Ali Kamel
DEU EM O GLOBO
Conheci Leandro Konder 26 anos atrás, quando, levado por uma amiga, estive na casa dele para que eu e ela tentássemos aprender um pouco de Kant, já que enfrentávamos grande dificuldade na matéria na faculdade. Fiquei impressionado com a erudição do homem, e com uma característica que sempre admirei nos professores: não cair no didatismo e ser um expositor claro. Minhas deficiências eram tantas, porém, que saí de lá me sentindo mais ignorante do que quando entrei. De lá pra cá, tive poucos contatos com ele, e, infelizmente, nunca mais numa relação de professor e aluno.
Na época, eu tinha já uma admiração especial por Leandro e pelo grupo de intelectuais e ativistas a que ele se filiava. Declaradamente comunistas, eram vistos, porém, como a “direita” do PCB, pelas críticas que faziam à ortodoxia comunista. Leandro, Carlos Nelson Coutinho, Armênio Guedes, Marcelo Cerqueira, Milton Temer eram “eurocomunistas”: influenciados por Gramsci, Palmiro Togliatti e Pietro Ingrao, tinham como referência especialmente as políticas de Enrico Berlinguer, então secretário-geral do Partido Comunista Italiano. Um ensaio fundamental na época era “A democracia como valor universal”, de Carlos Nelson. A tese, ultra-resumida e simplificada aqui, era que a democracia não poderia ser vista como um instrumento tático, com vistas à tomada de poder; a democracia é um valor absoluto, de que não se pode abrir mão jamais. O próprio socialismo só seria alcançado quando a classe operária e aliados conquistassem a hegemonia sobre o conjunto da sociedade, ou seja, quando todos se convencessem de suas virtudes superiores; e a hegemonia seria transparentemente exercida na democracia socialista, que seria o resultado da articulação das conquistas da democracia liberal com os organismos da democracia direta.
Na juventude, alguém já disse, todos somos comunistas, ou queremos ser ou somos pressionados a ser pelo meio. O meu caso, confesso, era mais próximo da segunda e terceira hipóteses, mas a leitura do ensaio de Carlos Nelson foi fundamental para que eu me afastasse da esquerda. Fui ganho pela defesa apaixonada que ele faz da democracia, mas não fui convencido de que, no fim da linha, a democracia no socialismo venha a ser de fato uma democracia. No texto, Carlos Nelson antecipava, para repelir, a crítica que os liberais fariam ao esquema: a de que “a democracia é pluralismo e que a defesa da hegemonia de uma classe ou conjunto de classe é, por sua própria natureza, sinônimo de totalitarismo e despotismo.” Com o tempo, acabei concordando com a crítica e não com Carlos Nelson. Seja como for, a formulação “eurocomunista” era jato de ar fresco se comparada à rigidez da ortodoxia comunista. Por esse motivo, nunca entendi a trajetória da maior parte daquele grupo: da “direita” do Partidão, foram se deslocando para o extremo oposto: entraram no PSB, no PT e, hoje, estão no ortodoxo PSOL.
Por que essas reminiscências? Porque li com avidez “Leandro Konder, memórias de um intelectual comunista”, autobiografia que ele acaba de publicar, e procurei ali respostas que buscava havia tempos. O livro, como tudo o que Leandro escreve, é excelente: numa linguagem sucinta, ao contar de si e dos outros, traça um panorama da vida brasileira dos últimos 50 anos, usando como fio condutor os livros que escreveu. Sobre minhas dúvidas, porém, não encontrei respostas.
