- O Estado de S.Paulo
Vivêssemos a polarização da guerra fria, a crise brasileira já teria tido um desfecho previsivelmente catastrófico
Vivêssemos a polarização da guerra fria, a crise brasileira já teria tido um desfecho previsivelmente catastrófico. É duvidoso que os atores do passado pudessem ter plena consciência do que faziam, mas o fato é que, falso ou verdadeiro, o fantasma do comunismo, ou da República sindicalista, foi mais do que suficiente para mobilizar nesta parte do mundo uma violenta reação em 1964, assim como em outras partes, como na Hungria de 1956 ou na Checoslováquia de 1968, forças de sinal contrário se impuseram, esmagando resistências e impondo soluções igualmente repressivas.
Bandeiras vermelhas ou gestos do comunismo, como o punho fechado, podem até continuar presentes, mas serão expressões sobretudo retóricas, ainda que possam prenunciar autoritarismos de tipo diferente dos do passado, que eram ou pretendiam ser “totais” em sua oposição ao mercado e à democracia “burguesa”. Um subperonismo será sempre possível e merecerá combate aberto de quem preza as liberdades, mas deve-se reconhecer que não há propriamente componente antissistêmico no petismo.
Daí que não haja nenhum paradoxo no fato de que a força de Lula, consolidada em um terço do eleitorado, derive fundamentalmente de um amplo – e em si mesmo razoável – programa de extração neoliberal, que abrange dezenas de milhões de compatriotas prisioneiros da miséria. Como é do conhecimento geral, o governo “golpista” não o extinguiu e não se vislumbram forças que queiram fazê-lo. Por isso mesmo, é irrazoável, aí, sim, que tenha servido para a construção do potente mito lulista, em vez de ser tomado como política pública do Estado democrático, com as qualidades e os defeitos de qualquer política.
Em que pesem as grandes mudanças do novo século, esquerda e direita não são posições inúteis ou anacrônicas, embora possam perfeitamente se comportar como tal. Na grande crise de agora, uma parte considerável decorre de escolhas do ator e da fragilidade de seu repertório. No caso do PT, a escolha do populismo, traço muito presente na tradição latino-americana em seu conjunto, representou pesada hipoteca, a implicar a identificação do líder (yo, el supremo) com o povo-nação, a desqualificação das oposições e o desprezo pelas mediações institucionais.
A degradação em larga escala do Parlamento – como o atestou há alguns anos o julgamento da correspondente ação penal pela Suprema Corte – esteve incluída nessa escolha. A sofreguidão para construir narrativas “heroicas”, como aquela que viu o impeachment de um mau governo como “golpe”, lançou raízes insólitas. Afinal, o golpe teria prosseguido com os subsequentes problemas judiciais do homem providencial, a quem seria lícito, entre outras coisas, adotar uma atitude de confronto permanente com o Judiciário e qualquer sujeito ou instância que considere “golpista” ou responsável por seus males.