator”, diz ele. O dever é verdadeiro. Mas a maneira correta de exercê-lo é pela análise das condições propostas e, em seguida, sua homologação ou recusa. Nunca pela contribuição do juiz nas condições que lhe caberá julgar. Esse dever foi transgredido por Sergio Moro. E nem ele opôs dúvida à comprovação do Intercept.

Violações das normas por Moro e Deltan Dallagnol foram levadas às dezenas aos tribunais de guarda da legislação. O sempre admirável repórter Frederico Vasconcelos mostrou agora, na Folha, que representações contra atitudes transgressoras de Moro estão há dois anos e mais no Conselho Nacional de Justiça. Dormem o sono dos moradores de rua.

Bruno Boghossian: De olhos bem fechados

- Folha de S. Paulo

Presidente nega fome e racismo porque não sabe ou não tem interesse em enfrentá-los

Quando estava prestes a completar cem dias no cargo, Jair Bolsonaro desabafou: “Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso? É só problema”. Cem dias depois, o presidente decidiu pegar um atalho para se livrar dos males do país. Passou a anunciar que eles não existem.

No território governado por Bolsonaro, não falta comida para ninguém, o racismo quase não existe e o trabalho infantil não atrapalha. Não há exagero no uso de agrotóxicos e o desmatamento é coisa do passado.

O presidente superou os limites da fantasia na sexta (19), ao dizer que a fome não é um problema no país. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí, eu concordo. Agora, passar fome, não”, sentenciou.

Ou Bolsonaro não sabe o que é a fome ou resolveu distorcer a realidade descaradamente. Informações do próprio governo mostram que 15 pessoas morrem de desnutrição por dia e que quase meio milhão de crianças sofrem com o problema.

Um governante só finge que uma questão não existe quando não sabe como resolvê-la ou não tem interesse em enfrentá-la. Quando era deputado, Bolsonaro afirmava que a solução para a fome, a miséria e a violência era esterilizar os mais pobres para evitar que eles tivessem filhos.

Fernando Canzian: Redemoinho global

- Folha de S. Paulo

Somadas, dívidas de governos, empresas e famílias ultrapassarão US$ 250 trilhões neste ano

No ritmo atual, antes de 2019 terminar o mundo terá atingido o maior nível de endividamento da história. Somadas, dívidas de governos, empresas e famílias ultrapassarão US$ 250 trilhões, o equivalente a 320% do PIB global.

Nos EUA, governo e empresas não financeiras já bateram recordes. Entre as famílias, as dívidas voltaram a subir mesmo após a desalavancagem forçada pela crise global de endividamento de 2008/2009.

Nos 19 países do euro sobem tanto as dívidas dos governos quanto a dos bancos. No Reino Unido, as famílias britânicas já devem proporcionalmente mais (em relação ao PIB) do que as americanas.

O governo inglês, mais que o dos EUA, que deve tanto quanto a média da Eurolândia —todos com dívidas crescentes desde a crise de uma década atrás, quando resgataram bancos e empresas quebradas.

Em condições normais, entes muito endividados —governos, empresas ou famílias— são penalizados com juros maiores, pois aumenta o risco de ficarem inadimplentes. No mundo atual, dá-se o inverso.

Alon Feuerwerker*: A equação bolsonarista supõe ser impossível a união dos demais

- Blog do Noblat / Veja

A coisa mais difícil de prever é o imprevisível

Já está explícito que o objetivo do presidente Jair Bolsonaro é a reeleição. Dois obstáculos têm potencial para bloquear esse desfecho. Um importante é a economia. O projeto continuísta vai sofrer se o crescimento e o emprego não trouxerem novidades boas em dose suficiente. Mas, como mostra o exemplo argentino, mesmo um governo muito aquém na economia pode ser eleitoralmente competitivo, basta tornar impossível a união dos demais.

Há alguma idealização histórica sobre a frente ampla que, no final, promoveu a transição dos governos militares para a Nova República em 1984-85. Histórias oficiais têm um componente de embelezamento artificial. Quem olha as fotos das Diretas Já pode achar, erradamente, que aquela turma esteve sempre unida contra o regime de 1964. Engano. Boa parte ajudou a derrubar João Goulart, e só foi passando à oposição por falta de espaço político no lado vencedor.

E o processo levou vinte anos.

Quando o PT chegou ao segundo turno ano passado, parte da campanha petista acreditou ser quase natural retomar, agora contra Bolsonaro, aquela frente ampla de trinta e tantos anos antes. O investimento de tempo e energia teve retorno paupérrimo. Pois aderir à frente pró-Fernando Haddad implicava manter o PT no poder. Diante do custo, a esmagadora maioria das supostas forças democráticas preferiu a eleição de um entusiasta do regime militar.

É um erro primário olhar tais coisas pela lente da emoção e dos juízos morais. É só política.

