quarta-feira, 1 de julho de 2020

Raul Jungmann* - O colapso do presidencialismo de coalizão e de colisão

- Capital Político

Desde a retomada das eleições diretas pelo poder civil em 1985 que todos os presidentes eleitos optaram por construir uma ampla coalisão multipartidária no Congresso Nacional para governar. Os motivos eram, e continuam sendo, a fragmentação partidária, a necessidade de reformas constitucionais exigirem quorum qualificado de três quintos e o fato de o partido do Presidente jamais exceder a 20% dos deputados.

A esse método ou sistemática de governar deu-se o nome de “presidencialismo de coalizão”. Isto porque, sinteticamente, em troca dos votos necessários para fazer passar seu programa de governo, o chefe do Executivo deve abrir espaços na administração pública não só para representantes dos partidos que compõem a sua base, mas também ampliar apoios.

Esse modo de governar foi duramente atingido por uma série de escândalos, cujo ápice se deu na operação Lava Jato. Porém, dada a estrutura e dinâmica da política brasileira, permanece impossível governar sem lançar mão dele, à falta de uma ampla reforma política.

O Presidente Jair Bolsonaro decidiu abrir mão do sistema, dispensando a alternativa habitual de uma ampla coalisão multipartidária para governar. Eleito num momento de ampla rejeição da política, dos políticos e dos partidos, entendeu que não deveria alinhar-se com a “velha política” e seus métodos, incluído o “presidencialismo de coalizão”.

Ainda assim, há que governar e entregar o que prometeu, o seu programa de governo, o que só é possível com votos suficientes no parlamento. Como fazê-lo? Emerge então o “presidencialismo de colisão”, cujos alicerces básicos são os seguintes:

Merval Pereira - Como farsa

- O Globo

Estratégia deu certo para Lula, que se reelegeu em 2006, mas Bolsonaro não conta a economia a seu lado

O comportamento do presidente Jair Bolsonaro desde a prisão de seu amigo Fabricio Queiroz assemelha-se ao de Lula depois do escândalo do mensalão em 2005. A estratégia deu certo para Lula, que se reelegeu em 2006 mas, diferentemente, Bolsonaro não conta com a economia a seu lado. Naquele ano as exportações bateram recorde, o Real valorizou-se, a inflação ficou sob controle. A economia mundial estava crescendo, e o Brasil, apesar da crise política, conseguiu captar dinheiro no exterior.

As denúncias de corrupção não causaram grandes danos imediatos à popularidade de Lula, que tinha um índice de ótimo ou bom de 36%, mas em dezembro daquele ano de 2005 o Datafolha já registrava que esse índice caíra para 28% da população, o menor nível desde seu primeiro dia no Palácio do Planalto.

No dia em que o publicitário Duda Mendonça confessou na CPI dos Correios que recebera dinheiro ilegal em um paraíso fiscal como pagamento da propaganda para a campanha presidencial que elegeu Lula em 2002, houve choro no Congresso, e daí nasceu o Psol, com dissidentes do PT.

Foram meses com o fantasma do impeachment rondando o Palácio do Planalto, e houve até mesmo uma tentativa de acordo, levada a cabo pelos ministros Antônio Palocci, da Fazenda, e Marcio Thomaz Bastos, da Justiça, para que a oposição não insistisse no processo, com o compromisso de Lula desistir da reeleição.

Zuenir Ventura - O que mais se despreza

- O Globo

Coube a Bolsonaro endossar como verdadeiros os dois títulos falsos

O constrangimento maior nessa história do currículo de Carlos Decotelli, que deixou o governo ontem antes de tomar posse, acabou ficando por conta de Bolsonaro porque, ao fazer o anúncio oficial do novo ministro, coube a ele a primazia de endossar como verdadeiros os dois títulos falsos de Decotelli, que não era nem “doutor pela Universidade de Rosário, na Argentina”, e, portanto, nem “pós-doutor pela Universidade de Wüppertal, na Alemanha”. O plágio foi descoberto depois.

A mentira, como se sabe, tem pernas curtas. No dia seguinte, o reitor argentino Franco Bartolacci foi o primeiro a desmentir as inconsistências do currículo: “A tese dele foi avaliada negativamente. Ele não concluiu o doutorado”.

Esta semana foi a vez de a universidade alemã informar ao GLOBO que não concedeu qualquer título a Decotelli, muito menos o de pós-doutor. O que ele fez, segundo o desmentido, foi realizar uma pesquisa de três meses naquela universidade. O que Bolsonaro precisa explicar é como ele, que se orgulha de ter “um sistema de informação particular que funciona”, como já declarou, não conseguiu realizar a simples operação de checar currículos.

Rosângela Bittar - Insinceridade geral

- O Estado de S.Paulo

A fábula de como se faz um governo aleatório encontrou a simbologia máxima

Com toda a ambiguidade que imprime às suas manifestações, o presidente Jair Bolsonaro não conseguiu disfarçar, já na segunda-feira, o desfecho que só viria ontem: o convidado e nomeado estava dispensado da posse. Na nota com que se despediu do seu terceiro ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, depois de uma reunião improvável em que teria tido paciência para ouvir detalhes técnicos da estrutura curricular da pós-graduação, os elogios feitos pelo presidente se destinavam a consolar a si mesmo, por tê-lo escolhido, e a eximir de culpa os militares, por tê-lo indicado.

