O Globo
Instituições não servem de obstáculo a que grupos criminosos empreendam ação tão escancarada como assassinato dos médicos
Enquanto os Poderes se digladiam para ver
quem fala por último no momento em que a Constituição de 1988 completa 35 anos,
o risco concreto — escancarado na cara de todos em eventos trágicos como o
assassinato dos três ortopedistas no Rio de Janeiro — é que, aos poucos, nenhum
deles seja mais respeitado, e a anomia social (e estatal) se instale no Brasil.
Quem cunhou o conceito de anomia social foi o
sociólogo Émile Durkheim, que o descreveu como ausência de regras para guiar o
comportamento de indivíduos numa sociedade em momentos de grandes mudanças
econômicas, sociais ou políticas.
O que se presencia no Rio de Janeiro e na Bahia, de forma aguda, mas no país todo de modo crônico, em relação ao avanço das diferentes organizações criminosas, sejam elas do tráfico de drogas ou das milícias, é um avanço cada vez mais ousado sobre territórios e também sobre as instituições, sem parecer que haja qualquer preocupação com a capacidade de o Estado lhes fazer frente.
A discussão que tomou conta dos noticiários, das redes sociais e dos plenários das Casas Legislativas — sobre se a execução dos médicos foi um crime político — nasce de uma preocupação menor e equivocada. Nada indica que a motivação para a barbárie tenha sido o fato de uma das vítimas ser o irmão da deputada Sâmia Bomfim. Mas isso não tira do crime seu caráter político na acepção mais preocupante: de as instituições não servirem de obstáculo, de anteparo para que grupos criminosos decidam empreender uma ação tão escancarada. O temor do poder de contenção do Estado foi abolido, o que nos leva perigosamente a flertar com a anomia.