Voto distrital será a melhor opção para fundamentar um novo avanço no sistema de representação eleitoral no Brasil.
Dizem que a reforma política é a mãe de todas as reformas. E é verdade, porque cuida da reforma de como determinar o poder no Estado. E o Estado é a nossa segurança. É ele que estabelece as leis e as faz cumprir; é ele que cuida dos nossos interesses como nação; é ele que garante a vontade da maioria e os direitos das minorias. E o poder do Estado, diz nossa Constituição, ".... emana do povo, que o exerce por meio dos seus representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição".
O que se propõe neste artigo é considerar brevemente como hoje se expressa essa emanação do poder e em que ela é passível de melhoria para representar a vontade popular.
Na construção da democracia, o Estado brasileiro já venceu algumas etapas. É república e não monarquia, é presidencialista e não parlamentarista. O voto é de todos e secreto. Os poderes da República são três: Executivo, Legislativo e Judiciário; só os dois primeiros são objeto do voto popular.
Ocupêmo-nos, pois, em ver quanto a constituição do Executivo e do Legislativo corresponde à vontade popular.
Neste trabalho, para verificar a maneira de aferir a vontade popular e a acuidade dessa aferição, examinaremos quatro itens:
- Um homem, um voto
- Os partidos
- A circunscrição eleitoral
- O financiamento das campanhas
Depois mencionaremos alguns problemas pontuais mais importantes, como também progressos feitos. Finalmente, a conclusão.
Um homem, um voto
É uma proposição que, ao bom-senso, parece evidente. A cada cidadão deveria corresponder um voto. Por que seria alguém menos importante do que o outro? O tempo do voto censitário já passou. Naquela época, somente votava quem tivesse propriedades ou certa renda ou, mesmo, se fosse alfabetizado. Vencemos essa etapa. Todo brasileiro, nato ou não, alfabetizado ou não, maior de 16 anos, tem direito ao voto.
O quadro na página 15 mostra a distribuição de votos no Brasil para o Legislativo. São 135 milhões de eleitores, que se distribuem pelas 513 cadeiras da Câmara dos Deputados e 81 assentos no Senado. Essa distribuição é feita proporcionalmente ao número de eleitores, mas limitada aos tetos impostos a cada Estado. Não há Estado com menos de 8 deputados, nem mais de 70. No Senado, cada Estado tem 3 representantes.
A aplicação desses princípios traz, entre outras, a consequência de que 84% dos eleitores brasileiros elegem apenas 77% dos deputados e, no Senado, 16% dos eleitores elegem a maioria, isto é, 42 senadores.
Enquanto dar-se um número mínimo de cadeiras (8) na Câmara dos Deputados a Estados com escassa população parece atender a uma preocupação razoável, não parece acertado punir os brasileiros residentes em Estados mais populosos, diminuindo o peso do seu voto em relação aos demais. No Senado, a desproporção de, com 16%, fazer-se a maioria, dispensa comentários.
Os partidosUm dos progressos da organização democrática é a formação dos partidos. Eles são o caminho encontrado e hoje necessário entre o povo e o poder. Os cidadãos devem organizar-se em partidos para, juntos, sob um determinado programa, postularem o comando. Sem o partido não se chega ao poder.
É necessário, portanto, que o partido seja um instrumento da adequada expressão da vontade popular e não uma camisa de força (como seria no caso da lista única, como veremos adiante).
Por terem os partidos essa importância central no exercício da democracia, levantam-se os seguintes pontos passíveis de aperfeiçoamento:
a) Representatividade - Quão representativa deve ser uma sociedade para poder denominar-se partido e gozar dos seus privilégios? A Constituição Federal é muito modesta nas exigências de representatividade para que os partidos tenham essa qualificação (art. 17).
Há algum tempo houve uma lei que criava a "cláusula de barreira". Exigia que os partidos tivessem maior representatividade para receberem esse título. Infelizmente, o STF entendeu que tal exigência era inconstitucional. Ficamos, assim, com 27 partidos, como fator de distorção, dos quais vários apelidados de "nanicos" e sem terem eleito um representante sequer.
b) Disciplina partidária - Uma das consequências desse grande número de partidos é a necessidade de o Executivo, sem maioria no Congresso, compor-se com muitos partidos. O Executivo está refém dessas barganhas e, com isso, toda a eficiência da máquina governamental. As empresas públicas ficam com a sua governabilidade extremamente comprometida.
c) Aumento de poder dos partidos - Apesar de toda essa fragilidade e falta de representatividade dos partidos, há quem proponha a adoção de lista única partidária para a eleição de deputados federais e estaduais, como para vereadores.