Motivação igual teve para dar-lhe a tribuna de 24 horas em que ainda contaria com audiência para se explicar. O que, convenhamos, foi atitude mais elegante do que a da Fundação Getúlio Vargas, que o renegou muitas vezes depois de prestar-lhe homenagens anos a fio pelos cursos que promoveu na instituição. Constatou-se que a FGV foi mais relapsa que a Abin.

Para ser ministro da Educação não é necessário ter doutorado. Mas é preciso ter decência. Este caso não deu para desentortar, como já se fez com tantos outros, inclusive nesta gestão, mas pode ainda inspirar o pensamento sobre o processo e o método de formação do governo Bolsonaro.

A fábula de como se faz um governo aleatório, sem critério e sem identidade, encontrou a simbologia máxima. Convite feito e aceito, ganhou a desculpa da urgência pelo rumo imediato exigido pela área em causa, a começar pela sua atividade mais elementar, o funcionamento das atividades em sala de aula. Nenhum filtro, nenhuma informação ou análise mais profunda sobre alguém que havia ingressado na história do Brasil há apenas cinco dias, levando na bagagem de chegada uma bomba de detonar a partida.

Vera Magalhães - Até o totó era fake

- O Estado de S.Paulo

Cãozinho Augusto e ministro mitômano povoam anedotário bolsonarista

E eis que, quando as atenções do Brasil estavam voltadas para o currículo a la “jogo dos sete erros” do novo-ex-ministro da Educação, vem a bomba, por avisos de push dos jornais: “Cachorro adotado pela família Bolsonaro já tem dono e será devolvido”.
É verdade que estamos calejados com tantos absurdos, que parecem pastiches de livros de realismo mágico e viraram diários nesses tempos de pandemia. Mas essa manchete, combinada às sucessivas erratas no currículo lattes (até aqui cabe trocadilho) de Carlos Decotelli, foi demais até para quem acompanha o enredo dia a dia.

Sim, faltava um mascote ao anedotário do bolsonarismo. Agora não falta mais. Augusto (talvez nunca saibamos se o nome era homenagem a algum dos Augustos próximos ou a Augusto Pinochet, ditador de estimação da família) na verdade era Zeus. Já tinha dono e teria de ser devolvido, depois de acolhido pela primeira-dama, Michele Bolsonaro.

Os memes vieram imediatamente: nem cachorro Bolsonaro consegue fazer durar no posto; nem o cachorro aguentou esse governo, e por aí vai. A hashtag Bolsonaro ladrão de cachorro (!) foi levada aos temas mais comentados do Twitter. O fato é que a piada foi elevada a categoria política na nova era, dada a dificuldade, em vários episódios, de se encontrar balizas sérias para analisar os acontecimentos.

Ricardo Noblat - O ministro que entrou no governo vestido e saiu nu

- Blog do Noblat | Veja

Decotelli, a fake news em pessoa
Deve-se ao governo de Jair Bolsonaro, o presidente acidental, a criação de uma nova categoria de servidores públicos – a “Quase”. O primeiro a inaugurá-la foi Carlos Decotelli, o quase ministro da Educação. Nomeado há 5 dias, caiu antes de ser empossado.

Decotelli entrou no governo como ex-oficial da Marinha, professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor pela Universidade Nacional de Rosário, na Argentina, e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Saiu sem nada. Nu.

Um dia antes de ser forçado a pedir demissão, ele havia reescrito seu currículo pela quinta vez – desta, para acrescentar o título de ministro. O que fazer agora? Reescreve de novo ou deixa como está? Afinal, sua nomeação foi publicada no Diário Oficial.

Bolsonaro sentiu-se enganado por Decotelli e não disfarçou seu aborrecimento ao recebê-lo, ontem, no Palácio do Planalto. A audiência de despedida não durou 15 minutos. Bolsonaro sequer leu a carta de demissão para analisar se era de fato autêntica.

O encontro foi testemunhado por um só ministro – o general Braga Neto, da Casa Civil. Os demais generais com gabinetes ali e que patrocinaram a escolha de Decotelli, estavam ocupados à procura do quarto ministro da Educação em um ano e meio.

Um deles, Augusto Heleno, do Gabinete da Segurança Institucional, postou uma mensagem no Twitter onde disse que nada teve a ver com o fato de Decotelli apresentar-se como quem não era. Não lhe cabe checar currículo de candidatos a ministro.

Bernardo Mello Franco - Os entregadores pedem passagem

- O Globo

Eles ralam cada vez mais e recebem cada vez menos. Na pandemia, os entregadores de aplicativos têm ajudado milhões de brasileiros a se alimentar sem sair de casa. As empresas ampliaram os lucros, mas reduziram a remuneração dos trabalhadores.

Segundo a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista, que reúne pesquisadores de diferentes universidades, 60,3% dos entregadores viram sua renda cair desde a chegada do coronavírus. Metade deles roda de domingo a domingo, sem direito a descanso e a direitos básicos, como seguro e vale-refeição.

“É uma nova forma de precarização do trabalho. No dia em que fica em casa, o entregador não recebe nada. Estamos falando de pessoas que já viviam no limite antes da pandemia”, ressalta a socióloga Ludmila Costhek Abílio, pesquisadora da Unicamp.

