sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Merval Pereira - Ser pária

- O Globo

O resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos pode ser fundamental para o resto do mundo, mas especialmente para países como o nosso, governado por extremistas de direita que sentem-se protegidos pela “relação carnal” com a administração Trump.

O presidente Bolsonaro ainda tem em mente a ideia de uma China comunista que quer dominar o mundo. Realmente, ela quer, como todo potência, mas com armas capitalistas, investimentos e produção, o que faz parte do jogo do capitalismo internacional. O Brasil tem que se aproveitar da sua importância geopolítica para tirar vantagens dos EUA, da China e da Europa, e não ficar entregue aos EUA, fazendo a política de Trump, que até agora não nos deu nada em vantagem. 

Se Joe Biden vencer a eleição americana, vai ficar difícil dar continuidade à política externa brasileira, porque o governo democrata vai exigir contrapartidas importantes do Brasil, especialmente na política ambiental. Com essa briga com a China, corremos o risco de virarmos párias mundiais, sem aliados, se EUA e Europa se unirem e voltarem a nos pressionar na questão do meio ambiente, o que é provável com a vitória de Joe Biden.

O chanceler brasileiro, Ernesto Araújo, um dos pilares da visão extemporânea de mundo que rege esse governo, anunciou ontem aos formandos do Instituto Rio Branco que o Brasil está disposto a ser um ‘pária internacional’ se for pela defesa da ‘liberdade’. 

Bernardo Mello Franco - Sabujismo orgulhoso

- O Globo

No governo Bolsonaro, não basta ser servil. É preciso ostentar a subserviência como prova de lealdade. Ontem dois ministros se humilharam em público para agradar ao chefe. Encolheram as próprias biografias e avacalharam as pastas que deveriam comandar.

Eduardo Pazuello, dublê de paraquedista e ministro da Saúde, recebeu Bolsonaro após ser desautorizado sobre a compra de vacinas. Sem corar, ele reconheceu a falta de autonomia no cargo. “Senhores, é simples assim: um manda e o outro obedece”, explicou.

Seguiu-se um diálogo constrangedor entre o general da ativa e o capitão reformado. “A gente tem um carinho”, disse Pazuello. “Opa, tá pintando um clima”, animou-se Bolsonaro. O ministro está com Covid, mas rompeu o isolamento para gravar com o presidente. Sem máscaras, os dois voltaram a fazer propaganda da cloroquina.

Míriam Leitão - Congresso subserviente

- O Globo

Assunto constitucional não é interna corporis, é assunto constitucional. Pode-se alterar a Constituição, mas não descumpri-la. Esse é o ponto que está em questão no esforço dos presidentes do Senado e da Câmara de permanecer no cargo. Eles torcem para que o ministro Gilmar Mendes decida que a reeleição seja uma questão interna. O problema é que se a liminar do ministro disser apenas isso há o risco de se criar o seguinte e perigoso precedente: mudar o regimento interno para alterar-se a Constituição.

O STF será usado para a realização de ambições pessoais, mais explícitas no caso do senador Davi Alcolumbre, de permanecer onde está. Alcolumbre tem feito tudo, até calar-se diante do abjeto escândalo das cuecas e preparar o forno de pizza para assim ficar bem com todo mundo.

A análise de parlamentares e de um ministro do Supremo ouvidos pela coluna é a de que o relator pode dizer que é interna corporis e isso será interpretado como licença para apenas alterar o regimento interno das Casas.

— Questão constitucional nunca será um problema interna corporis — alerta um ministro do STF.

— A Constituição é claríssima, não cabe interpretação, não é possível a reeleição. Vão pegar o termo em latim que provavelmente estará na liminar para de forma apressada fazer o rito de alteração do regimento interno. Mas se o ato interno é regido pela Constituição esse não pode ser o caminho. Se o constituinte achou por bem normatizar, só por emenda pode ser alterada — explicou um parlamentar.

