- O Globo
Ela nasceu em 4 de outubro de 1917, e veio ao mundo pobre de marré deci, em San Carlos, um vilarejo na periferia de Chillán, nos confins no Chile. O pai, insinuante e finório, boêmio, só gostava dos copos e do violão. A mãe dava duro na costura. A menina cresceu de pé no chão, zanzando por aí. Da mãe herdou as habilidades manuais. Do pai, o gosto pela música e pelo canto.
E assim, de bar em bar, na rua mesmo, em eventuais circos que passavam pelos remotos lugarejos, arrastando seus irmãos com ela, se fez cantora e violonista, sempre de ouvido. Em troca, os camponeses a aplaudiam, e lhe davam ovos e pão, às vezes, uma galinha e feijão, para aquela menina enérgica e decidida, corajosa.
O irmão mais velho, Nicanor, cedo se destacaria pela inteligência e pelo talento literário. Incentivado e apoiado, partiu para Santiago. Violeta, quando fez 15 anos, foi atrás. Pediu guarida, mas o tranquilizou: “Eu me sustento sozinha, com o meu violão”. Logo chamou os manos e com eles percorria casas de canto e de dança, bares e restaurantes, levando aos ouvidos distraídos dos fregueses e dos boêmios as canções populares que aprendera e ouvira do pai, dos amigos e familiares e das gentes dos campos.
Com muito trabalho, foi ganhando espaço e audiência. Como disse seu melhor biógrafo, Fernando Sáez, aquela voz afinada, algo áspera, estranha, sombria, terrosa, fora dos padrões, seduzia e encantava. Sempre que tinha um tempo, partia para os vilarejos à cata de músicas e canções. De cada viagem, vinha com uma colheita de joias raras do cancioneiro popular. Diziam das ilusões e das misérias da vida cotidiana, do trabalho duro, de Deus e do diabo, de seu combate eterno e apocalíptico, de sonhos e de amores que davam certo, alguns; outros, a maior parte, nem tanto. Trazia também, e nisto foi pioneira, os nomes dos autores e das autoras, o ambiente e a coreografia de cada canção, costumes e usos, comidas e bebidas associados, chegando inclusive a descobrir instrumentos musicais antigos, em desuso, como o chamado guitarrón, com 25 cordas agrupadas de cinco em cinco e que se tocam conjuntamente. E convidava as mulheres camponesas para conversar nos espetáculos, contar sobre as origens e as condições das músicas que cantavam: cuecas, tonadas, parabienes e esquinazos, cuartetas e décimas, chapecaos e mais polcas e mazurcas. Ao contrário de uma certa tradição idílica das relações nos campos, tecendo uma visão cor-de-rosa do que se convencionava chamar, de forma indulgente, de “folclore”, manifestação ingênua e “primitiva” de um povo “bom”, que aparecia para as elites através de mulheres e homens engalanados, Violeta mostrava o encanto da vida dos camponeses, mas sem disfarçar ou ocultar a dureza da vida que era a sua. E mudou inclusive a forma de se apresentar, com saias negras e blusas brancas, os vastos cabelos negros, entrançados ou soltos, realçando um rosto grave, olhos profundos e meio tristes.
E assim se fez conhecida aquela mulher e se tornou a melhor cantora do Chile: Violeta Parra.