Para
ex-presidente, aprovação de mudança da Constituição mostra que 'modelo chileno'
é falsa solução
Sylvia Colombo Folha de S. Paulo
SANTIAGO
- Para
o ex-presidente do Chile Ricardo Lagos, 82, o plebiscito
que derrubou a Constituição da época da ditadura de Augusto Pinochet é
um recado a líderes estrangeiros, como o
presidente Jair Bolsonaro, que consideram ou chegaram a considerar
que o “modelo chileno” seria um exemplo a ser seguido.
Lagos
presidiu o país entre 2000 e 2006. Tentou convocar uma Assembleia Constituinte,
mas, na época, partidos de direita se mantiveram unidos e não permitiram a
realização de um referendo. O socialista, então, alterou, ponto por ponto,
aspectos mais autoritários da Carta hoje em vigor.
Além
do tom liberal, a
Constituição de 1980 dava muito poder aos militares, o que colocava
obstáculos a decisões do Legislativo e do Executivo. Entre as 58 modificações
realizadas por Lagos estavam a redução do mandato presidencial de seis para
quatro anos, o aumento do peso do poder do Congresso em detrimento da
participação das Forças Armadas e o fim da designação de senadores vitalícios.
Como o
senhor avalia o resultado do plebiscito?
Estou
muito orgulhoso por termos honrado uma tradição chilena de institucionalidade.
Este foi um processo que teve momentos de
violência nos últimos meses, mas que não foram preponderantes ao
final. Tivemos uma eleição massiva se considerarmos a pandemia e o histórico
recente do Chile, de comparecimento muito baixo. Os cidadãos votaram com paz,
inclusive os idosos, que poderiam ter temido o vírus e ficado em casa. Votou-se
com entusiasmo, alegria e respeito.
Por que
foi possível aprovar uma Assembleia Constituinte agora e não em seu período
como presidente?
No
meu tempo, a direita estava unida, e, portanto, era impossível aprovar um processo
como este. Hoje, temos um setor da direita que concorda com a necessidade de
renovar a Constituição. Demorou, mas chegamos a esse momento. Esses direitistas
que mudaram de opinião, que poderiam ser considerados traidores em seu
ambiente, deram-se conta de que as mudanças são necessárias. A explosão
social do último ano colaborou para que abrissem os olhos para
a inevitabilidade de ter de acompanhar as transformações dos tempos. Agora
vamos assistir a uma reorganização da direita para a eleição constituinte e
para as próximas presidenciais [em novembro de 2021].
O senhor
considera que este plebiscito foi um recado à classe política?
Sim.
É importante notar que boa parte de quem votou pelo “rejeito” ainda assim
escolheu, na segunda cédula, a Assembleia Constituinte integralmente eleita. Ou
seja, admitiu que, caso a Constituinte passasse, preferiam que fossem eleitos
novos legisladores para redigi-la. Nesse sentido, foi um recado a legisladores
e partidos que estão no poder agora. É um número interessante de ser analisado.
Porque se os que votaram pelo “rejeito” estivessem contentes com os atuais
políticos, pediriam que a assembleia fosse mista, pois assim os partidos de
sempre poderiam ter controle da situação. Essa hipótese foi derrotada,
portanto, tanto pelos que votaram “aprovo” quanto pelos que votaram “rejeito”.
Quais
são os desafios do governo agora?
A
votação gerou grande expectativa, mas é preciso que a população tenha
paciência, porque a nova Constituição não ficará pronta neste mandato. É
preciso eleger os membros da constituinte, que eles redijam a nova Carta e que
depois ela seja aprovada. Portanto, os problemas da população seguirão
presentes nos próximos dois anos, e o desafio do governo é atender a essas
questões mais urgentes agora. No momento, o foco deve estar na recuperação
econômica e em vencer a pandemia. O trabalho da assembleia constituinte seguirá
paralelo, e seu efeito não é imediato.
O que o
senhor diria para líderes como Jair Bolsonaro, que chegaram a defender a
aplicação do chamado “modelo chileno”?
Respondi
a essa questão a vários líderes, um deles foi o ex-presidente dos EUA George W.
Bush. Quando você mexe num tema como a Previdência, por exemplo, adotando a
capitalização em vez da repartição, você diminui muito aquilo que a pessoa receberá
no futuro. E, no final das contas, isso acaba virando um problema novo para o
Estado. A ex-presidente [Michelle] Bachelet teve de fazer aportes novos, com o
sistema de “pilares solidários”, que foram repasses de benefícios para quem não
tinha com o que viver depois de aposentado. O mesmo acontece em outras áreas quando
você quer retirar o Estado de tudo. No final, o Estado tem de arcar
com as contas. Ou seja, é uma falsa solução, muito imediata, que não funciona a
longo prazo. Isso explicaria ao sr. Bolsonaro. Bush entendeu, nunca mais me
perguntou.
O senhor
acredita que as manifestações continuarão?
É
possível, pois os problemas imediatos seguirão, temos muito a percorrer até a
Constituição ficar pronta. Ela pode ser uma solução para o futuro, mas não para
o presente. O governo tem de lidar com as urgências. Se não conseguir, as
pessoas voltarão às ruas.
*Ricardo
Lagos, 82, primeiro
presidente socialista do Chile depois de Salvador Allende (1908-1973), que foi
deposto pela ditadura de Augusto
Pinochet, governou o país de 2000 a 2006. Advogado e economista,
anunciou candidatura para as eleições de 2017, mas desistiu pouco depois por
falta de apoio dentro de sua coalizão.