Eliane Cantanhêde - O rei sou eu

- O Estado de S.Paulo

Depois de Coaf, Receita e PF, Bolsonaro vai meter a mão na Anvisa por capricho?

Luiz Henrique Mandetta foi demitido por propor o isolamento social, Nelson Teich se demitiu por não engolir a cloroquina, Eduardo Pazuello é humilhado por tentar viabilizar uma vacina em massa para o País. Estão todos errados e só o presidente Jair Bolsonaro está certo? Ou, entre a vida dos brasileiros e suas conveniências políticas, ele fica com a reeleição?

Já que os dois médicos se recusaram a fazer o jogo sujo, ele convocou o general da ativa para bater continência a tudo o que lhe vier na cachola e avisa: “Quem manda sou eu, não vou abrir mão da minha autoridade”. Pazuello concorda, pateticamente: “É simples. Um manda, o outro obedece”.

O general diz, o capitão desdiz. E o que o general faz? Abaixa a cabeça e diz que foi “mal interpretado” ao anunciar a compra de 46 milhões de doses da vacina Coronavac assim que obtivesse o registro da Anvisa. Como alguém desmente o que escreveu em ofício e disse em vídeo para mais de 20 governadores? Vergonha alheia. Forças Armadas, Exército e oficiais, o que acham dessa vassalagem inominável?

Ignácio de Loyola Brandão* - O dinheiro que veio de estranho lugar

- O Estado de S.Paulo

Não suportando mais, o senador pediu habeas corpus ao Supremo e sumiu. Como o André do Rap

Ainda hoje, a história da gastroenterologia debate o caso que assombrou especialistas. Porque ele passou a fazer parte dos anais científicos. Jamais se viu coisa igual. Curioso, anômalo, singular. Tudo começou em calma madrugada, durante a pandemia de coronavírus. Um senador terrivelmente medíocre, mas unha e carne com o presidente da nação, sentiu cólicas intestinais tenebrosas. Foi ao banheiro, nada. As dores aumentaram. Chamaram o Sistema Popular de Medicina, do qual aliás o senador tinha desviado Himalaias de verbas, uma vez que tinha se formado nas melhores universidades do ramo, as cariocas, e o político foi levado ao hospital para uma lavagem ou enema ou clister.

Quando veio a reação, os médicos se entreolharam, fascinados. Mais que isso, às gargalhadas. Ajustaram fortemente as máscaras por causa do cheiro e chamaram colegas, laboratoristas, enfermeiros, auxiliares. Nunca ninguém tinha visto aquilo, ficaram maravilhados. Em lugar da habitual massa que costuma sair de condutos próprios, atravessando pequeno orifício circular existente há milhões de anos nos seres humanos, o que estava sendo expelido aos borbotões? O quê? “Não é possível”, disse o diretor. “Só não grito milagre porque sou terrivelmente ateu.”

Dora Kramer - Esconderijos

- Revista Veja

Flagrante da cueca revela mazelas para além do dinheiro oculto

O episódio tragicômico do senador ora afastado oculta — e ao mesmo tempo revela — muito mais que dinheiro em camadas subjacentes às bermudas. De imediato nos relembra casos que por isso já viraram hábito, de esconder cédulas de origem imprecisa em locais inusitados: cuecas, calcinhas, meias, apartamentos usados como cofres e até contabilidade de lojas de chocolate.

Em seguida entraram em cena outras mazelas incrustadas nas piores práticas da política, feito mariscos nas pedras. Deve haver mais, mas cito três: o gosto parlamentar por acertos meia bomba à meia-luz, o menosprezo ao discernimento alheio e o método de ocupação da suplência dos senadores.

Escolho me ater ao último item, até por ter ficado em segundo plano nas análises que acertadamente deram destaque às espertezas do presidente do Senado. Empenhado em não desagradar a ninguém a fim de obter uma reeleição ilegal, Davi Alcolumbre costurou o acerto que permitiu ao colega Chico Rodrigues se licenciar por 121 dias.

