Costa-Gavras/ Sabatina
Do enviado especial a Recife Da agência Folha, em Recife
DEU NA FOLHA DE S. PAULO / ILUSTRADA (ontem)
Em sabatina da Folha, em Recife, o cineasta Costa-Gavras defende liberdade dos filmes, mas diz que governo deve apoiar e regulamentar
Diretor de filmes como "Z" e "Estado de Sítio", identificados com perspectivas políticas de esquerda, o cineasta greco-francês Costa-Gavras, 76, defendeu anteontem em Recife que o "cinema nacional não pode existir sem ajuda forte do Estado". Para ele, tal apoio não poderia permitir interferências ideológicas como as ocorridas na Rússia stalinista ou em Hollywood durante o período da Guerra Fria. "O cinema deve ser livre. Cada pais deve refletir sua própria imagem como um espelho", disse.
Convidado do 13º Cine-PE, em que veio apresentar seu mais recente longa, "Eden à l'Ouest" (Eden ao oeste), Costa-Gavras participou na capital pernambucana de sabatina da Folha, respondendo a perguntas do editor de Moda Alcino Leite Neto, do crítico Inácio Araujo, da repórter Silvana Arantes e da plateia. O diretor falou sobre "Tropa de Elite" -que venceu o Urso de Ouro 2008, quando ele presidiu o júri do Festival de Berlim-, militância, política e tecnologia.
"Ninguém vai ver filme como aula"
Costa-Gavras rejeita a ideia de usar seus longas para militar e diz que cinema é espetáculo, para público "amar, odiar, chorar"
Cineasta greco-francês diz que filmes atuam na "formação da sensibilidade" das pessoas e que o cinema de autor está "em perigo"
Na sabatina da Folha anteontem, em Recife, o diretor Costa-Gavras evitou o rótulo de cinema político para sua filmografia, explicando que seus filmes de maior sucesso, como "Z" e "Estado de Sítio" eram fortemente documentais, sem abrir mão de elementos da ficção, como o suspense. Leia a seguir alguns trechos.
CINEMA POLÍTICO E MILITÂNCIA
Todos os filmes são políticos. Até mesmo os com [a atriz norte-americana] Esther Williams, que mostravam carros bonitos, mulheres na piscina, casas com cozinhas modernas etc. Quando eu ainda estava na Grécia, achava que essa era a América. Mas não era. Como dizia [o escritor e semiólogo francês] Roland Barthes, todos os filmes são políticos ou podemos analisá-los politicamente.
[...] Eu nunca participei de partido político. Mas vim de um país onde se aprendia que Stalin havia derrotado Hitler.
Nossa geração era atraída pelo stalinismo. Descobri um sistema comunista que se chamava socialismo, que apoiei, mas do qual depois eu me afastei. Pertencer a ele exigia quase abandonar o livre arbítrio e não ter ideias contrárias. Escolhi pensar por mim mesmo e sempre fiquei longe dos partidos.
Além disso, tive uma mãe que dizia sempre: "Fique longe dos partidos políticos". Tenho respeito pelo cinema militante, procuro entender se há manipulação ou não, mas não vou militar porque quero preservar toda a minha liberdade.
O presidente François Mitterrand [1916-1996] me pediu indiretamente que fizesse um documentário sobre ele. Houve várias coisas com que eu não concordei no governo dele e que queria criticar. Então, não fiz o filme.
PAPEL DO CINEMA
Desde seu nascimento, o cinema teve papel importante na sociedade, na formação da sensibilidade das pessoas [...]. Ele desempenhou um papel negativo na década de 30, na Rússia de Stalin e durante a Guerra Fria, em Hollywood, porque manipulou os espectadores e divulgou uma ideologia que não era a do cinema livre.
Um exemplo [positivo] recente foi citado num artigo do "New York Times", que dizia que Barack Obama fora eleito graças ao cinema. No passado, o cinema mostrou o negro operário, que não podia ocupar cargos importantes. Mas, nos últimos 25 anos, mostrou negros como arquitetos, advogados etc. Acho que teve até uma série de TV que mostrou um presidente negro. Isso permitiu que ele [Obama] fosse considerado não alguém que veio da África, mas como qualquer outro integrante da sociedade.
[...] O cinema nacional não pode existir sem a ajuda forte do Estado. Não se trata apenas de dinheiro, mas de regulamentação. Dizem que o cinema americano não precisa de ajuda estatal, mas não é verdade. O Estado apoia o cinema americano no país todo.
CINEMA-ESPETÁCULO
É preciso guardar certas liberdades para o cinema. Cinema é espetáculo. Ninguém vai ver um filme como quem vai ter uma aula na universidade ou ouvir um discurso num comício político. As pessoas vão para amar, odiar, chorar etc., sentimentos importantes que definem a nossa vida.