Aos partidos seria dado privilégio/incumbência adicional. Além de serem os canais necessários utilizados pelos cidadãos para se candidatarem, os partidos fariam uma seleção de candidatos e estabeleceriam com qual preferência deveriam receber os votos. Assim, os eleitores, em vez de votarem em determinado candidato, votariam em um determinado partido, que distribuiria os votos de conformidade com uma escala prévia dos candidatos, incluindo nomes que talvez não sejam do gosto do eleitor. Em outras palavras, para votar em "A", se teria também que votar em "B", e quem determina isso é o partido. Evidentemente, essa proposta afasta a transparência da emanação do poder pelo povo, objetivo inicial da democracia, e transforma o partido em camisa de força.
Pode-se ver um excesso no exercício do poder dos partidos também na maneira pela qual são escolhidos os candidatos, sobretudo aos cargos executivos. Os candidatos a presidente, por exemplo, têm saído sempre de acordos de cúpula.
A circunscrição eleitoral
A circunscrição eleitoral, nas eleições presidenciais, é todo o Brasil. Aqui sim temos um homem, um voto. O voto do eleitor do Amapá conta tanto quanto o do eleitor do Rio Grande do Sul.
Já para os governadores e deputados federais e estaduais, a circunscrição eleitoral é a do seu respectivo Estado. Assim também os senadores. Para os prefeitos e vereadores, a do seu município.
Com referência aos deputados federais e estaduais, sua circunscrição eleitoral é todo o Estado. Está aqui, em nosso entendimento, o principal ponto a se corrigir no ordenamento político. Tomemos como exemplo o Estado de São Paulo, assumindo que a situação é semelhante nos outros Estados.
A Câmara Federal constitui-se de 513 deputados e a cota de São Paulo é de 70. A Assembleia Legislativa de São Paulo tem 94 assentos. Tanto os 70 como os 94 lugares devem ser preenchidos por deputados aqui eleitos. Para isso, os partidos registraram nas últimas eleições 1.276 candidatos, que disputavam 70 vagas (Câmara Federal) e 1.976 candidatos para as 94 vagas da Assembleia Legislativa (no total, 3.252 candidatos).
Portanto, os eleitores - você que me lê, eu, todos nós -, nos defrontamos com uma lista de 3.252 candidatos. Primeira pergunta: em quem votei na última vez? Não me lembro. Se me lembro, o que fez ele? Não sei. O contato eleitor-eleito, se não é nulo, é quase. E o custo dessa eleição!? O candidato não tem um grupo interlocutor certo. Tem que distribuir sua propaganda por todo o Estado. E, em todo lugar, seu mais temido adversário é o colega de partido que também anda por todo Estado, a procurar a mesma coisa e com o mesmo programa: votos.
O custo de uma campanha para deputado federal foi estimado, em 2010, entre R$ 1 milhão e R$ 6 milhões. O salário do deputado federal hoje (depois do aumento) é de R$ 26,7 mil. Como ele vai pagar esses custos?
Só há uma maneira de reduzir drasticamente o custo da campanha para deputados e melhorar o relacionamento/conhecimento entre eleitor e representante: aproximar o deputado do eleitor pela criação do distrito eleitoral.
Em um distrito eleitoral, seriam apresentados, por partido, um candidato para deputado federal e outro para estadual. Portanto, com 27 partidos o eleitor confrontar-se-á, no máximo, com 54 candidatos (em vez de 3.252, como vimos antes). O custo é extraordinariamente menor, o eleitor pode conhecer o seu candidato e acompanhar seus trabalhos.
A criação desses distritos ficaria a cargo da Justiça Eleitoral, o que daria a possível garantia da sua lisura.
A grande dificuldade para fazer essa alteração é o receio dos deputados: é certo que será para melhor, mas o será para mim? Hoje recebo votos oriundos de todo o Estado. Qual será o melhor distrito para mim? Conseguirei que o meu partido me indique no quadro desse distrito?
A vantagem do voto distrital é tão grande que suplanta o possível risco de a proporcionalidade partidária não ser representada no resultado final. (Os eleitos nos distritos não representariam a maioria da somatória de todos os votos).
Financiamento das campanhasOs candidatos precisam chegar aos eleitores e isso custa dinheiro (custará menos se eleitores e candidatos estiverem em um distrito). De onde devem vir esses recursos?
No Brasil, hoje (com certas limitações, em casos específicos) são permitidas doações de pessoas físicas ou jurídicas sem qualquer limitação (a não ser a própria capacidade do doador) e doações do Estado (tempo de televisão e contribuições para o fundo partidário).
Essa situação de contribuições sem limites traz distorções ao processo eleitoral. Favorecem-se os partidos com maiores possibilidades de assumir o poder ou mais coniventes com a corrupção ou, enfim, aqueles que têm o apoio das classes mais ricas.