Assim, livrou a Casa de tomar uma decisão, no aguardo de que daqui a quatro meses o caso tenha sido relegado à categoria de “notícia velha”, e ainda postergou a volta do Conselho de Ética, onde há, entre mais de vinte processos em aberto, um envolvendo o senador Flávio Bolsonaro.

Ricardo Noblat - General Pazuello, pede pra sair!

- Blog do Noblat | Veja

Farda manchada

Como acreditar no que o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, disser ou fizer doravante? Se tivesse o mínimo de preocupação com a sua e a imagem dos colegas de caserna, pediria demissão depois de desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro no caso da compra da vacina chinesa contra a Covid-19.

Mas, não. Infectado pelo vírus, recolhido ao hotel do Exército em Brasília, onde mora, Pazuello foi acordado, ontem à tarde, para receber a visita de Bolsonaro. E foi constrangido a gravar uma parte de sua conversa com ele onde afirmou: “É simples assim, um manda e outro obedece. Mas a gente tem carinho”.

Vexame, vexame, vexame! Onde já se viu um general render-se a um capitão? Ou melhor: a um ex-capitão? Tudo bem, o ex-capitão é hoje o presidente da República, e o general ainda na ativa, seu vassalo. De toda forma, pegou muito mal para ele entre seus colegas de farda. Primeiro foi desautorizado. Depois, humilhou-se.

No último fim de semana, Pazuello havia combinado com Bolsonaro no Palácio da Alvorada o que diria quando se reunisse com os governadores para discutir a compra de vacinas. E cumpriu o combinado ao anunciar:

“A vacina do Butantan será a vacina brasileira. Já fizemos carta em resposta ao ofício do Butantan, e essa carta é o compromisso da aquisição das vacinas que serão fabricadas até o início de janeiro, em torno de 46 milhões de doses, e essas vacinas servirão para nós iniciarmos a vacinação ainda em janeiro. Essa é a nossa grande novidade e isso reequilibra o processo”.

Aí, o governador João Doria (PSDB), de São Paulo, o padrinho da vacina chinesa no Brasil, celebrou o anúncio nas redes sociais e por toda parte. Aí, no dia seguinte, os bolsonaristas de raiz foram para cima de Bolsonaro nas redes. Aí, furioso e a conselho dos três filhos zeros, Bolsonaro deixou Pazuello pendurado na brocha.

Militares próximos ao presidente, e militares da reserva ficaram indignados com o episódio. Inicialmente, com o que Bolsonaro fez. Ontem, com o que fez também Pazuello. Até porque a vacina chinesa, ainda em fase de teste como as demais, se aprovada acabará sendo comprada. Doria continua rindo à toa.

Essa parada foi ganha por ele, que mais e mais se oferece como o candidato capaz de derrotar Bolsonaro em 2022. Cerca de 70% dos brasileiros se dizem dispostos a se vacinar, segundo pesquisa Datafolha. E parte deles começa a ver Bolsonaro como inimigo de tudo o que possa salvar vidas.

Em tempo: Pazuello revelou que está sendo tratado com cloroquina. Bolsonaro ficou muito satisfeito com o que ouviu.

 Delegadas em alta, candidatos a prefeito favoritos, preocupados

Russomano derrete e rejeição a Crivella aumenta

O sonho de qualquer candidato é poder escolher o seu adversário. O adversário dos sonhos do prefeito Bruno Covas (PSDB), de São Paulo, por exemplo, é o deputado Celso Russomano (Republicanos), apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro.

Luiz Carlos Azedo - A teoria do dano e a vacina

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

Bolsonaro não leva em conta que uma pessoa infectada, por se recusar a tomar a vacina, pode contaminar as outras, com consequências trágicas e irreparáveis

A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.

Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.