Eu venho dessa tradição do cinema em que se falava dos seres humanos de um modo espetacular. De uma escola de grandes filmes que podiam ser ao mesmo tempo populares. Como "O Encouraçado Potenkim" [1925, dirigido por Sergei Eisenstein], que exige cultura politica, porque é um filme que trata de homens frente a uma situação difícil. Bertolt Brecht fez um teatro que fala de política, mas que também trata de sentimentos.
TECNOLOGIA
Cada vez que aparece uma nova tecnologia, o cinema conhece uma mudança profunda também estética. Temos o exemplo da mudança do cinema mudo para o falado, que foi radical. E, no início da década de 50, com o surgimento de películas mais sensíveis, veio a nouvelle vague.
Hoje vemos uma transformação total com a tecnologia digital, tanto no plano econômico como no estético. Hoje qualquer grupo de jovens pode fazer filmes com uma câmera digital. É uma nova concepção.
E, com o DVD, um filme pode circular por todo lugar do mundo. Os filmes viajam mais facilmente, mas há riscos de aspectos negativos. Filme no telefone seria uma coisa estúpida. Qualquer companhia pode impor sua vontade ao público privado. É preciso que o cinema nacional não seja engolido, que a liberdade não seja esmagada.
CRÍTICA DA CRÍTICA
A crítica no cinema é indispensável, é uma maneira de apresentar a obra para o espectador, para ele entender aspectos invisíveis, qualidades estéticas etc. O que aconteceu nos últimos anos é que os poucos bons críticos não existem mais.
Contrataram jovens que não têm conhecimento, não há quem faça uma boa análise do filme. Contam o enredo e dizem se é bom ou não.
[...] Não gosto muito da [revista] "Studio" e da "Première", que falam da vida dos atores, de modo um pouco sensacionalista, não fazem análise das obras. Idealmente deveria haver uma escola de crítica, em que se falasse da história do cinema como se faz na literatura. Mas isso é extremamente raro.
CINEMA AUTORAL
Esse cinema está em perigo, é claro. Pelo menos na França e na Europa como um todo, em que depende do financiamento dos canais de TV. E sabemos muito bem que elas podem fazer filmes que sejam amplamente populares, que permitam ao espectador se acalmar e não pensar em problemas e comprar Coca-Cola.
Há várias definições de cinema de autor. Na de André Bazin [1918-1958, crítico e teórico de cinema, cofundador da revista "Cahiers du Cinéma"], cinema de autor se trata de obra de criador que tem continuidade, que não muda de uma problemática para outra, e que tem estilo pessoal.
Hoje não temos na França essa concepção de cinema de autor. Atribuímos a uns em detrimento de outros. Defendo na Cinemateca Francesa [da qual é diretor] que todos sejam mostrados. Há muitos filmes que hoje não são considerados como de autor, mas que eu considero como tal.
"TROPA DE ELITE"
Fiquei profundamente emocionado com o filme de Padilha, que mostrava o papel da pobreza e dos grupos de traficantes na sociedade brasileira. Escutei várias opiniões [no júri do Festival de Berlim, que ele presidiu] e eram todas parecidas. Não houve imposição minha [na premiação com o Urso de Ouro], foi unanimidade do júri.
[...] [Quanto a ser ou não um filme fascista], posso dizer que o poder dá todas as possibilidades de a polícia agir. É claro que os policiais se tornam fascistas, porque são salvadores da pátria para a sociedade, pois vão eliminando os traficantes.
[...] Se o filme deixa a convicção de que a polícia é a solução dos problemas, então é grave [que a plateia brasileira tenha aplaudido a violência dos policiais]. Mas volto para o que me emocionou no filme: a função da democracia é negada na história. Ela não funciona mais. É como uma miniditadura que é autorizada pelo poder público.
UM FILME NO BRASIL
Para alguém de fora como eu seria difícil captar e compreender os problemas do Brasil num filme. "Estado de Sítio" [1972] era um filme particular, porque falava de um sequestro, numerosos na época, e de um movimento revolucionário tipo Robin Hood [os tupamaros].
Isso me interessou, passei muito tempo no Uruguai e discuti muito com muitas pessoas. Vir ao Brasil fazer um filme me parece difícil, eu precisaria ter um tema específico, aprender a língua, como aprendi espanhol, e passar uns seis meses ou um ano. Eu não me sinto capaz de fazer um filme sobre a realidade brasileira.
REVOLUÇÕES
[Se eu acredito em revoluções?] São ideias pessoais. Estamos falando de revolução armada ou revolução social, por meios democráticos, nos quais é preciso respeitar todas as classes?
Se falamos de revolução armada, chegamos à conclusão de que o sucesso não foi alcançado, não mostrou suas vantagens.
Poderia ter mostrado em Cuba, mas o mundo ocidental a bloqueou de tal forma que não pode ter êxito. A revolução social vai depender de seus líderes, da capacidade de impor suas ideias e de como cada um vai reagir a elas.