Nos últimos meses, o medo da contaminação aumentou a pressão sobre os entregadores, que já se queixavam das más condições de trabalho.

Luiz Carlos Azedo - “Meritocracia”

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Bolsonaro nunca quis um educador reconhecido, mas alguém que pudesse confrontar ideologicamente a oposição nas universidades e demais órgãos da Educação”

Em absoluto descrédito, por ter fraudado o próprio currículo, o ministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, entregou a carta de demissão ao presidente Jair Bolsonaro, antes mesmo de tomar posse oficialmente. Foi uma saída até honrosa, depois de idas e vindas do Palácio do Planalto e tentativas de justificar o injustificável por parte de Decotelli. Jair Bolsonaro havia anunciado o seu nome como uma espécie de contraponto à passagem histriônica e turbulenta de Abraham Weintraub pelo cargo. Parecia um reposicionamento estratégico na pasta, substituindo a ideologia na escolha do ministro por uma suposta meritocracia. O problema é que o currículo do ministro era fake.

Bolsonaro chegou a publicar uma carta nas redes sociais elogiando a capacidade do ministro; na noite de segunda-feira, porém, já havia se convencido de que era preciso voltar atrás. Desde a indicação de Decotelli, a cada dia surgia uma nova informação desmoralizadora, de alguma instituição acadêmica, desmentindo os títulos que constavam no seu currículo Lattes. Três desmentidos foram demolidores: a denúncia de plágio na dissertação de mestrado da Fundação Getulio Vargas (FGV); a declaração da Universidade de Rosário desmentindo um título de doutorado na Argentina, que não teria obtido; e o pós-doutorado na Alemanha, não realizado. Trocando em miúdos, o professor não era sabichão, era apenas sabido.

Fernando Exman - O frágil armistício entre as instituições

- Valor Econômico

Destino de Flávio Bolsonaro entra no radar dos Poderes

O destino político do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) entrou de vez na agenda do Legislativo e do Judiciário. Nos últimos dias, virou assunto de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), integrantes do Ministério Público e parlamentares. Sob a ótica governista, ataca-se o “filho 01” para atingir o presidente da República e desestabilizar o Executivo. Defendê-lo, portanto, é também proteger o próprio governo.

Essa visão transformou as apurações sobre denúncias de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, um caso paroquial que revela algumas das tristes características da política brasileira, numa matéria capaz de afetar a relação entre os três Poderes. Num cenário extremo, até prejudicar o atual momento de relativa estabilidade institucional.

Brasília vive hoje um período de trégua. Um armistício há tempos demandado pelos aliados e auxiliares mais experientes do presidente, mas que só ganhou forma depois da prisão de Fabrício Queiroz.

O ex-assessor do senador foi encontrado no interior de São Paulo há cerca de duas semanas. Estava na casa do advogado Frederick Wasseff, que é ligado à família Bolsonaro e fazia a defesa do parlamentar no caso das chamadas “rachadinhas” da assembleia fluminense.

O primogênito do presidente da República é investigado pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa por supostos desvios de salários de funcionários de seu gabinete quando era deputado estadual. Não foi condenado e, portanto, mantém a ficha limpa. Pode insistir no discurso de que querem atacá-lo para atingir seu pai e o governo, apesar das incertezas relacionadas ao caso.

Cristovam Buarque* - Um vírus duradouro

- Blog do Noblat | Veja

Mais modernidade e diálogo em diplomatas do talibã do que no Itamaraty

Ao longo de nossa história, o Itamaraty é um exemplo de sucesso ininterrupto, até mesmo durante regimes autoritários. Na ditadura Vargas, em plena II Guerra, o Itamaraty desempenhou suas funções com seriedade e competência. Alguns de nossos diplomatas são considerados heróis por terem salvado vidas de judeus. Com Oswaldo Aranha, nossa política externa foi determinante na criação da ONU. Apesar da pressão contrária dos Estados Unidos, fomos o primeiro país a reconhecer o governo independente e marxista de Angola; fizemos acordo nuclear com a Alemanha; reconhecemos o governo Comunista da China. Não devemos esquecer a ruptura com Cuba em 1964, mas com exceção da demissão arbitrária de alguns diplomatas, é preciso reconhecer que os 21 anos de ditadura não enfraqueceram nossas relações exteriores, nem desestruturaram o Itamaraty.

A democracia a partir de 1958 foi o grande momento de nossa política externa. O restabelecimento de relações com Cuba foi um dos primeiros atos do governo democrático de Sarney. Ele construiu a aliança com a Argentina e, junto com Raúl Alfonsín e Julio Sanguinetti, fez o Mercosul. Collor colocou o Brasil na liderança mundial da defesa do meio ambiente, quando isto ainda não era um tema palpitante. Fernando Henrique e Lula solidificaram nossa presença no mundo. O primeiro formou um time com Lampreia; o segundo formou quase uma instituição com Celso Amorim, a Lulamorim, no cenário mundial. Os dois presidentes e seus ministros colocaram a presença brasileira no ponto mais alto de nossa história. O primeiro foi tratado no nível dos presidentes de países ricos, o segundo conseguiu ser o líder dos presidentes dos países pobres, e com isto ganhar o respeito dos grandes do mundo. O primeiro criou a Bolsa Escola, reconhecida na autobiografia de Clinton, onde é citada em português em todos os idiomas em que foi traduzida; o segundo, com o nome de Bolsa Família, mostrou ao mundo uma política social inovadora. Nada disto seria possível sem a história de nossa política externa e sem o Instituto Rio Branco formando nossos diplomatas.