Bruno Boghossian – Ernesto cumpriu sua missão

- Folha de S. Paulo

Ernesto Araújo cumpriu sua missão com discurso vazio e agenda ultraconservadora

O ministro Ernesto Araújo finalmente reconheceu que a chancelaria bolsonarista não tem muitas credenciais para exibir pelo mundo. Ele disse que o Brasil é visto como um pária internacional por sustentar uma defesa da liberdade. “Então, que sejamos esse pária”, afirmou.

Após pavimentar uma via para o isolamento e de infiltrar o fundamentalismo na diplomacia brasileira, Ernesto posa de vítima de suas supostas virtudes. Numa formatura de diplomatas, nesta quinta (22), o chanceler comemorou sua retórica vazia e escondeu os prejuízos dessa gestão para os interesses nacionais.

O ministro se gabou do fato de que Jair Bolsonaro e Donald Trump “foram praticamente os únicos a falar em liberdade” na última Assembleia Geral da ONU. Se esse é um critério relevante para a diplomacia, o Brasil está em má companhia. O chanceler da Coreia do Norte também pediu um mundo “livre de dominações” e defendeu a soberania dos países.

Hélio Schwartsman - Quando a leviandade mata

- Folha de S. Paulo

Chilique presidencial é cálculo político míope e mesquinho

Jair Bolsonaro é o presidente. Foi eleito democraticamente. Mas não tem condição moral nem intelectual de exercer o cargo, do que dá prova a leviandade com que trata a questão da vacina.

Não sei se a Coronavac, a "vacina chinesa do Doria", no linguajar presidencial, vai funcionar bem. Ninguém sabe. Mas, na atual conjuntura, é um dos fármacos mais promissores em fase final de testes. Engajar-se num programa de compra e produção antecipadas é uma opção de risco, mas, se o imunizante tiver sucesso, fazê-lo nos dará um ou dois meses de dianteira no processo de vacinação, o que pode salvar muitas vidas e reduzir o estrago econômico da pandemia.

Vale observar que o governo fez exatamente a mesma aposta no caso da vacina da Universidade de Oxford, o que desmonta por inteiro a afirmação de Bolsonaro de que não se pode avançar na compra de vacinas até que elas tenham sido licenciadas pelos órgãos competentes.

Ao que tudo indica, o chilique presidencial não tem motivação técnica, mas é fruto de um cálculo político míope e mesquinho, que procura agradar à base mais amalucada do bolsonarismo, que tem alergia a coisas feitas por "chineses comunistas", ao mesmo tempo em que se recusa a fazer qualquer gesto que possa beneficiar um rival, no caso, Doria.

Reinaldo Azevedo – Temos, sim, vacina contra o caos

- Folha de S. Paulo

 A única saída é tentar resgatar o país dos escombros da legalidade

A entropia do sistema político elegeu Jair Bolsonaro. Ainda que um reacionarismo nada subterrâneo se manifestasse transversalmente na sociedade brasileira, este se mantinha mais ou menos à margem como força (des)organizadora do sistema. Os agentes da desordem eram neutralizados pelos da ordem.

No dia em que se estudar o sistema político a sério, o Brasil descobrirá razões para, por exemplo, lamentar o esfacelamento do núcleo duro do MDB. O partido atraía e digeria o monstro, hoje autônomo. O surto de moralismo barato, que investia e ainda investe na destruição de garantias legais, liberou as forças do caos. E, como já refletiu a filósofa, “depois que a pasta de dente sai do dentifrício, ela dificilmente volta para dentro do dentifrício”.

Bolsonaro virou o beneficiário e o monopolista desse caos. Pode não agir em nome de uma teoria do poder, mas se expande na ausência de uma força organizada que lhe faça oposição. Seria incapaz de redigir uma redação do Enem explicando o seu pensamento, mas intui que sua primeira tarefa é esmagar os adversários que estão em seu próprio campo ideológico.

