DEU NO VALOR ECONÔMICOUm observador estrangeiro que queira interpretar o atual estado de coisas da política brasileira deve estar advertido de que este país tem horror à linha reta, uma vez que o traço da preferência nacional é o ziguezague. Fazem-se, por exemplo, histórias políticas de êxito em nome da necessidade de uma ruptura com a era Vargas para, mais à frente, reabilitá-la, sem que se suspenda o juízo crítico que a condenou como experiência malsã e sem que se justifiquem os motivos da sua reabilitação. Metáforas médicas como sístoles e diástoles são empregadas, com sucesso de público, para explicar as vicissitudes do federalismo brasileiro, como se, para nós, o eterno retorno fosse um dado da natureza do nosso metabolismo político.
Ainda agora, no curso desse ciclo de dezesseis anos de governos de social-democracia à brasileira, com seus temas reprisados à exaustão, como esse tal de presidencialismo de coalizão que nos assola desde FHC, sinais que poderiam indicar uma circunstância afortunada para invenção e descoberta de novos caminhos, nos levam mais uma vez ao passado, em busca de velhas ferramentas. Assim, nesta sucessão presidencial, os magos da prestidigitação eleitoral afetam sacar da cartola a tópica do nacional-popular, evocando um tempo de crispações e de duros antagonismos da sociedade dos anos 1950/60, embora vivamos sob um céu de brigadeiro, nessa ordem burguesa domesticada, que se aprofunda sem cessar.
A tópica do nacional-popular, como se sabe, resultou de uma inovação conceitual e política concebida especialmente pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), em meados do século passado, após longo processo de discussão. Seus termos foram consagrados na famosa Declaração de Março de 1958, com que os comunistas abandonaram a ortodoxia das lutas de "classe contra classe", passando a adotar uma política de alianças amplas em torno do nacionalismo a fim de emancipar o país da dominação imperialista, especialmente americana, e de remover os entraves estruturais que estariam impedindo o livre desenvolvimento das forças produtivas nacionais, entre as quais as relações semifeudais no mundo agrário. Tal aliança deveria assumir uma configuração pluriclassista heterogênea, envolvendo o proletariado, seu componente mais consequente, os camponeses, a pequena burguesia urbana, a burguesia e até os setores latifundiários que possuíssem contradições com o imperialismo norte-americano.
Com essas características, suportada em elementos de extração social tão diversa, essa aliança nascia dependente de ações políticas bem calculadas, que, sem perder de vista os interesses contraditórios dos atores envolvidos, fosse capaz de manter a unidade em prol do objetivo comum. Segundo o texto da Declaração, a burguesia seria uma força revolucionária inconsequente, temerosa de uma ação independente das massas, vacilante e tendente a compromissos com os setores entreguistas. O proletariado deveria se postar, a um tempo, como o agente mais ativo das lutas dessa complexa frente e como a sua consciência crítica, salvaguardando a sua independência ideológica, política e organizativa sem, no entanto, comprometer o objetivo principal da aliança nacionalista.
Em suma, a ele cabia disputar a hegemonia no interior dessa coalizão pluriclassista, sem se deixar subsumir às forças aliadas - mas sem antagonizá-las radicalmente -, daí que, nessa concepção, a melhor designação desse movimento seria a de nacional-popular.
O cenário em que veio à luz a Declaração de março de 1958 é o da política desenvolvimentista de JK, apenas alguns anos após o trágico desfecho do segundo governo Vargas. Sob JK, o executivo chama para si o planejamento do processo de indução da industrialização, que passa a ser favorecido por financiamento do Estado e a contar com sua proteção fiscal. Para a esquerda e os setores nacionalistas, inclusive das Forças Armadas e da alta burocracia estatal, estaria aberta uma senda nova, a ser mantida e ampliada, e que significava, afinal, a descoberta da natureza singular da revolução brasileira como nacional, democrática e popular.
Levar essa revolução à frente importava uma crescente mobilização de massas, das cidades e do campo, nesse último caso em torno de uma reforma agrária em favor do campesinato e de lutas que viessem a garantir os direitos trabalhistas no mundo agrário. Nesse sentido, a radicalização dos movimentos por direitos dos setores subalternos deveria se traduzir em pressões de baixo para cima em favor da abertura do Estado às suas reivindicações e em mudanças internas em sua composição, que, por sua vez, deveriam repercutir em favor de medidas mais enérgicas contra os interesses e grupos identificados como inimigos da nação.
Notório que, em 1964, fechou-se esse capítulo do nacional-popular. O regime militar, em particular no governo Geisel, reinterpretou-o de forma bastarda, cancelando o popular e concedendo ao nacional o sentido grão-burguês de objetivos de grandeza nacional. Agora, quanto mais se aproxima o fim do segundo governo Lula e mais vizinhos estamos do processo eleitoral, imprevistamente, ressurge, vindo de vozes do interior do próprio Estado, a questão nacional, nua de qualquer outra qualificação e absolutamente inocente quanto a pretensões de mobilização popular, inclusive no mundo agrário, que, aliás, vai muito bem com o agronegócio. Discípulos de um filósofo político em moda poderiam perguntar: nessa versão corrente da questão nacional, qual é mesmo o inimigo? A imagem é gasta, talvez devesse ser evitada, mas se tornou inevitável, porque o enredo trágico do nacional-popular - com o suicídio de um presidente, a renúncia de outro e um golpe militar - está ameaçando retornar como farsa.