sábado, 23 de dezembro de 2023

O que a mídia pensa: Editoriais / Opiniões

Benesses a juízes erodem confiança na Justiça

O Globo

Decisão de Toffoli que restabeleceu promoções automáticas revela descompasso com realidade fiscal

Há pouco mais de um ano, o Conselho da Justiça Federal (CJF) aprovou, a pedido da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), o retorno de um benefício salarial extinto para juízes federais que entraram na carreira até 2006, com direito a pagamento retroativo. O Adicional por Tempo de Serviço é um aumento automático de 5% no salário a cada cinco anos, por isso também chamado quinquênio. Os pagamentos foram interrompidos em abril por decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), mas a Ajufe recorreu. Nesta semana, em decisão monocrática, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), restabeleceu a benesse. O custo aos cofres públicos é estimado em R$ 870 milhões apenas em pagamentos retroativos — dinheiro que fará falta neste momento de crise fiscal.

Marco Aurélio Nogueira* - Peso do passado atrapalha o País

O Estado de S. Paulo

Em condição histórica marcada pela inovação tecnológica e por abalos que sacodem a organização social, é espantoso que nossos políticos ainda atuem com os olhos para trás

Visto pela ótica do mundo, 2023 não foi um ano de que possamos nos orgulhar. Duas guerras, muito desentendimento, pressões por toda parte, poucos avanços na questão climática, ambientes políticos desgastados e sistemas democráticos com dificuldades.

No Brasil, 2023 começou carregado de nuvens golpistas. A bandalheira reacionária do 8 de janeiro mostrou que a extrema direita permanece viva. Ameaçou nossa frágil democracia, mas não a derrubou. Ao contrário, possibilitou o esboço de um pacto nacional em sua defesa, envolvendo governadores estaduais, a Presidência da República e os demais Poderes de Estado, apoiados pela opinião pública. A tentativa de golpe morreu no berço e seus protagonistas foram expostos ao ridículo. Prisões ocorreram, houve alguns ajustes de contas, Lula passou a governar, a vida seguiu em frente.

A vitória de Lula em 2022 e a instalação de seu governo imprimiram outra dinâmica ao País. A nova situação exigiu uma controversa inflexão pragmática do presidente, dadas a fraqueza parlamentar do PT e a inexistência de uma base política consistente para o governo. A consequência foi a ocupação do espaço pelo chamado “centrão”, que se impôs na organização ministerial e condicionou o curso das propostas governamentais. O governo cedeu e terminou por empoderar o Legislativo, especialmente ávido nas questões orçamentárias.

José Casado - Volta ao futuro

Revista Veja

O enredo de 2023 teve Bolsonaro milionário e acordo de Lula com a direita

No romance da democracia brasileira, o capítulo 2023 foi um enredo de perdas políticas, com potencial de inibir mudanças institucionais ainda por um bom tempo.

A derrota eleitoral do extremismo de direita expôs um talibanismo tropical e carnavalesco, na apropriada definição do escritor José Eduardo Agua­lusa, capotado numa tragicômica conspirata para derrubar o novo governo.

Resignados, alguns desistiram da gritaria tumultuosa por intervenção militar, intercalada por rituais de orações para pneus no meio da rua e de apelo a extraterrestres, com lanternas de celulares acesas sobre a cabeça. Revoltados, outros saíram a depredar as sedes das instituições em Brasília, no domingo 8 de janeiro. O delírio acabou em pesadelo para 1412 indivíduos presos três dezenas já condenados a até dezessete anos de cadeia. A democracia só não tem lugar para quem pretenda destruí-la, lembrou o juiz Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal.

Hélio Schwartsman - Blasfêmias conservadoras

Folha de S. Paulo

Oposição radical a aborto, jogo e drogas revela inconsistências do pensamento conservador

Lula e Paulo Gonet se identificam na oposição ao aborto; o Congresso ficou a um triz de não regulamentar os cassinos online, o que teria significado abrir mão de arrecadação para países menos moralistas; até o STF, aí mais por razões pragmáticas, preferiu adiar sine die o julgamento que descriminalizaria o uso de drogas.

Eu entenderia a posição dos conservadores se existissem iniciativas para tornar aborto, jogo e drogas obrigatórios para todos. Mas esse está longe de ser o caso. Quem é contra essas atividades sempre será livre para não praticá-las. Uma outra situação em que eu compreenderia a atitude conservadora é se a descriminalização/regularização trouxesse claros efeitos antissociais adicionais. Não me parece que seja o caso.

Alvaro Costa e Silva - O Brasil empacou

Folha de S. Paulo

A divisão da sociedade que marcou as eleições continua a mesma

Ao se aproximar a virada do ano, com o rastro de novos tempos, o otimismo se torna galopante e supera o pessimismo. Sete em cada dez brasileiros esperam um 2024 melhor que 2023, segundo o Datafolha. Ao tomar conhecimento da pesquisa, na hora me veio à cabeça a frase de Carlos Heitor Cony, um pessimista da linha Machado de Assis: "O otimista é basicamente um sujeito mal-informado".