Vinicius Torres Freire - A 'vacina paulista' no outro lado do mundo

- Folha de S. Paulo

Indonésios correm, mas ainda não têm certeza de quando começam a usar a Coronavac

A Indonésia pode ser um dos primeiros países do mundo a vacinar sua população contra a Covid-19. De início, vai usar a mesma vacina comprada pelo governo paulista, a CoronaVac, da empresa chinesa Sinovac. Mas pretende começar uma vacinação emergencial e por ora apenas prevista para fins de novembro. Pode ser bem depois, talvez em janeiro ou depois. Não é bem como dizem por aqui.

Um ex-colega de faculdade deste jornalista trabalha no governo da Indonésia, embora não no ministério da Saúde. Conta que eles ficaram tão interessados no que se passa no Brasil como nós agora começamos a nos informar sobre o que se faz por lá com a “vacina paulista”.

A associação dos médicos e parlamentares indonésios dizem que o governo não deve se apressar e deve esperar a publicação dos testes. O próprio governo diz que precisa da aprovação da vigilância sanitária, permissão por ora apenas para vacinação emergencial, e das autoridades religiosas.

Meu ex-colega conta que a resistência às vacinas aumentou faz uns anos, depois de um rolo com a vacinação contra o sarampo. Certas autoridades islâmicas disseram então que a vacina talvez não fosse “halal”, permitida pela religião (talvez fosse contaminada por algum produto proibido pela lei religiosa). O rolo foi tamanho que as autorizações religiosas foram distribuídas por três instituições diferentes –cerca de 87% dos indonésios são muçulmanos.

César Felício - Derrota quase certa

- Valor Econômico

Politização da vacina pode ser barrada no STF

A não ser que o presidente desmanche com o cotovelo o que escreve com a mão, Jair Bolsonaro talvez tenha contratado uma derrota ao proclamar que rejeita vacinas contra a covid-19 oriundas da China ou que possam de um modo ou outro beneficiar o tucano João Doria.

O problema por ora não existe, por ainda não existirem vacinas. Mas na hora que se chegar a elas, é quase impossível impedir, dosar, ou retardar, ou direcionar politicamente a vacinação em massa da população brasileira.

Horas depois de Bolsonaro desautorizar seu ministro da Saúde, governadores avisaram que, no limite, quem vai decidir a questão é o Supremo Tribunal Federal. A julgar pelo retrospecto de decisões do STF sobre pandemia e sobre saúde pública, é provável que Bolsonaro se depare com uma ordem do Judiciário para que a União compre toda e qualquer vacina de eficácia comprovada pela Anvisa para o programa nacional de imunizações.

Fernando Abrucio* – Aspectos centrais das eleições 2020

-Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

A lógica da polarização parece não ser a tônica da eleição de 2020, e se isso se confirmar, as estratégias políticas para daqui a dois anos podem ser fortemente afetadas

Toda eleição tem uma história própria, determinada por sua dinâmica territorial, pelo regramento institucional vigente e pelos elementos conjunturais que a influenciam. A disputa municipal de 2020 pode, até o momento, ser compreendida por cinco aspectos que delimitam sua peculiaridade: a redução do debate eleitoral, o choque entre as inovações e a força da política tradicional, os imensos desafios que aguardam os prefeitos eleitos, a percepção cada vez maior do mosaico que caracteriza os pleitos locais e, por fim, um cenário político nos grandes centros que não é o mais favorável às duas grandes forças eleitorais do país - o bolsonarismo e o petismo.

O primeiro aspecto a ressaltar não é alvissareiro à democracia: nunca houve tão pouco debate numa eleição brasileira desde o fim da ditadura militar. Na disputa municipal de 2020, os políticos falam menos ao povo, discutem menos entre si e disputam com dancinhas no TikTok a atenção de gente que está mais preocupada com memes. Esse fenômeno é resultado de uma tendência mais recente de mudanças no regramento eleitoral, da dificuldade de se montar discussões entre candidatos na mídia eletrônica e dos efeitos da pandemia.