Elio Gaspari - Bolsonaro avacalha a direita

- Folha de S. Paulo / O Globo

Essa paçoca não é conservadora nem sequer atrasada, é chumbrega e inepta

Em menos de dois anos o governo de Jair Bolsonaro avacalhou a direita e foi além, avacalhando até o atraso.

Com três ministros da Educação decapitados, cinco secretários de Cultura, "gripezinha" e piromania florestal, a charanga do capitão bateu no vexame do "doutor" Carlos Decotelli.

Um secretário da Cultura papagueando o nazista Joseph Goebbels e um ministro da Educação com currículo bombado desonram até o atraso. Não só pela apropriação dos títulos acadêmicos. Decotelli presidiu o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação no governo do capitão e na sua gestão construiu-se um edital viciado para a compra de 1,3 milhão de computadores, laptops e notebooks para a rede pública de ensino.

A Controladoria-Geral da União impediu a consumação da maracutaia, mas ninguém explicou quem armou o golpe. Tratava-se de uma despesa de R$ 3 bilhões.

A direita brasileira já produziu grandes administradores como Carlos Lacerda (vindo da esquerda). Até o atraso deu ao país políticos notáveis, como Bernardo Pereira de Vasconcelos no Império. Ele foi à tribuna do Senado em abril de 1850 para dizer que havia "terror demasiado" em relação à epidemia de febre amarela. Morreu uma semana depois, de febre amarela.

Bruno Boghossian - Negacionismo da pobreza

- Folha de S. Paulo

População de baixa renda passa de 32% para 52% dos apoiadores do governo, segundo Datafolha

Jair Bolsonaro chegou ao poder como um negacionista da pobreza. Crítico contumaz de programas de transferência de renda, ele disse no ano passado que a fome no Brasil era "uma grande mentira" e que o papel do governo era facilitar a vida "de quem quer produzir".

Sob risco, o presidente se converteu. Nesta terça (30), o governo anunciou o pagamento do auxílio emergencial do coronavírus por mais dois meses. A prorrogação poderia ser um ato burocrático, mas Bolsonaro organizou uma cerimônia no Planalto e chamou o programa de "o maior projeto social do mundo".

O presidente adiou o fim do benefício por uma questão de sobrevivência. As novas parcelas e o plano de reformulação do Bolsa Família se tornaram decisivos para a permanência de Bolsonaro no cargo e para sua aposta na reeleição em 2022.

Hélio Schwartsman - Uma onda pró-sistema?

- Folha de S. Paulo

Em períodos de crise as pessoas reduzem seu apetite pelo aventureirismo

Qual o efeito da pandemia sobre os humores do eleitorado? A julgar por sinais que vão pipocando aqui e ali, não é absurdo esperar um refluxo da onda antissistema que, nos últimos anos, varreu várias democracias, levando à eleição de líderes populistas de direita.

E quais são esses sinais? Na Polônia, o presidente nacionalista Andrzej Duda, que esperava uma reeleição tranquila, ficou aquém dos 50% e terá de enfrentar um segundo turno contra o liberal Rafal Trzaskowski. A não vitória de Duda representa uma derrota para o PiS, o partido que vem esticando a corda da democracia polonesa.

Nos EUA, pesquisas de intenção de voto pintam um quadro cada vez mais difícil para a reeleição de Donald Trump, que, antes da pandemia, era visto como candidato com grande chance de permanecer mais quatro anos no cargo.

Ruy Castro* - Ditadura privou uma geração inteira de educação política

- Folha de S. Paulo

Uma geração inteira impedida de representação, participação e educação política

Segundo o Datafolha, metade da população brasileira não sabe o que foi o AI-5, nem quem o decretou, quando, onde e por que. A mesma metade ouviu falar de uma "guerrilha", mas não tem ideia das circunstâncias que a levaram a acontecer e do que gerou de violência e atingiu até quem, dos dois lados, não tinha nada a ver. E mais dessa metade não conhece a expressão "milagre brasileiro", nem sabe que, por trás do festival de obras da ditadura —usinas, estradas, pontes, tudo gigantesco e inflado por bilhões em propaganda—, havia uma sensação geral de grossa corrupção. Corrupção essa que nem a censura à imprensa conseguia esconder.

Os que hoje acreditam que a ditadura foi uma maravilha ignoram que, por muitos dos 21 anos que ela durou, militares na ativa e de qualquer patente evitavam andar fardados na rua, para não se exporem a uma hostilidade muda. Por sorte, não tinham de andar muito, porque, naqueles 21 anos, não lhes faltavam carros oficiais, gabinetes refrigerados e sinecuras em recém-criadas estatais. Mas o carioca observava suas súbitas mudanças de endereço, da região do Maracanã, onde tradicionalmente moravam, para os bairros à beira-mar.

