Ingrid Fagundez e Ligia Guimarães / BBC News Brasil
SÃO PAULO - No fim de 2018, quando perguntado sobre suas expectativas em relação ao governo de Jair Bolsonaro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso era cauteloso: dizia preferir esperar as ações do líder recém-eleito para avaliar se seus "temores" se confirmariam.
Hoje, há três meses sob a nova administração, o tucano é mais taxativo. Bolsonaro, diz, é pior do que ele esperava. Quase cem dias depois da posse, o sociólogo de 87 anos afirma não ter visto "nada" do governo.
"Por que ele foi eleito? Ele falou temas que sensibilizaram: violência e corrupção, basicamente. Temas que pegaram a onda. Mas ele não disse 'eu vou fazer um Brasil de tal a qual modo'. Tanto que agora ele não sabe o que vai fazer. Vai mudar o quê?", diz, em entrevista à BBC News Brasil na sede do Instituto FHC, no centro de São Paulo.
Para o ex-presidente, a nova gestão está sem rumo. As falhas, na sua análise, são muitas: falta projeto para o país, falta aprender a se relacionar com o Congresso, falta até se comunicar com a população para explicar medidas consideradas fundamentais pelo governo, como a reforma da Previdência.
Ele cita a experiência do Plano Real, quando, como ministro, liderou a articulação em prol da aprovação da proposta. "Não tinha medo de bicho papão. Fui falar do Plano Real até no programa Silvio Santos", diz. "Na reforma da Previdência, o presidente tem que se meter. Ou algum ministro que seja quase presidente."
Guedes sem sessão da CCJ, da Câmara; para FHC, ele age como professor com os parlamentares, não como político
Mesmo o ministro da Economia, Paulo Guedes, que foi duas vezes ao Congresso tratar da reforma da Previdência, esbarra no tom de "professor" ao falar com os parlamentares, diz FHC.
"Fui ouvir o debate com o ministro da Economia no Senado. Bom, ele dizia coisa com coisa, né?
Abstratamente. Agora, quando chegava o negócio da política, ele dizia 'mas não é meu terreno'.
Como não é seu terreno? Ou tem o terreno da política ou não existe a transformação do governo num objetivo e num processo."
Distante das atividades do PSDB desde que deixou a Presidência ("nem sei onde fica o diretório"), mantém contato com alguns de seus pares na sigla. Os mais frequentes, diz, são o ex-governador Geraldo Alckmin e os senadores Tasso Jereissati e José Serra. "E o (governador João) Doria, mais raramente..."
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
• BBC News Brasil - Em seu último livro, o senhor fala bastante sobre seu exílio durante a ditadura, período em que perdeu seu pai, e foi aposentado compulsoriamente da USP. Como viu a divulgação do vídeo em defesa do golpe militar pelo Planalto?
Fernando Henrique Cardoso - É uma coisa historicamente inconsequente, né? E era também uma vontade que corresponde a esse tipo de coisa do [Donald] Trump, de idealizar o passado. Dizer "não foi assim, foi diferente". Quem passou pela época sabe. Começa pela imprensa.
Olha, trabalhei num jornal chamado Opinião, da imprensa nanica. Como é que se fazia? Você escrevia um artigo e às vezes vinha o redator-chefe e dizia "olha, essa frase não passa". Quantas vezes no jornal não saíam poesias, que era a maneira de dizer "fui censurado"?
Então você dizer hoje que não houve ditadura, que não houve um movimento de controle da liberdade, é completamente desassisado. Por que se diz? Porque a política não é feita por historiadores, é feita por personagens ativos, incentivando o medo.
• BBC News Brasil - O senhor fica mais preocupado quando isso vem institucionalizado, quando vem do Planalto?
FHC - Sim, claro que preocupa. Mas se você comparar com o que aconteceu em 1964... Em 1964, havia Guerra Fria. Era uma realidade, não era uma invenção. Havia um alinhamento político ora para um lado, ora para o outro. Hoje não tem essa realidade. Mesmo que venha do Planalto, como você vai assentar essas coisas que o Planalto quer colocar como verdade? No passado, tinha [uma forma], porque de fato havia briga, havia União Soviética, hoje não tem.
Você vai dizer o quê? O perigo vem da China? A China está preocupada em vender o que produz.
• BBC News Brasil - Ao falar sobre as novas versões históricas a respeito do golpe de 1964, o senhor disse que elas são prejudiciais para o futuro do país. Muito se discute hoje sobre ameaças à democracia brasileira. Vê esse risco?
FHC - Sobre o Brasil, quando as pessoas dizem o que você acabou de me perguntar, querem dizer o seguinte: há o perigo de um regime sem liberdade. Sempre há, você tem que prestar atenção. Mas não acho que possamos comparar com 64 porque em 64 havia um confronto real entre concepções do mundo ancoradas em Estados, simbolicamente a União Soviética e os Estados Unidos. Você tem diferenças no mundo hoje, mas não tem mais ideologias ancoradas só num Estado. É mais difuso.
Por outro lado, no passado, os partidos de esquerda e de direita tinham não só uma ideologia como se organizavam. Eles queriam representar interesses de classe. Não há isso no Brasil de hoje. Estive recentemente na Europa e era uma dificuldade, porque os jornalistas me perguntavam na pressuposição de que isso existia. E não há.
Quem votou por A, B ou C no Brasil, não votou numa concepção orgânica, votou numa pessoa que emitiu sinais que captaram um sentimento.