Já faz quase uma década que o país tem optado, paulatinamente, pela redução do tempo de campanha e pela diminuição da duração do horário eleitoral gratuito. Para defender essa proposta, argumentava-se que o processo eleitoral tinha um custo excessivo, algo que gerou, em décadas, vários escândalos de corrupção. Essa proposição não deixa de ser em parte verdadeira, mas para uma eleição local, em que não há tanta exposição na mídia das principais disputas (a não ser na reta final), essa lógica pode beneficiar os que já têm cargos eletivos e os candidatos mais conhecidos, gerando uma barreira de entrada aos que venham de fora e que apresentem ideias novas, embora não necessariamente boas.

Anne Krueger* - O capitalismo de compadrio de Trump

- Valor Econômico

Sob o governo de Donald Trump, porém, o capitalismo clientelista se enraizou. Agora, precisará ser extirpado. De outra forma, a economia dos Estados Unidos continuará sendo refreada enquanto escroques e trapaceiros enchem os bolsos

Levou quatro anos, mas a elisão fiscal e o grande endividamento do presidente Donald Trump, enfim, vêm sendo expostos, assim como seus muitos casos de atuação em benefício próprio e seus esforços para beneficiar seus compadres. No governo Trump, os Estados Unidos começaram a exemplificar o capitalismo de compadrio, no qual líderes políticos dão benefícios e proteção a empresas em troca de favores econômicos e aceitação política.

Nesse tipo de arranjo, normalmente associado a Estados pós-comunistas e pós-coloniais, os “compadres” são os “amigos” que apoiam e financiam governantes autocráticos. Em troca de contribuições de campanha e outros recursos, eles ganham posições monopolistas, isenções tributárias especiais, proteção contra importações concorrentes e isenções de tarifas que não são replicadas para seus rivais. O termo “capitalismo” passa a ser usado de forma imprópria: embora a atividade econômica seja realizada pelo setor privado, a lucratividade depende das recompensas e penalidades definidas pelos governantes políticos, não pela eficiência econômica ou pela satisfação dos clientes.

Claudia Safatle - O mercado de trabalho e o temor da crise fiscal

- Valor Econômico

Qualquer ação do governo só virá depois das eleições

Assessores do Ministério da Economia têm conversado com o ministro Paulo Guedes sobre a necessidade de o governo dar sinais claros do que pretende fazer para estimular o mercado de trabalho em 2021. Em dezembro termina o pagamento do auxílio emergencial para 66 milhões de brasileiros. O impacto, sobre a atividade, do fim da transferência desses recursos, com custo mensal próximo a R$ 50 bilhões, não será trivial e tem o poder, inclusive, de frear a retomada da economia.

Das conversas, em princípio, ficou a intenção de Guedes divulgar sua estratégia, diagnóstico e objetivos para o ano que vem tão logo se saiba o resultado das urnas em novembro.

 “Temos que bater com o gato morto na cara da sociedade e da classe política”, disse uma fonte oficial. “Não é preciso ser adivinho para saber que estamos tendo uma crise no mercado de trabalho e temos que ter uma política para facilitar o processo de acesso ao emprego”, completou, citando a desoneração da folha de salário das empresas e a sua contrapartida, que é a criação do Imposto sobe Transações, “goste ou não a Faria Lima”, afirmou.

A proposta de desoneração da folha tem como base o diagnóstico de que a oferta de emprego é escassa porque ele é caro. Outra ideia que também se fundamenta nesse diagnóstico é a de segmentar os setores mais vulneráveis, sobretudo os jovens. “Essa população excluída precisa de regras simplificadas de contratação destinadas a ela”, disse, listando, também, a criação da Carteira Verde Amarela como uma rampa de acesso ao mercado livre dos principais encargos trabalhistas. “Não vamos mexer com o restante do mercado de trabalho”, assegurou.