Míriam Leitão - A escalada do desemprego

- O Globo

O desemprego real só será visto depois. Oito milhões saíram da população ocupada e 12 milhões já estavam desempregados

Quando a pandemia tiver passado, e a economia começar a voltar ao normal, o número de desempregados vai aumentar muito. O país estará com mais confiança, empresas que sobreviverem pensarão em investir e é nesse momento que mais pessoas responderão sim à pergunta: “você procurou emprego e não encontrou?” Dessa resposta sai o índice do desemprego. E hoje muita gente não procura. Por causa da pandemia, da crise, da certeza de que não será contratado. E, se não procura, não entra na estatística de desocupados. O verdadeiro número se esconde em outros dados.

Ontem o IBGE informou que no trimestre terminado em maio a média do desemprego ficou em 12,9%. O número é alto, mas significa 12,7 milhões de brasileiros desempregados, 368 mil a mais do que no trimestre terminado em fevereiro, portanto, antes da pandemia se instalar no país. No mesmo trimestre do ano passado, o total de desempregados era 13 milhões. E há um ano a situação não estava tão ruim quanto agora. Por isso é que a verdade do fosso que nos aguarda se vê nos números laterais, e o tamanho do buraco será visto quando o país estiver se sentindo melhor. Pessoas esperançosas sairão procurando emprego e não encontrarão.

Quando setembro vier, pensa o economista Bruno Ottoni, o número subirá. Ele acha que no terceiro trimestre é que será o fundo do poço. Números ruins circulam em muitas planilhas, inclusive nas governamentais. Mas é difícil saber ao certo.

Monica De Bolle* - Taras

- O Estado de S.Paulo

A ligação entre medicina e economia se estende pela história do pensamento econômico

“A economia é uma disciplina afinada com a ideia e a produção de fetiches e taras. Então, por que não dizê-los? Uma tara do momento é aquela pela busca dos “cenários pós-covid”. Fala-se em recuperação em V, em L, em U, em W. Mas o que significa “pós-covid”? Ao mesmo tempo, no Brasil, o fetiche fiscal não se desgarra de muitos economistas. Mas e a dívida? Mas e o déficit? Mas e a dívida e o déficit? Mas e a dívida, e o déficit, e a inflação? A situação atual, que é de transição para algo que não sabemos o que é, não permite enxergar com clareza. É também verdade que, confrontadas com a incerteza, as pessoas muitas vezes se agarram àquilo que conhecem, projetando no futuro o passado. Contudo, é importante algum esforço e desprendimento para julgar o que do nosso passado econômico importa – se é que alguma coisa – para imaginarmos o que vamos enfrentar nos próximos meses e anos.

Antes, contudo, vou repetir algo que já escrevi algumas vezes neste espaço e já disse outras tantas mais no meu canal do YouTube. De nada adianta pensar nas letrinhas da retomada se não há um entendimento subjacente da epidemia e algum acompanhamento dos estudos científicos publicados sobre ela. Muitos economistas preferem pensar que nada precisam entender do assunto para traçar seus diagnósticos e suas previsões. É curiosa essa crença de economistas na autonomia da razão econômica em relação não só às Humanidades, mas a outras ciências. Afinal, na sua formação, a economia como disciplina sofreu a influência de grandes médicos, como John Locke (1632-1704) e François Quesnay (1694-1774), apenas para citar esses dois, cuja obra e pensamento influenciaram Adam Smith (1723-1790). Portanto, a ligação entre a medicina e a economia se estende pela história do pensamento econômico, retornando às suas origens. E, embora pareça divagar aqui, o desvio se justifica porque ignorar as origens da crise econômica para formular políticas públicas e previsões de crescimento é não apenas profundamente equivocado, mas dissonante da própria história da economia como ciência social.

Fábio Alves - A hora da verdade

- O Estado de S.Paulo

Ninguém arrisca a dizer se os gastos por conta da covid-19 ficarão restritos a este ano

O ritmo da recuperação da economia brasileira não será a única ou tampouco a principal incerteza dos investidores para o segundo semestre deste ano: o Orçamento de 2021 será um dos gatilhos mais importantes para os preços dos ativos brasileiros, como o câmbio e a Bolsa.

Há semanas, paira sobre o mercado a dúvida se haverá um descontrole fiscal no próximo ano que possa resultar num rompimento do teto de gastos, a âncora de confiança dos investidores em relação ao Brasil.

Ninguém arrisca apostar cegamente, até o momento, que os gastos extras para combater a pandemia do coronavírus e seu impacto econômico ficarão restritos a este ano. Se transformados em despesas permanentes, o cenário é de uma explosão da trajetória da dívida pública, com consequências graves para as expectativas de inflação e dos preços de ativos.

Vários analistas estimam que a dívida bruta brasileira ultrapasse 100% do PIB neste ano. Mas isso já está no preço do mercado. A grande questão é o que vai acontecer em 2021. Isso vai ficar claro com o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) que o governo tem de enviar ao Congresso até o dia 31 agosto.

Martin Wolf - A grande interrupção continua

- Valor Econômico

Pode ser que esta catástrofe traga uma vantagem: descobrir não apenas que o governo voltou, mas que a exigência de um governo sensato tocado por pessoas competentes voltou. Não se deve desperdiçar o valor de uma crise

A atualização do Panorama Econômico Mundial do Fundo Monetário Internacional (FMI) para junho não é um documento animador. Mas contém, indubitavelmente, um argumento animador: o segundo trimestre de 2020 deverá representar o ponto mais baixo da crise econômica decorrente da covid-19. Se é assim, o desafio é produzir a recuperação o melhor possível.