Mas os panglossianos têm certa razão. Há sinais de que as coisas podem ou estão melhorando. Na área da saúde, 2023 termina com notícia surpreendentemente boa: a reversão da tendência de queda na vacinação. Oito imunizantes recomendados para o calendário infantil apresentaram aumento nas coberturas. Viva o Zé Gotinha!

Dora Kramer - A nau dos insaciáveis

Folha de S. Paulo

Emendas irrigam redutos de deputados e contribuem para engordar os cofres dos partidos

As emendas parlamentares já foram um instrumento de barganha; hoje e cada vez mais tornam-se um fator de apropriação do Orçamento da União, cujo avanço acaba por distorcer a distribuição de recursos país afora.

O dinheiro não vai necessariamente para onde precisaria ir. É usado para irrigar redutos eleitorais e atender aos interesses circunstanciais dos parlamentares. Serve para produzir votos às suas altezas.

Pode-se argumentar que, diante do montante total, a parcela reservada às emendas não chega a travar completamente a capacidade do governo de executar políticas públicas, mas o andar da carruagem preocupa porque a escalada não vai parar.

Demétrio Magnoli - Dois Estados —e uma ponte

Folha de S. Paulo

É nesse momento sombrio que paz na Terra Santa ganha nova oportunidade

"Livre, do rio até o mar". Coloque Israel no início da frase e terá o estandarte dos supremacistas judaicos que estão instalados no governo de Netanyahu e não admitem o surgimento de um Estado palestino. Coloque Palestina e terá o do Hamas, da jihad islâmica e da parcela antissemita da esquerda ocidental, que almejam a abolição do Estado judeu. Como Israel não desaparecerá e os palestinos também não, são receitas simétricas para a guerra permanente.

No meio da tragédia deflagrada pelos bárbaros atentados do Hamas e estendida pelos bombardeios indiscriminados de Israel em Gaza, parece fútil pronunciar a palavra "paz". Na guerra de propaganda que acompanha a guerra de verdade, ouve-se apenas o grito de "genocídio". Numa ponta, Netanyahu e seus cortesãos alertam para a ameaça genocida expressa no terror do Hamas. Na outra, os supostos defensores da Palestina denunciam uma "Nakba permanente" que classificam como Holocausto palestino.

Alvaro Gribel - Os feitos e os não desfeitos

O Globo

Tão importante quanto a aprovação de reformas este ano foi o não cumprimento de algumas ameaças de Lula na área

O ano termina com um saldo positivo na aprovação de reformas econômicas, mas também com uma lista de ameaças não cumpridas na área pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De um lado, houve aprovação da reforma tributária, do novo marco fiscal, e de várias medidas de recomposição da arrecadação, como diz o ministro da Fazenda, Fernando Haddad. De outro, o país não retrocedeu nas reformas trabalhista e da previdência, na mudança da meta de inflação, no marco do saneamento e na independência do Banco Central, entre outros avanços. Fica a dúvida se Lula falou apenas para agradar à militância, mas o fato é que a bolsa bateu recorde, e a inflação e os juros estão em queda.

Carlos Alberto Sardenberg – Gente, não pode!

O Globo

Bolsonaro queria ser dono do STF. Lula, sem golpes, na palavra, também quer controlar o STF. Sabe que lá está o poder único

Há algum tempo, tive uma conversa telefônica com o ministro Gilmar Mendes, a respeito da “Corte brasiliense”, assunto de que tratara numa coluna no GLOBO. O ministro ligou para questionar vários pontos, um em especial — o julgamento de políticos importantes no Supremo Tribunal Federal. Argumentava Gilmar: o fato de ser amigo de um político não impede que ele, ministro, julgue com isenção um caso que envolva aquele político.

Se bem me lembro — e lembro —, o ministro ainda levantou questão de caráter pessoal: por acaso se estava duvidando da sua imparcialidade? Meu argumento era e continua sendo: não pode julgar. Ponto. Não se trata de ética pessoal. Se o juiz é amigo do réu, convive com ele em jantares, festas e até viagens — e ainda participa de articulações políticas —, não pode julgá-lo.

Isso me parece tão óbvio que é difícil argumentar.

Pablo Ortellado - A força moral do perdão

O Globo

Que tal aproveitar o encontro de Natal e resgatar o espírito cristão?

Nossas famílias estão dilaceradas por disputas pessoais e divergências políticas. Que tal aproveitar o encontro de Natal e resgatar o espírito cristão?

Sempre me surpreendo como a mensagem cristã mais basilar, de amor ao próximo e perdão aos inimigos, pode ser soterrada e obliterada no discurso de alguns pregadores por cobranças prepotentes. O cristianismo do nosso dia a dia está muito mais preocupado em policiar e condenar condutas —sobretudo as sexuais —do que em compreender, amar e perdoar.

Isso, para mim, é o avesso da mensagem cristã. Tendemos a ser duros com quem nos ofende e complacentes com nossos erros. O amor aos inimigos e o perdão às ofensas exigem atuar em sentido contrário: evitar julgar o próximo e ser mais severo com nossos próprios equívocos.