Leandro revela grande dissabor com o rótulo de “eurocomunista”, segundo ele lançado contra o grupo pela “máquina” do PCB: “Começaram a usar com extraordinária freqüência o termo ‘eurocomunista’, que desqualificava o sujeito criticado, caracterizando-o como o adepto de um programa flexível, preconizador de um avanço feito através de reformas, em compromisso com o pluripartidarismo.” Levei um susto, pois, na época, muitos os admiravam justamente porque eram “euro”, um rótulo que não repudiavam. No início, acreditei que encontraria uma autocrítica das posições passadas para justificar as posições presentes. Não encontrei, e por uma razão: para Leandro, não houve mudança. Ele se afirma hoje, como ontem, um intelectual comunista. Aplaudo a coerência. Mas continuo sem entender como intelectuais que faziam uma análise tão refinada da realidade, a ponto de anteciparem em um bom par de anos a inviabilidade do modelo soviético, possam hoje militar no PSOL.
Carlos Nelson não autoriza mais a publicação do seu “A democracia como valor universal”, porque considera que, embora a tese central seja válida, o ensaio falha ao não enfatizar o socialismo. No livro “Contra a corrente”, Carlos Nelson diz: “Se sem democracia não há socialismo, tampouco há democracia plena sem socialismo, ou seja, sem a superação da sociedade de classes, fundada na exploração e na alienação.” Para mim, isso destrói a tese do ensaio original. Na autobiografia, Leandro diz sobre o ensaio: “Mais tarde, Carlos Nelson viria a lamentar que nele _ na medida em que não se sublinhava a importância do socialismo _ a exaltação do valor da democracia se prestava para uma leitura liberal, que facilmente descambava para uma indevida euforia. A exaltação do socialismo está presente em outros textos de Carlos Nelson, não tinha de estar necessariamente nesse. Os liberais não se equivocaram por não terem se defrontado com a proclamação da importância do socialismo. Equivocaram-se porque queriam.”
Eu não falaria em equívocos. Muitos, como eu, leram o ensaio e, graças a uma argumentação transparente, escolheram caminhos próprios. É isso o que intelectuais honestos, como Leandro e Carlos Nelson, proporcionam. Por isso o novo livro de Leandro é tão bem-vindo. Por isso é de lamentar a decisão de Carlos Nelson de não mais publicar aquele ensaio em sua versão original
DEU EM O GLOBO
Conheci Leandro Konder 26 anos atrás, quando, levado por uma amiga, estive na casa dele para que eu e ela tentássemos aprender um pouco de Kant, já que enfrentávamos grande dificuldade na matéria na faculdade. Fiquei impressionado com a erudição do homem, e com uma característica que sempre admirei nos professores: não cair no didatismo e ser um expositor claro. Minhas deficiências eram tantas, porém, que saí de lá me sentindo mais ignorante do que quando entrei. De lá pra cá, tive poucos contatos com ele, e, infelizmente, nunca mais numa relação de professor e aluno.
Na época, eu tinha já uma admiração especial por Leandro e pelo grupo de intelectuais e ativistas a que ele se filiava. Declaradamente comunistas, eram vistos, porém, como a “direita” do PCB, pelas críticas que faziam à ortodoxia comunista. Leandro, Carlos Nelson Coutinho, Armênio Guedes, Marcelo Cerqueira, Milton Temer eram “eurocomunistas”: influenciados por Gramsci, Palmiro Togliatti e Pietro Ingrao, tinham como referência especialmente as políticas de Enrico Berlinguer, então secretário-geral do Partido Comunista Italiano. Um ensaio fundamental na época era “A democracia como valor universal”, de Carlos Nelson. A tese, ultra-resumida e simplificada aqui, era que a democracia não poderia ser vista como um instrumento tático, com vistas à tomada de poder; a democracia é um valor absoluto, de que não se pode abrir mão jamais. O próprio socialismo só seria alcançado quando a classe operária e aliados conquistassem a hegemonia sobre o conjunto da sociedade, ou seja, quando todos se convencessem de suas virtudes superiores; e a hegemonia seria transparentemente exercida na democracia socialista, que seria o resultado da articulação das conquistas da democracia liberal com os organismos da democracia direta.