José de Souza Martins* - A vacina dos sem-banho

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

 Há mais ordem social entre os pobres das ruas do que nos recintos do poder

Um dos candidatos a prefeito da cidade de São Paulo comentou com os jornalistas, após um encontro na Associação Comercial, que a suposição de que os moradores de rua seriam os mais atingidos pela pandemia não se confirmou.

Ele arriscou uma hipótese para explicar outra e duvidosa hipótese: “Talvez eles sejam mais resistentes do que a gente, porque eles convivem o tempo todo nas ruas, não têm como tomar banho todos os dias”. A fala não tem uma evidência médica. Mas tem uma evidência sociológica de como é o mundo do candidato: o da sociedade dividida entre “a gente” e “eles”, os que tomam banho e os que não o tomam.

Sua esdrúxula explicação lembrou-me de outro caso, de anos atrás. Eu estava numa reunião em colégio católico em que se debatia pobreza e exclusão social. Uma das senhoras, de uns 60 anos, tomou a palavra, virou-se para o único negro presente, um senhor de idade, e disse-lhe: “Vocês, pobres, precisam cuidar da limpeza, varrer a casa, manter a casa limpa”. Era sua solução para o problema da pobreza.

Flávia Oliveira - Mulheres sob ameaça

- O Globo

O Brasil avançou no arcabouço legal, com as leis Maria da Pena e do Feminicídio. Mas ainda deve o compromisso inegociável de pôr fim à violência de gênero

A pandemia que escancarou desigualdades sociais históricas também tirou das sombras o ambiente de violência de gênero que acossa as brasileiras. O confinamento doméstico indicado como prevenção ao novo coronavírus trouxe como colateral uma escalada de abuso e assédio, agressão e assassinato. Dados alarmantes foram apresentados ao país numa indispensável edição extraordinária do Anuário Brasileiro da Segurança Pública, que acompanhou o rastro das ocorrências no primeiro semestre, pico do isolamento social. Não são novidades a brutalidade contra meninas, jovens e mulheres nem a tolerância social que a cerca. O que 2020 trouxe de anormal foram a incidência galopante durante a mais grave crise sanitária em um século, a indignação de setores da sociedade e a indiferença de um governo atracado à necropolítica.

O conceito estruturado pelo filósofo e historiador Achille Mbembe comporta a banalização da morte expressa nos homicídios que, no Brasil, e no encarceramento em massa, que alcançam sobretudo jovens negros de áreas periféricas; na criminalização da pobreza, no racismo. Também é necropolítica quando desemprego, insegurança alimentar, habitação precária, trabalho insalubre e mal remunerado, escassez de saneamento, atenção à saúde e mobilidade urbana se abatem sobre a metade mais pobre, mais preta, menos escolarizada da população. É necropolítica quando o presidente da República, como fez Jair Bolsonaro, usa vacina como instrumento de desinformação, xenofobia e disputa política rasteira, em lugar de respeito à ciência e promessa de vida.

Nelson Motta - Bye bye, Crivella

- O Globo

A degradação econômica, urbana e cultural da cidade foi acompanhada pela deterioração do que se chamava ‘espírito carioca’

Irmãos, trago boas novas. Tudo indica que vamos nos livrar do satânico bispo Crivella nas eleições de novembro. É o líder absoluto entre os mais rejeitados. Graças a Deus! Aleluia! Epá Babá Oxalá! Mas e o day after? O novo prefeito vai encontrar uma cidade devastada e degradada por uma administração marcada por escândalos e ineficiência, destruindo ou abandonando legados da administração anterior, como o Porto Maravilha e o VLT.