Eduardo Affonso - Machado & outros machos

O Globo

Num país ainda mais racista que hoje, o maior escritor brasileiro se impôs à elite literária (branca) pela originalidade, humor, elegância

Machado de Assis tomou um gancho da Fuvest, fundação que organiza o vestibular da USP. Sua obra estará fora das “leituras obrigatórias”, de 2026 até 2029. Não que se tenha descoberto plágio nas reminiscências além-túmulo do elitista (e escravocrata) Brás Cubas ou misoginia tóxica nas dúvidas conjugais do sorumbático Bentinho. O maior escritor brasileiro padece de defeito pior — o mesmo de Guimarães Rosa, Gregório de Matos, Carlos Drummond: é homem.

Pode-se argumentar que ele esteve em praticamente todos os exames até agora, e é preciso abrir espaço para outros autores. Mas convém não esquecer que muita gente só leu os clássicos porque “caíam na prova”. E que foram eles que nos deram referências da boa literatura.

Cláudio Couto* - Herança maldita

Carta Capital

Neste primeiro ano, Lula viu-se obrigado a lidar com as consequências da anormalidade bolsonaresca

O terceiro governo Lula começou sob condições bem diferentes daquelas de sua primeira passagem pela Presidência, entre 2003 e 2010. À época, Lula recebeu de Fernando Henrique Cardoso um país, um governo e uma economia organizados. As relações com o Congresso, o Poder Judiciário e os entes subnacionais se davam tranquilamente, mediadas pela institucionalidade democrática. A política externa andava bem, com o Brasil em posição de destaque no cenário internacional, graças à manutenção das melhores tradições do Itamaraty e à atuante diplomacia presidencial de FHC.

No atinente às políticas públicas, programas governamentais haviam avançado nos últimos anos, dando seguimento ao esperado aprimoramento incremental que permite consolidar e corrigir rotas – algo possível em Estados política e administrativamente estáveis. Assim, Lula pôde aprimorar e aprofundar programas iniciados pelo antecessor, como o Bolsa Escola, convertido em Bolsa Família, ou o Fundef, transformado em Fundeb.

Sob Bolsonaro, o presidencialismo de coalizão converteu-se em um presidencialismo de abdicação.

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Batalha civilizatória

Carta Capital

A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro

Como sempre ocorre, a vida correu e Lula completou o primeiro ano de seu terceiro e difícil mandato. Um economista raiz, assim fala a molecada, embrenhar-se-ia no matagal de suas sapiências econômicas para esfregar as árvores de suas certezas e despejar conselhos e recomendações ao presidente. Vou escapar a tais protagonismos e agradecer a Lula por sua proeza menos celebrada, mas, em minhas modestas avaliações, a mais valiosa. A vida política nacional voltou a respirar os ares da tolerância e da busca da convergência, mesmo entre divergentes que divergem de forma radical.

Sugeri ao amigo e companheiro Gabriel Galípolo que, diante do catennaccio armado pela defesa dos adversários da civilização e da democracia, nos restam as habilidades do bom driblador. Não sabemos se as manobras do habilidoso vão culminar com a bola na rede. Tomara. No momento, resta-nos, torcedores, agradecer pelo retorno da civilidade no Brasil, mais uma vez espargida para além-fronteiras.

Marcus Pestana* - O Natal, seu espírito e suas contradições

O poeta das insignificâncias, as do mundo e as nossas, o mato-grossense Manoel de Barros, alinhavou seu “Poema de Natal”, que diz assim:

“Meu avô hoje ganhou de presente um olhar de pássaro/Acho que ele vai usar esse olhar para fazer suas artes/O mundo para ele anda muito cansado/Ele quer mudar o jeito das coisas do mundo/Por exemplo ele vai dar primavera aos vermes/O homem não vai mais fabricar armas de fogo/Só vai ter mesmo rio, árvores, o sol, bichos, pedras/ Ele vai desenhar a sua voz nas pedras/Os grilos vão se abrir no meio da noite com enormes lírios/Todo mundo vai gostar mesmo de obedecer as falas das crianças/Do que as ordens gramaticais/Os sapos vão andar de bicicleta/Depois vamos assistir ao nascimento de Deus/Será Natal/E todos vamos adotar as boas falas do filho de Deus/Amar o próximo como a nós mesmos/Então o mundo será renovado”.

Isto traduz a essência e o verdadeiro sentido do que deveríamos vivenciar na noite de amanhã. Mas o mercado é voraz. A Amazon estará operando à capacidade máxima. Todos os marketplaces estarão abarrotados de pedidos. Os shoppings lotados. A casa de Noel no lugar da manjedoura. O comércio mais que preces. Não que a troca de presentes não possa significar um gesto de amor. Mas um olhar, ainda que rápido, pelo mundo e pelo o Brasil, nos revela o quanto seria importante focar o pensamento em palavras simples de falar, tais como, paz, solidariedade, esperança, amor, justiça, liberdade, tolerância, respeito. 

Poesia | Zezé Polessa - Este Natal (Carlos Drummond de Andrade)

 

Música | Giuseppe Verdi, Và pensiero (Nabucco)