Na juventude, alguém já disse, todos somos comunistas, ou queremos ser ou somos pressionados a ser pelo meio. O meu caso, confesso, era mais próximo da segunda e terceira hipóteses, mas a leitura do ensaio de Carlos Nelson foi fundamental para que eu me afastasse da esquerda. Fui ganho pela defesa apaixonada que ele faz da democracia, mas não fui convencido de que, no fim da linha, a democracia no socialismo venha a ser de fato uma democracia. No texto, Carlos Nelson antecipava, para repelir, a crítica que os liberais fariam ao esquema: a de que “a democracia é pluralismo e que a defesa da hegemonia de uma classe ou conjunto de classe é, por sua própria natureza, sinônimo de totalitarismo e despotismo.” Com o tempo, acabei concordando com a crítica e não com Carlos Nelson. Seja como for, a formulação “eurocomunista” era jato de ar fresco se comparada à rigidez da ortodoxia comunista. Por esse motivo, nunca entendi a trajetória da maior parte daquele grupo: da “direita” do Partidão, foram se deslocando para o extremo oposto: entraram no PSB, no PT e, hoje, estão no ortodoxo PSOL.
Por que essas reminiscências? Porque li com avidez “Leandro Konder, memórias de um intelectual comunista”, autobiografia que ele acaba de publicar, e procurei ali respostas que buscava havia tempos. O livro, como tudo o que Leandro escreve, é excelente: numa linguagem sucinta, ao contar de si e dos outros, traça um panorama da vida brasileira dos últimos 50 anos, usando como fio condutor os livros que escreveu. Sobre minhas dúvidas, porém, não encontrei respostas.
Leandro revela grande dissabor com o rótulo de “eurocomunista”, segundo ele lançado contra o grupo pela “máquina” do PCB: “Começaram a usar com extraordinária freqüência o termo ‘eurocomunista’, que desqualificava o sujeito criticado, caracterizando-o como o adepto de um programa flexível, preconizador de um avanço feito através de reformas, em compromisso com o pluripartidarismo.” Levei um susto, pois, na época, muitos os admiravam justamente porque eram “euro”, um rótulo que não repudiavam. No início, acreditei que encontraria uma autocrítica das posições passadas para justificar as posições presentes. Não encontrei, e por uma razão: para Leandro, não houve mudança. Ele se afirma hoje, como ontem, um intelectual comunista. Aplaudo a coerência. Mas continuo sem entender como intelectuais que faziam uma análise tão refinada da realidade, a ponto de anteciparem em um bom par de anos a inviabilidade do modelo soviético, possam hoje militar no PSOL.
Carlos Nelson não autoriza mais a publicação do seu “A democracia como valor universal”, porque considera que, embora a tese central seja válida, o ensaio falha ao não enfatizar o socialismo. No livro “Contra a corrente”, Carlos Nelson diz: “Se sem democracia não há socialismo, tampouco há democracia plena sem socialismo, ou seja, sem a superação da sociedade de classes, fundada na exploração e na alienação.” Para mim, isso destrói a tese do ensaio original. Na autobiografia, Leandro diz sobre o ensaio: “Mais tarde, Carlos Nelson viria a lamentar que nele _ na medida em que não se sublinhava a importância do socialismo _ a exaltação do valor da democracia se prestava para uma leitura liberal, que facilmente descambava para uma indevida euforia. A exaltação do socialismo está presente em outros textos de Carlos Nelson, não tinha de estar necessariamente nesse. Os liberais não se equivocaram por não terem se defrontado com a proclamação da importância do socialismo. Equivocaram-se porque queriam.”
Eu não falaria em equívocos. Muitos, como eu, leram o ensaio e, graças a uma argumentação transparente, escolheram caminhos próprios. É isso o que intelectuais honestos, como Leandro e Carlos Nelson, proporcionam. Por isso o novo livro de Leandro é tão bem-vindo. Por isso é de lamentar a decisão de Carlos Nelson de não mais publicar aquele ensaio em sua versão original