O rebaixamento das previsões do FMI desde abril é grande, com o crescimento mundial previsto em -4,9% neste ano, inferior aos -3% de abril. O crescimento do ano que vem deverá ser de 5,4%, segundo o prognóstico. Prevê-se que a produção mundial, em decorrência disso, ultrapassará ligeiramente em 2021 os níveis de 2019. Mas, no quarto trimestre de 2021, o Produto Interno Bruto (PIB) de países de alta renda ainda será menor que os níveis registrados no primeiro trimestre de 2019. A produção também ficará cerca de 5% abaixo dos níveis apontados pelas tendências de crescimento pré-covid-19.

Temos passado pelo que o Banco de Compensações Internacionais (BIS), em seu mais recente relatório anual, define como uma “uma parada repentina mundial”. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que, em termos mundiais, a diminuição das jornadas de trabalho no segundo trimestre tende a equivaler à perda de mais de 300 milhões de empregos em período integral.

O FMI enfatiza, corretamente, estas incertezas: a duração da pandemia e novos confinamentos nacionais ou locais; a magnitude do distanciamento social voluntário; a rigidez das novas regulamentações de segurança; a capacidade dos trabalhadores que perderam o emprego de garantir uma nova vaga; o impacto de mais longo prazo das suspensões de atividades econômicas e do desemprego; o grau de reconfigurações das cadeias de suprimentos; o provável prejuízo à intermediação financeira; e as dimensões dos novos transtornos dos mercados financeiros.

A resposta da política pública tem se caracterizado, corretamente, pela escala sem precedentes para tempos de paz. O FMI prevê que a dívida governamental vai aumentar em 19 pontos percentuais, em relação ao PIB, neste ano. As políticas dos bancos centrais não têm sido menos surpreendentes. O apoio das autoridades fiscais e monetárias também é de natureza revolucionária. Os governos despontaram como seguradoras de última instância. Os bancos centrais foram muito além de suas responsabilidades pelas operações bancárias. Onde foi necessário, eles assumiram a responsabilidade pelo sistema financeiro como um todo. De fato, com suas intervenções, inclusive contratos de swap com outros bancos centrais, o Federal Reserve assumiu responsabilidade por boa parte do sistema financeiro mundial.

Tiago Cavalcanti* - A Era do Obscurantismo

- Valor Econômico

Brasil deve lutar para que as evidências empíricas e científicas guiem as políticas públicas

Temos cada vez mais informações para fazer análises científicas. O novo petróleo, como dizem alguns, são os dados. Na área de estudos econômicos, o campo que mais cresce é o de análise de dados. Deveríamos abraçar a ideia do uso de dados para desenhar nossas políticas com responsabilidade, principalmente em um momento emergencial como a pandemia atual. Porém não parece ser a ideia de alguns governantes atualmente.

Donald Trump praticamente ignorou a pandemia até 15 de março. Em vários momentos, ele falou que o vírus iria desaparecer com o verão no Hemisfério Norte e até especulou sobre a injeção de água sanitária para prevenir o novo coronavírus. Isso gerou um aumento significativo de procuras e compras na internet por desinfetantes nos Estados Unidos. Recentemente, Trump sugeriu diminuir a testagem da covid-19 nos Estados Unidos, já que com mais testes há mais casos. Os Estados Unidos têm mais de 129 mil mortes por covid-19 e cerca de 389 mortes por um milhão de habitantes.

Na Alemanha, ao contrário, onde a pandemia chegou mais cedo, o governo agiu rapidamente para conter o contágio da covid-19, utilizando a ferramenta de testes e monitoramento, assim podendo proteger os mais vulneráveis. O país liderado por Angela Merkel tem 108 mortes por um milhão de habitantes. A recessão da economia parece bem menos severa na terra do universalista Goethe do que na do nacionalista Whitman.

Jair Bolsonaro, seguiu o obscurantismo trumpista. No lugar de comunicar com clareza sobre o problema a ser enfrentado e unir o país, fez o cálculo político para não ser culpado pela crise econômica que resultaria da pandemia, sem ou com lockdown, talvez com intensidades diferentes. Resolveu então criticar publicamente as medidas de distanciamento social implementadas pelos Estados e municípios.

Além de minimizar os efeitos da doença, Bolsonaro demitiu dois ministros da saúde durante a pandemia e fez demonstrações contra o distanciamento social. Não é por acaso que o Brasil tem hoje quase 60 mil mortes por covid-19 confirmadas e está no epicentro da pandemia. A economia brasileira encontra-se em recessão e sem perspectiva de recuperação no curto prazo.

Cristiano Romero - Uma economia marcada pela concentração

- Valor Econômico

Modelo que faliu em 1982 nos legou vários oligopólios

Quando um cidadão vai a um banco solicitar empréstimo para comprar um apartamento ou uma casa, fica sabendo que, entre outras taxas, ele tem que pagar R$ 3 mil para a “avaliação” do imóvel. Sob qualquer escrutínio, é um valor salgado. Muitos ou a maioria dos clientes nem sequer tomam conhecimento da cobrança, não porque a considerem módica, mas simplesmente por não saberem de sua existência.