No “Retrato de Dorian Gray”, Oscar Wilde diz que só pessoas superficiais não julgam pelas aparências. Crivella, por exemplo, com sua conversa mole e sua brancura de cera, parece um clássico personagem de histórias de terror, o antigo mordomo do casarão, que fala macio, é humilde e prestativo com o casalzinho que herdou a mansão, mas à noite se transforma num vampiro e lhes suga o sangue. Coitado, não tem culpa de ter nascido com esse physique du rôle, mas combina com seu populismo canhestro e seu obscurantismo provinciano.

A degradação econômica, urbana e cultural da cidade foi acompanhada pela deterioração do que se chamava “espírito carioca”, que nos orgulhava e diferenciava do resto do Brasil. Até os paulistas admiravam nosso estilo de vida mais relaxado e informal, nosso humor e cordialidade, nossa simpatia e a nossa fala cheia de gírias e chiados.

O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais

Politização da vacina é um desserviço ao país - Opinião | Valor Econômico

Para a população, importa mais aniquilar a covid-19 do que cálculos políticos matreiros

Contra um vírus letal e altamente contagioso como o sars-cov-2, o melhor remédio é ser pragmático e apostar em todas as vacinas que possam vir a surgir, não importa de onde venham, desde que sejam comprovadamente eficazes. Essas vacinas não existem, mas há várias no último estágio de testes (fase 3) e é possível que até janeiro alguma esteja disponível. Parecem mais adiantados os imunizantes que estão sendo elaborados pela AstraZeneca e Universidade de Oxford, que no país será fabricada pela Fiocruz, e a Coronavac, da chinesa Sinopec, que no Brasil será produzida pelo Instituto Butantan.

O governo brasileiro pareceu que seguiria o caminho correto, ao realizar acordos de compras iniciais dessas duas vacinas, de 140 milhões de doses da AstraZeneca e 46 milhões da Sinopec. Antes de contrair a covid-19, o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, havia anunciado acordo para a aquisição da Coronavac, que chamou de “a vacina do Brasil”. Só que não.

O presidente Jair Bolsonaro, no dia seguinte, após obter sua dose diária de inspiração política das mídias sociais de seus apoiadores, decidiu anular o que Pazuello fizera. “Toda e qualquer vacina será descartada por enquanto”, disse. Propagandista da hidroxicloroquina, que estudos apontam como ineficaz contra o novo coronavírus, o presidente disse que “a vacina precisa de comprovação científica”.

Bolsonaro bradou “traição” porque Pazuello mostrou-se aberto à vacina cuja produção foi negociada pelo governador paulista, o tucano João Doria, um concorrente certo à Presidência em 2020. Doria, que não perde a oportunidade de buscar dividendos políticos com o imunizante, e as redes tucanas o batizaram de “a vacina do Brasil”. Irritado, Bolsonaro se referiu a ela como a “vacina da China”, da mesma forma que, para o presidente Donald Trump, o sars-cov-2 é “o vírus chinês”.

Assim, a campanha presidencial abriu um novo capítulo sanitário, com disputas e demagogia - antes mesmo da existência de vacinas.

Música | MPB4 e Toquinho - A casa / O vento / A bicicleta / O pato / Ninguém me ama / O caderno

 

Poesia | Joaquim Cardozo - A tarde sobe

Ao rés da Terra o tempo é escuro
Mas a tarde sobe, se ergue no ar tranquilo e doce
A tarde sobe!
No alto se ilumina, se esclarece.
E paira na região iluminada.

Sobe, desfaz a trama de entrelaços
Superpostos na maneira dos esquadros
Sobre o chão aos poucos escurecendo.
Sobe: No meio da parte densa.

Sobe alva, serena para as estrelas
Que irão em breve aparecer,
Luzindo, no princípio da noite;
No espaço branco em que se completa
Preenchendo o centro e a esquerda
Branco que saiu limpo
De um fundo escuro de hachuras.

A tarde sobe!
Sobe até o zênite dando aos que passam
A paz e a serenidade do entardecer.

A tarde sobe pura e macia!
As linhas de baixo se inclinam
Se afastam e vão deixá-la subir.