Meu Deus, como a CPI do Cachoeira e o "mensalão" do Zé Dirceu têm
nos ensinado no último ano... Aprendemos muito sobre a estética da corrupção,
sobre a semiologia dos casos cabeludos. Eu adoro o vocabulário das defesas, das
dissimulações, as carinhas franzidas dos acusados na TV ostentando dignidade,
adoro ver ladrões de olhos em brasa, dedos espetados, uivos de falsas virtudes.
Quando explode um choro, é um êxtase. Alegam, entre soluços, que são sérios,
donos de empresas impecáveis. Vai-se olhar as empresas, e nunca nada rola
normal, como numa padaria. As empresas sempre são "em sanfona",
" en abîme " - uma dentro da outra, sempre com holdings, subsidiárias,
firmas sem dono, sem dinheiro, sem obras, vagando num labirinto jurídico e
contábil que leva a um precioso caos proposital, pois o emaranhado de ladrões
dificulta apurações.
Me emociona a amizade dentro das famílias corruptas. São inúmeros os primos,
tios, ex-sócios, ex-mulheres que assumem os contratos de gaveta, os recibos
falsos, todos labutando unidos. Baixa-me imensa nostalgia de uma família que
não tenho e fico imaginando os cálidos abraços, os sussurros de segredo nos
cantos das varandas, o piscar de olhos matreiros, as cotoveladas cúmplices
quando uma verba é liberada em 24 horas, os charutos comemorativos; tenho
inveja dos vastos jantares repletos de moquecas e gargalhadas, piadas,
dichotes, sacanagens tão jucundas, tão "coisas nossas", que até me
enternecem pela preciosidade antropológica de nossa sordidez.
Adoro ver as caras dos canalhas. Muitos são bochechudos, muitos cachaços
grossos, contrastando com o style anoréxico das vítimas da seca, da fome -
proletários chics , elegantérrimos pela dieta da miséria. Os corruptos tendem
para a obesidade e parecem acumular dentro das barrigas suas riquezas sempre
iguais: piscinas, fazendas, lanchões, "miamis". Todos têm amantes,
todos com esposas desprezadas e tristes se consumindo em plásticas e murchando
sob litros de Botox, têm filhos paspalhões, deformados pelas doenças atávicas
dos pais e avôs. Aprecio muito bigodões e bigodinhos. Nas oligarquias, os
bigodes corruptos são poderosos, impositivos, bigodes que ocultam origens
humildes criadas a farinha d"água e batata de umbu, camuflando ancestrais
miscigenados com índios e negros, na clara dissimulação de um racismo contra si
mesmos.
Amo o vocabulário dos velhacos e tartufos. É delicioso ver as caras
indignadas na TV, as uras de honestidade, ouvir as interjeições e adjetivos
raros: "ilibado", "estarrecido", "despautério",
"infâmias", "aleivosias"... Os corruptos amam a norma
castiça da língua, palavras que dormem em estado de dicionário e despertam na hora
de negar as roubalheiras. São termos solenes, ao contrário das gravações em
telefone: "Manda a grana logo para o f.d.p. do banco, que é um grande *#@,
senão eu vou #@** a mãe deste *#&@!!!"
Outra coisa maravilhosa nos canalhas é a falta de memória. Ninguém se lembra
de nada nunca: "Como? Aquela mulher ali, loura, "popozuda", de
minissaia? Não me lembro se foi minha secretária ou não."
E o aparente descaso com o dinheiro? Na vida real, farejam a grana como
perdigueiros e, no entanto, dizem nos inquéritos: "Ih!... como será que
apareceram dez milhões de reais na minha conta? Nem reparei. Ah... essa minha
memória!..."
E logo acorrem os juízes das comarcas amigas, que dão liminares e mandados
de segurança de madrugada, de pijama, no sólido apadrinhamento oligárquico, na cordialidade
forense e sempre alerta , feita de protelações, dasaforamentos, instâncias
infinitas, até o momento em que surge um juiz decente e jovem, que condena
alguém e é logo xingado de "exibicionista".
Adoro as imposturas, as perfídias, os sepulcros caiados, os beijos de Judas,
os abraços de tamanduá, as lágrimas de crocodilo.
Adoro a paisagem vagabunda de nossa vida brasileira, adoro esses exemplos de
sordidez descarada, que tanto ensinam sobre o nosso Brasil. Amo também ver o
balé jurídico da impunidade. Assim que se pega o gatuno, ali, na boca da
cumbuca, ali, na hora da "mão grande", surgem logo os advogados, com
ternos brilhantes, sisudos semblantes, liminares na cinta, serenidade cafajeste
e, por trás de muitos deles, dá para enxergar as faculdades malfeitas, as
"chicaninhas" decoradas, os diplomas comprados. Imagino a adrenalina
que lhes acende o sangue quando a mala preta voa em sua direção, cheia de
dólares. Imagino os olhos covardes dos juízes que lhes dão ganho de causa,
fingindo não perceber a piscadela cúmplice que lhes enviam na hora da emissão
da liminar.
Os canalhas explicam o Brasil de hoje. Eles tem raízes: avô ladrão, bisavô
negreiro e tataravô degredado. Durante quatro séculos, homens como eles criaram
capitanias, igrejas, congressos, labirintos. Nunca serão exterminados; ao
contrário - estão crescendo. Acham-se sempre certos, pois são
"vítimas" de um mal antigo: uma vingança pela humilhação infantil,
pela mãe lavadeira ou prostituta que trabalhou duro para comprar seu diploma
falso de advogado. Não adianta prender nem matar; sacripantas, velhacos,
biltres e salafrários renascerão com outros nomes, inventando novas formas de
roubar o país.
Adoro ver como eles gostam do delicioso arrepio de se saberem olhados nos
restaurantes e bordéis; homens e mulheres veem-nos com volúpia: "Olha, lá
vai o ladrão..." - sussurram fascinados por seu cinismo sorridente, os
"maîtres" se arremessando nas churrascarias de Brasília e eles
flutuando entre picanhas e chuletas. Enquanto houver 25 mil cargos de confiança
no país, enquanto houver autarquias dando empréstimos a fundo perdido, eles
viverão. Não adiantam CPIs querendo punir. No caso do mensalão, durante suas
defesas no STF, vimos que muitos contavam justamente com as deficiências da
Justiça para ganhar. Pode ser que agora mude tudo, depois desse julgamento
histórico. Mas, enquanto houver este bendito Código de Processo Penal, eles
sempre renascerão como rabos de lagartixa.