Incomodado com essa situação, um brasileiro do Banco Central (BC) avistou-se com banqueiros para saber por que a taxa é tão alta e, também, o porquê da cobrança. Mandaram-lhe procurar representante dos peritos, os profissionais autônomos encarregados de avaliar imóveis.

A autoridade inquiriu o perito: “Vem cá, por que R$ 3 mil?”. Constrangido, o representante dos peritos respondeu: “Doutor, na verdade, a nossa parte é R$ 300”. “E os R$ 2.700?”, quis saber o brasileiro do BC. “Vão para o banco, doutor.”

Não mate o mensageiro, diz o provérbio originário do latim "ne nuntium necare". Diz a lenda que Dario III, rei da Pérsia, foi derrotado pelas tropas de Alexandre, o Grande, por ter matado Charidemus, um de seus generais, responsável por levar-lhe conselhos que contrariavam toda a sua estratégia até então. O brasileiro do BC respirou fundo ao retornar aos banqueiros.

“Vamos lá, os peritos me contaram outra história. Por que vocês ficam com R$ 2.700 da avaliação sem fazer absolutamente nada?”, questionou. Embaraço geral, crianças foram retiradas da sala e, assim, emergiu a verdade nua e crua: “Margem, por margem...”. Novamente: “Não mate o mensageiro”, meditou o brasileiro dom BC.

Pela 1ª vez, menos de 50% estão ocupados

Em movimento recorde, 9 milhões de pessoas desistiram de procurar trabalho de março a maio

Por Bruno Villas Bôas | Valor Econômico

RIO - Apesar dos sinais de que abril foi o “fundo do poço” em diferentes setores da economia, a crise do mercado de trabalho se aprofundou no trimestre móvel encerrado em maio, quando 7,8 milhões de pessoas perderam suas ocupações. Pela primeira vez, menos da metade (49,5%) da população em idade para trabalhar (14 anos ou mais) estava ocupada.

Segundo economistas, os sinais não são de melhora do emprego nos próximos meses. Mesmo que a flexibilização do isolamento social permita uma retorno dos informais às ruas, a expectativa é de mais dispensas nas empresas nos próximos meses ou, na melhor das hipóteses, de uma estabilização.

Dados divulgados ontem pelo IBGE mostram que a população ocupada - empregados, empregadores, conta própria, servidores - era de 85,9 milhões no trimestre até maio, queda de 8,3% frente aos três meses anteriores. Houve uma perda de 7,8 milhões de vagas. É o pior resultado da série histórica, iniciada em 2012.

Pandemia aniquilou 7,8 milhões de postos de trabalho no Brasil

Pela primeira vez, menos da metade das pessoas em idade para trabalhar está empregada, diz IBGE

Diego Garcia | Folha de S. Paulo

RIO DE JANEIRO - A pandemia da Covid-19 destruiu 7,8 milhões de postos de trabalho no Brasil até o mês de maio, informou nesta terça-feira (30) o IBGE. Isso fez com que a população ocupada tivesse caído 8,3% na comparação com o trimestre encerrado em fevereiro, indo para 85,9 milhões de pessoas.

Pela primeira vez na história da Pnad Contínua, menos da metade das pessoas em idade para trabalhar está empregada. Isso nunca havia ocorrido antes na pesquisa, que teve início em 2012.

Dentre os postos de trabalho perdidos, 5,8 milhões são de empregos informais, que somam os profissionais sem carteira assinada e por conta própria. A taxa de informalidade caiu de 40,6% para 37,6%, a menor da série que começou a ser contabilizada em 2016.

Maio foi o segundo mês completo com medidas de isolamento social impostas em todo o país como forma de conter o avanço do Covid-19, o que vem afetando a economia brasileira. Especialistas já dizem que o Brasil vive depressão econômica.

O primeiro óbito conhecido pelo novo coronavírus no país ocorreu no dia 17 de março. A partir daí, com o avanço da doença, o país promoveu o fechamento de bares, restaurantes e comércio como forma de combater a pandemia. Em abril, os efeitos econômicos começaram a ser sentidos com mais intensidade, já que as medidas restritivas duraram do começo ao fim do mês. O impacto continuou em maio.

Apenas a ponta da tragédia do desemprego – Editorial | O Globo

Os números frios do aumento do desemprego de 12,6% para 12,9% não refletem o tamanho do desastre

As crises econômicas costumam ser lentas para aparecer nos índices, mas rápidas na desestabilização da vida das pessoas. O panorama do mercado de trabalho fornecido pela pesquisa por Amostra de Domicílio (Pnad), do IBGE, referente ao trimestre de março a maio, em comparação com os três meses anteriores, é negativo, porém preocupa ainda mais quando observado em detalhes.

A taxa de desemprego subiu de 12,6%, calculados no trimestre encerrado em abril, para 12,9% em maio. Parece pouca coisa, mas no subsolo dos números há uma população de milhões de desempregados que não para de crescer. Considere-se que este índice carrega os efeitos da virtual paralisação do país, agravada a partir de março, início deste trimestre, quando foi registrada oficialmente a primeira morte pela Covid-19 no Brasil. Veio depois a sucessão de fechamentos de empresas por todo o país e de recolhimento de famílias em suas residências. Aquelas que puderam.