Criar as mesmas condições para colocar o candidato próximo do eleitor com os menores custos (voto distrital) é condição da democracia e, consequentemente, obrigação do Estado. Isso, quanto aos gastos. Com referência aos recursos, tudo aconselha adequar a cota pública e restringir a contribuição a pessoas físicas e até certo montante.
Já hoje, a cota pública representada pelo fundo partidário não é pequena. Noticia "O Estado de S. Paulo" (15/1/2011) que o Executivo deverá, em 2010, destinar para esse fundo R$ 265 milhões, dos quais o partido mais beneficiado receberá R$ 42,8 milhões e o menor partido, R$ 510 mil.
Entraves váriosDemos antes as grandes linhas da representação na democracia. No dia a dia, aparecem ainda certas figuras que, por vários aspectos, se mostram negativas. As mais importantes são a coligação e o suplente de senador.
A coligação é o acordo pelo qual partidos políticos estabelecem que vão concorrer em determinada circunscrição (país, Estado, município) juntamente com outros partidos. Essa prática parece nefasta, porquanto enfraquece o pouco que ainda existe de sentido doutrinário dos partidos e estimula partidos menores a receberem candidatos "bons de voto" independentemente do seu conteúdo pessoal (por exemplo, Tiririca).
Veja-se agora a questão do suplente de senador. Manda o princípio federalista que cada Estado tenha sempre três representantes. Como fazer, então, quando ocorrer a vacância do assento de um dos três (morte, invalidez, licença por qualquer razão, assunção de um ministério etc.)? O candidato a senador apresenta-se à eleição com um suplente que, com ele, será eleito. O que ocorre, na prática, é que o eleitor não conhece nem fica conhecendo o suplente. Sem erro é possível afirmar que a representatividade desses suplentes é muito baixa, além de o expediente possibilitar negócios financeiros, como o suplente financiar o candidato aparente.
ProgressosNosso caminho democrático também registra progressos, não tanto por iniciativa dos nossos representantes, mas por iniciativa popular e dos tribunais.
Duas iniciativas populares transformaram-se em lei, com alto valor moralizante na "emanação" da vontade do povo. São elas: mais de um milhão de assinaturas (lei 9.840/99) contra a compra de votos, e 1,3 milhão assinaturas (lei 135/10), da ficha limpa.
Todos nós sabemos quanto essas leis ajudam no aperfeiçoamento da democracia. Entre outras virtudes, nos fazem pensar que a coisa pública diz respeito a todos nós e está ao nosso alcance influir sobre ela.
Devemos também mencionar o Judiciário, que, por decisão interpretativa sua, criou regras que aperfeiçoam o funcionamento partidário, garantindo razoável disciplina, dificultando a troca de partidos.
ConclusãoA ideia básica que norteia o conceito de democracia é a de representar adequadamente a vontade do povo. Sem dúvida, o melhor é ter a democracia direta, como existe ainda, para alguns casos, em certos cantões suíços. Os cidadãos reúnem-se na praça, ouvem as proposições e votam. Não há intermediação, não precisa haver partidos nem propaganda. Isso, porém, no Brasil, com 135 milhões de eleitores, não é possível. Por essa razão é que se formam, nas democracias modernas, instrumentos para canalizar a vontade popular. É necessário, porém, que essa "canalização" não distorça a vontade popular. Ela será tão mais adequada e acertada quanto mais perfeitamente trouxer a vontade popular para os parlamentos e seu funcionamento.
O voto distrital é o que de melhor se pode fazer para trazer o candidato ao eleitor. Se não podemos mais decidir as questões em praça pública, que ao menos o façamos em um círculo humanamente compreensível, que é o distrito. Com isso, o eleitor pode ter um contato direto com o candidato, diminuindo consideravelmente o custo eleitoral e aumentando a possibilidade de contato eleitor-eleito.
Com referência ao dinheiro despendido em campanha, deve ser o menor possível. Deve importar o valor do candidato e não o enfeite do marqueteiro. Se isso não é possível nas eleições para o Executivo, nas quais, no regime presidencialista, o voto é em toda a região a ser administrada (país, Estado ou município), é possível nas eleições para deputado e vereador, com a utilização do princípio do voto distrital. O ideal é que o financiamento preponderante seja o do poder público.
Finalmente, como ressaltamos de início, há uma permanente procura de aperfeiçoamento da experiência democrática, em todo o mundo. No Brasil, temos que reconhecer que, apesar de tantas imperfeições que ainda nos infelicitam, temos feito belos progressos. É uma experiência que é vivida, discutida e na qual caminhamos para a frente. Sem falsa modéstia, acho que estamos de parabéns, o que não nos deve desestimular do muito que ainda há por fazer e que depende do esforço individual, corporativo, da imprensa, do Judiciário e do Legislativo. Cabe a cada um assumir sua responsabilidade.
Fernão Bracher é ex-presidente do Banco Central e do Itaú BBA.
FONTE: VALOR ECONÔMICO