Desde maio de 2017, quando houve a primeira tentativa de derrubar o governo Temer, o país entrou num ponto morto, apesar da pulsão de confronto que acomete aquelas facções da elite política onde estão vencedores ou vencidos que ainda não viraram a página do impeachment de 2016. O enredo da trama reiterativa do trauma beneficiou-se da instabilidade provocada pelas investidas da Lava Jato e de parte influente dos meios de comunicação contra o grupo político do Presidente e de fato conseguiu eclipsar o enredo da recuperação e da travessia, que durante seu primeiro ano o governo engatara com certo êxito. Mas a coalizão de veto não logrou substituir, no cotidiano dos brasileiros, a partitura da travessia pelas do dilúvio e do apocalipse. A marcha-a-ré também travou e aqui estamos, numa situação que avaliza a metáfora do ponto morto mas já no limiar do engate de uma marcha lenta para nova partida, com a chegada da fase decisiva dos acordos e desacordos eleitorais.
Institutos de pesquisa têm providenciado o argumento que ainda faz render a novela da “faxina” e do “golpe”. As performances de Lula e Bolsonaro são filhas da insistência de se submeter ao público do pré-jogo cenários de polarização e fragmentação radicais que já não correspondem aos movimentos reais que, fora dos dois nichos, se dirigem à contenção dos discursos e à busca de alianças eleitorais. Com a convergência que ora se consolida em torno do candidato do PSDB os institutos indutores serão induzidos a trocar o disco para sintonizarem a nova música. Assim, outubro vai se firmando no horizonte político como encontro esperado, que vale ponto, mesmo cheio de ressalvas e sobressaltos.
A pinguela balança mas não cai e a caravana vai passando. Não chega a ser um samba popular de partido alto nem a pista é avenida larga, mas o eleitor terá como cantar seu chorinho por ruas e ladeiras cujos paralelepípedos seguem inteiros e no lugar. Alguns serão retirados se - e somente se - o eleitor quiser e do modo que pregava Joaquim Nabuco: a nível e compasso, um a um, como foram colocados. A transição a algo novo, um novo cujos traços ainda são em boa parte ignorados, segue na marcha do método conservador, por isso irá além de outubro, mas não parece que será evitada.
Houve danos, há sequelas. O que poderia ser construção tornou-se resistência, devido a revezes impostos pela Lava-Jato ao sistema político e também à pouca virtù da elite política. Disparando fogo amigo e inimigo contra o governo ela agiu na contramão do entendimento e da moderação, virtudes da nossa tradição política que o governo procurava praticar. Por outro lado a elite política insistiu no cultivo do lado não virtuoso, patrimonialista, da mesma tradição, sem nesse caso se poder excetuar a facção governante, muito pelo contrário, a julgar pelo rol de novos residentes de Curitiba.
Os fogos amigos e inimigos partiram de atiradores situados muito além do previsível e proverbial populismo de Jair Bolsonaro. A oposição de esquerda alvejou, por exemplo, a Petrobras que seus ícones políticos já haviam alvejado quando eram governo e pediu, sem recato ou cerimônia, a volta da política antiga. O Presidente da Câmara, na greve dos caminhões, violou a matemática e, como em outros momentos, também a ética da responsabilidade, como se a desmoralização do governo pudesse servir de trampolim para um salto pessoal que poderia ser mortal para a instituição que preside. E o partido dos tucanos, de um modo geral, não se conduziu à altura do compromisso público que assumiu ao emprestar o peso da sua influência à viabilização do impeachment.
Tomo esses exemplos como representativos da atitude mais visível na elite política quanto ao destino do pacto que levou Temer ao governo. O conjunto revela padrão deficiente de interação política. Se escapamos de ardis dos amantes de esquinas e teremos eleições, elas decerto avaliarão esse padrão.