Os dados que o IBGE divulgou ontem fotografam apenas os primeiros impactos mais fortes da crise de saúde pública no parque produtivo e na sociedade. Mesmo assim, naquele trimestre 7,8 milhões perderam o emprego. Ficou visível, em cidades como o Rio, onde há ampla informalidade, o impacto da escassez de dinheiro nas ruas — causada pela paralisação quase geral e do comércio em particular — sobre grande parte da população. Antes de qualquer ação governamental, movimentaram-se organizações sociais, formalizadas ou não, para que famílias sobrevivessem. Esta é uma história ainda a ser contada em todos os seus capítulos.

Recessão meteórica – Editorial | Folha de S. Paulo

Colapso da atividade desafia definições e fecha uma década sem crescimento

Raras vezes uma recessão econômica pode ser tão rapidamente identificável como a que se instalou no país com a chegada do novo coronavírus. As certezas, no entanto, acabam aí. Estamos diante de um fenômeno que desafia definições e o conhecimento pretérito.

O advento da recessão, com início no primeiro trimestre deste 2020, foi constatado na segunda-feira (29) pelo Codace, um comitê ligado à Fundação Getulio Vargas e dedicado à datação dos ciclos de alta e baixa da economia do país.

O mesmo colegiado havia levado muito mais tempo —um ano e quatro meses— para apontar, no final de julho de 2015, que a atividade nacional vivia um processo de contração desde o segundo trimestre de 2014, a ser encerrado apenas em dezembro de 2016.

Desta vez, os sinais iniciais da retração são óbvios como nunca. Para conter a Covid-19, o comércio literalmente fecha as portas; setores inteiros, como o aéreo e o de espetáculos artísticos, entram em colapso; a queda geral de rendimentos atinge em instantes todos os contratos e transações.

Um rombo como herança – Editorial | O Estado de S. Paulo

A tarefa mais urgente de quem assumir a Presidência em 2023 será cuidar do enorme buraco nas contas públicas e administrar uma dívida próxima de 100% do PIB

Uma péssima herança estará à espera de quem assumir a Presidência em 2023. Sua tarefa mais urgente será cuidar de um enorme buraco nas contas públicas e administrar uma dívida próxima de 100% do Produto Interno Bruto (PIB). Além de matar dezenas de milhares de pessoas e jogar a economia num buraco, a covid-19 pôs em xeque uma das principais ambições da equipe econômica: fechar o atual mandato com as finanças oficiais bem mais arrumadas. Daí o empenho em retomar o trabalho, em janeiro de 2021, limpando os escombros deste ano. Será um trabalhão, como se vê pelo último balanço do setor público: o déficit primário saltou de R$ 13 bilhões em maio de 2019 para R$ 131,4 bilhões um ano depois, segundo informe do Banco Central (BC).

Com um rombo de R$ 127,1 bilhões, o governo central foi responsável pela maior parte do déficit primário do setor público em maio deste ano. O resultado primário é calculado sem o serviço da dívida. Houve aumento de gastos para o combate à pandemia e para ajuda a empresas e trabalhadores. Além disso, a arrecadação de tributos foi prejudicada pela redução da atividade, muito sensível a partir de abril, e pelo diferimento de algumas cobranças. Segundo o Tesouro, a receita líquida, de R$ 54 bilhões, foi 41,6% menor que a de um ano antes, descontada a inflação. Pelo mesmo critério, a despesa total, de R$ 180,6 bilhões, foi 68% maior que a de maio de 2019.

Programas de emergência chegam até os mais pobres – Editorial | Valor Econômico

Governo tem chance de acertar no pós-covid-19 robustecendo programas de renda que deem sustentabilidade à recuperação e sejam fiscalmente viáveis

Há poucas coisas comparáveis em magnitude à mobilização de recursos do governo brasileiro para enfrentar a depressão econômica, assim como há poucos episódios na história recente que possam se comparar à capacidade de destruição do novo coronavírus. Apesar dos regateios do ministro da Economia, Paulo Guedes e improvisação, os programas de assistência à renda, preservação de empregos e diferimento de impostos movimentaram R$ 289 bilhões. Ainda assim, o PIB deverá encolher 6,4% no ano, na previsão do Banco Central e de grande parte dos economistas.

Guedes estimou ontem as despesas em R$ 1 trilhão, ao qual se chega com a liberação de compulsório e expedientes para liberar capital para empréstimos dos bancos, medidas de apoio vitais. Os gastos do Tesouro até junho indicavam R$ 211 bilhões em despesas realizadas, ante uma previsão de total R$ 402,4 bilhões. Nas contas do Tesouro de maio constam ainda R$ 68,9 bilhões de adiamento de receitas com diferimento de impostos e redução do IOF.

O governo anunciou ontem que os dois programas que trazem dinheiro diretamente ao bolso dos trabalhadores, formais ou não, serão prorrogados por mais dois meses. O auxílio emergencial a todos que perderam ou estão sem renda, receberá pelo menos mais duas doses de R$ 600, além das três em curso. O gasto extra deve ser de R$ 104 bilhões. O benefício emergencial, para repor parte do corte de salários e preservar empregos, será prorrogado. Sua execução, segundo dados do Tesouro, consumiu R$ 13,4 bilhões até junho, diante de previsão de gastos de R$ 51,4 bilhões.

Música | Teresa Cristina - Tudo se transformou

Poesia | Fernando Pessoa - Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado,
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.