Onde estão os maiores riscos políticos de Bolsonaro? Um é a possibilidade de o autonomeado centro liberal preferir a volta do PT à continuidade do bolsonarismo. A probabilidade de isso acontecer em prazo curto é a mesma que havia de vingar a Frente Ampla de Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e João Goulart quando ficou claro o desejo continuísta dos vencedores de março/abril de 1964. Algo perto de zero.

Ricardo Noblat: O cala boca no capitão

- Blog do Noblat / Veja

Dona Michelle nada tem a ver com isso
Quem ousaria destratar o intratável presidente Jair Bolsonaro que tem por hábito fritar colaboradores antes de demiti-los com humilhação? Não foi assim com o ex-ministro Gustavo Bebianno, da Secretaria Geral da Presidência da República? E com Joaquim Levy, ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social? Bebianno saiu atirando. Levy, com elegância.

Surgiu um funcionário do governo que, sentindo-se ofendido por Bolsonaro, aplicou-lhe o cala boca mais sonoro jamais ouvido pelo capitão desde que se elegeu. Em entrevista a jornalistas estrangeiros, Bolsonaro pôs em dúvida a correção dos dados sobre o desmatamento da Amazônia coletados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). E completou ao seu modo equestre:

“Até mandei ver quem é o cara que está à frente do INPEe para vir explicar aqui em Brasília esses dados aí que passaram para a imprensa. No nosso sentimento, isso não condiz com a realidade. Até parece que ele está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum.”

Ricardo Magnus Osório Galvão, o tal “cara” citado por Bolsonaro, respondeu sem meias palavras:

“Ele tomou uma atitude pusilânime, covarde, de fazer uma declaração em público talvez esperando que peça demissão, mas eu não vou fazer isso. Eu espero que ele me chame a Brasília para eu explicar o dado e que ele tenha coragem de repetir, olhando frente a frente, nos meus olhos”.

Não será chamado. Será demitido porque chamou o presidente de covarde, e taxou de pusilânime a atitude dele. De resto, a valentia de Bolsonaro tem limite. Ela se manifesta com estridência em tribunas oficiais a salvo de retaliações imediatas. E também no ambiente protegido das redes sociais. Olho no olho, sem revólver ao alcance da mão, Bolsonaro é outra pessoa.

O esgarçamento do tecido social: Editorial / O Estado de S. Paulo

São cada vez mais frequentes as análises apontando os efeitos daninhos que o governo do presidente Jair Bolsonaro causa sobre a sociedade. Seus discursos, seus posts nas redes sociais, seus silêncios diante de determinadas situações sociais, suas intromissões em searas que não lhe competem – tudo isso estaria produzindo um perigoso esgarçamento do tecido social e político.

O comportamento de Jair Bolsonaro – essa é uma das principais críticas que lhe são feitas – estaria, de alguma forma, autorizando a disseminação de fake news, a polarização, a intolerância, a discriminação contra grupos minoritários, a diminuição das liberdades e tantos outros retrocessos civilizatórios. Muito além de eventuais erros em áreas específicas, estaria havendo um exercício do poder frontalmente contrário ao primeiro objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, tal como expressa a Constituição Federal de 1988: “Construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art. 3.º, I).

Não resta dúvida de que várias das ações do presidente Jair Bolsonaro e de membros do governo têm um nítido caráter desagregador, fomentando explicitamente a polarização e a divisão do País. Não deixa de ser estranho, no entanto, que muitos dos atuais críticos desse desmoronamento do tecido social e político operado pelo governo Bolsonaro tratem tal fenômeno como algo novo. Quem inaugurou, na história recente do País, esse modo perverso de governar foi o sr. Luiz Inácio Lula da Silva.

Não foi Jair Bolsonaro quem inventou o governo do “nós” contra “eles”. Ele simplesmente copiou o modelo petista, trocando o sinal. O que antes era dedicado aos “neoliberais” – tratados como se fossem a antítese de toda e qualquer preocupação com o interesse público, fomentadores da ganância privada e cúmplices de todas as injustiças sociais – foi agora dirigido aos “comunistas”, quando muito aos “socialistas” – que passaram a ser os grandes destruidores da moral, da economia e dos bons costumes do País.

Federação, um debate necessário: Editorial / O Estado de S. Paulo

É preciso possibilitar o surgimento e a implantação de soluções locais

Diante do enorme problema fiscal dos Estados e municípios, seria muito conveniente para as contas públicas estaduais e municipais que a reforma da Previdência atualmente em tramitação no Congresso Nacional incluísse os sistemas previdenciários dos entes federados. Essa conveniência financeira não deve, no entanto, ofuscar o fato de que o Brasil é uma Federação. A responsabilidade de estruturar sistemas previdenciários equilibrados nos Estados e municípios não é da União.