Talvez pela consciência desse fato tem havido correções de rota à medida em que se aproximam datas decisivas do calendário pré-eleitoral. Isso ocorre tanto no profissionalíssimo ambiente do chamado Centrão como no da articulação, ao mesmo tempo periférica e crucial, do chamado Polo democrático e reformista. Dois blocos de forças, ao tempo em que se unem e tornam competitivo o candidato tucano, iniciam uma competição interna à aliança. De um lado, quatro ou cinco partidos do Centrão ou a ele ligados (DEM, PP, PR, PRB e talvez SD) e do outro cinco do Polo (PSDB, PSD, PPS, PV, PTB). A hipótese de que alguns desses partidos transitem entre um bloco e outro faz parte do jogo. O árbitro central, desde a preliminar, será o candidato, mas o juiz de vídeo já será o eleitor. Em caso de vitória eleitoral, o campeonato seguirá até a montagem e exercício do governo. Aí o árbitro central recrutará mais auxiliares dentre aqueles que passarem pelo crivo eleitoral preliminar do árbitro de vídeo. Em caso de derrota, os juízes serão outros e não se sabe se o jogo também será.
Há ainda a considerar que antes do eleitor entrar em cena três outros jogadores, de variáveis relevos, ainda podem entrar nesse time dos sonhos do sistema político: o MDB, o PSB e o Podemos. Aqui não incluo a Rede, face ao seu perfil de estilingue e por mais motivos que serão comentados adiante.
O MDB poderá dar agora aos antigos aliados o apoio que lhe foi negado por eles a partir de 2017. Aliás, se o partido mantém um pré-candidato à parte, o governo não lava as mãos e já atuou para tirar o Centrão de Ciro e jogá-lo para Alkmin. Cedendo aos fatos o MDB poderá fazer o entendimento abrindo mão da primazia e reconhecendo a provisória posição de maior força do outro parceiro grande, no caso o PSDB. Esse último, fiel ao seu estilo, não cortejará o MDB em público para além das formalidades. Nem o PSDB nem o Centrão fazem, por ora, questão de passar recibo do apoio de um MDB com alta expertise em ser decisivo, sendo fiel da balança. Mas o tucanos sabem que sem aquela geni não consolidarão a posição predominante. O MDB, ainda virtual aliado, já é relevante sócio oculto e, a essa altura, ansioso para sair da posição de primeira vidraça.
Quanto ao PSB, as duas canoas em que pôs seus pés desde 2015 (a do impeachment e a do lulismo) parecem agora ser embarcações impróprias para levar o partido a um porto seguro. Se voltasse à primeira canoa, apoiando Alkmin, prestaria louvável serviço ao polo democrático e reformista que tenta levar o candidato a posição centrista, sem adernar à direita. Mas se arriscaria a perder suas posições eleitorais no nordeste, preço alto demais. Se ficar na segunda canoa pode prestar um serviço aos moderados do PT mas se arriscará, junto com eles, a ser tragado pelo abraço de afogado de Lula, que tentar interceptar a recepção dos socialistas a Ciro Gomes. Mas como o casco grosso dessa óbvia terceira canoa também parece ter furos, o partido pode até optar por não optar. O liberou geral já vigora e ninguém segura mais, haja ou não uma votação na cúpula ou até um candidato próprio.
A questão do Podemos é menos complexa. Entre a sua busca de vencer a cláusula de barreira por uma articulação nacional e o voo solo de Álvaro Dias a primeira tende a prevalecer, formalmente ou não. Sinal de que, em meio aos seus pesares, o sistema político produz regras que, no intuito de conservar a competividade de atores tradicionais, acabam reforçando a institucionalização do sistema partidário contra scripts personalistas. Um bem público colateral, derivado de vícios privados gerais.
Se o time de Alkmin ganhar esses jogadores - mesmo pontual e oficiosamente, graças a liberou geral para dissonâncias estaduais no MDB e no PSB -, o arco político que viabilizou o impeachment.estará politicamente recomposto, por mal traçadas linhas e ao preço de uma crise que se arrastou mais do que precisaria. O novo seria a troca de pilotos, saindo o MDB, entrando uma sociedade entre PSDB e Centrão. Possível implicação dessa troca é a criação, em 2019, caso Alkmin vença, de situação análoga à que em 2003 levou Lula, em busca de base parlamentar, a rejeitar o PMDB como aliado preferencial para montar o balcão varejista mais tarde conhecido como Mensalão. No Brasil pós-Lava Jato, se o PSDB não tiver repertório alternativo a esse varejo – repertório político, não bom mocismo udenista ou tecnocrático – poderá ter mais dificuldades do que teve o PT àquela época.