Essa situação contraditória – não é tarefa do Congresso Nacional realizar a reforma previdenciária dos Estados e municípios, mas é muito conveniente que o faça, diante das dificuldades políticas e financeiras dos entes federados para equilibrar suas contas – é mais um elemento que confirma a disfuncionalidade da Federação aqui instalada.

Os entes federados dispõem em tese de autonomia para resolver as questões locais, mas na realidade não dispõem dos meios para se autogovernar de forma livre e responsável. Em vez de enfrentar os seus problemas, recorrem à União, o que conduz à centralização e à uniformização de medidas, contrárias ao que deveria ocorrer numa federação. Além disso, tal movimento centralizador torna crônica a hipossuficiência financeira, política e administrativa dos entes federados.

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito”, estabelece a Constituição de 1988. Esse dispositivo descortina uma realidade muitas vezes esquecida – a União só existe porque existe a Federação. É a união dos Estados e municípios que dá forma à República Federativa do Brasil. A rigor, o poder concedido à União deve ser sempre exercido – essa é a sua finalidade primária – com vistas a aprimorar a Federação, isto é, a assegurar tanto a união indissolúvel dos Estados e municípios como a revigorar a autonomia de cada ente federado.

Debata-se: Editorial / Folha de S. Paulo

Plano do MEC para universidades acerta na meta de atrair setor privado, mas precisa de discussão

Em seu principal movimento na área da educação até aqui, o governo Jair Bolsonaro (PSL) lançou um programa destinado a ampliar a captação de recursos privados por universidades federais.

Batizada de Future-se, a iniciativa acerta em seus objetivos. Como demonstra à farta a experiência internacional, instituições de ensino superior que aspiram à excelência não devem depender exclusivamente de dinheiro público.

Há, no entanto, um otimismo que parece exagerado acerca da potencialidade dos meios aventados.

Incentiva-se que as universidades busquem patrocínios, receitas de aluguéis e parcerias para diversificar fontes de verbas.

O plano também prevê um fundo de natureza privada, formado a partir da venda de imóveis ociosos da União. Os rendimentos seriam revertidos para os estabelecimentos, que competiriam, ainda não se sabe como, pelos recursos.

Mesmo a Lei Rouanet poderia ser utilizada para bancar, por exemplo, museus e bibliotecas.

Cabe considerar, de início, as diferentes realidades das 63 universidades federais ativas no país.

Parcerias com setor produtivo tendem a funcionar melhor nas chamadas áreas duras do conhecimento e em grandes centros urbanos —cursos de engenharia da Federal do Rio, por exemplo.

O cenário é muito diferente na maioria das instituições, sobretudo nas criadas fora das capitais, no Norte e no Nordeste do país.

Insegurança retarda aumento de investimentos: Editorial / O Globo

Longo ciclo recessivo e persistência de incertezas domésticas contribuíram para afastar investidores

O Brasil ficou fora da lista dos 25 países que mais devem atrair investimentos este ano. É a primeira vez que deixa de constar do índice FDI Global Index, da consultoria A.T. Kearney, referência sobre o fluxo de capitais.

Em maio, informa o Banco Central, os investimentos estrangeiros diretos no país somaram US$ 7 bilhões, abaixo da estimativa do governo, que era de US$ 7,5 bilhões. Nos últimos 12 meses, o Brasil foi destino de US$ 96,5 bilhões.

China, Estados Unidos, Japão, França e Itália foram responsáveis pela maior parte desses aportes nos últimos 16 anos. Chineses lideraram, com 37% do total desses cinco países, somando US$ 71 bilhões. 

Entre 2010 e 2013 focaram em mineração, petróleo e gás. Desde 2014 sua prioridade é o setor elétrico (geração e transmissão).

Os EUA vêm em seguida, com US$ 58 bilhões. Em 2013, concentraram-se em comunicações, mas desde então privilegiam serviços, sobretudo financeiros, mas mantendo sua tradicionalmente forte presença no setor industrial. No geral, o histórico dos investidores reflete cautela em relação ao Brasil, que ainda não conseguiu sair de um longo ciclo recessivo retratado no desemprego de mais de 13 milhões de pessoas.

Paulo Mendes Campos: A uma Bailarina

Quero escrever meu verso no momento
Em que o limite extremo da ribalta
Silencia teus pés, e um deus se exalta
Como se o corpo fosse um pensamento.

Além do palco, existe o pavimento
Que nunca imaginamos em voz alta,
Onde teu passo puro sobressalta
Os pássaros sutis do movimento.

Amo-te de um amor que tudo pede
No sensual momento em que se explica
O desejo infinito da tristeza,

Sem que jamais se explique ou desenrede,
Mariposa que pousa mas não fica,
A tentação alegre da pureza.

Adriana Calcanhotto - Se acaso você chegasse