ÉPOCA obteve vídeos, documentos e cheques que revelam como o aparelhamento partidário transformou a Agência Nacional do Petróleo numa central de achaque e extorsão
Diego Escosteguy. Com Murilo Ramos
Às 16h23 do dia 5 de maio de 2008, uma segunda-feira, dois assessores da Agência Nacional do Petróleo (ANP) encaminharam-se discretamente ao escritório da advogada Vanuza Sampaio, no centro do Rio de Janeiro. Os dois, Antonio José Moreira e Daniel Carvalho de Lima, acomodaram-se na sala de reuniões do escritório, tomaram cafezinho e conversaram por alguns minutos sobre amenidades. Ato contínuo, a advogada Vanuza assomou à porta. Vanuza é a advogada com mais volume de processos na ANP; conhece profundamente a agência. Tem como clientes distribuidoras de combustível, postos e empresários do setor de petróleo e gás – todos dependem da ANP para tocar seus negócios. Depender da ANP, conforme investigou ÉPOCA nos últimos dois meses, significa sofrer continuamente o assédio de tipos como Moreira e Daniel. Não são os únicos. Há muitos como eles. Mas, para a turma que transformou a ANP num cartório de extorsão, aquela não era uma segunda-feira tão ordinária. Daquela vez, dois deles foram gravados em vídeo, em pleno expediente subterrâneo. ÉPOCA obteve cópia dessa gravação, que integra uma investigação sigilosa do Ministério Público Federal e da Polícia Federal.
A pedido de ÉPOCA, a autenticidade do vídeo foi atestada pelo perito Ricardo Molina. "A gravação é autêntica e não sofreu nenhuma manipulação", disse Molina. O vídeo tem 53 minutos, três personagens e um repertório espantoso de ilegalidades, abusos e escracho com a coisa pública. São 53 minutos de corrupção exposta em seu sentido mais puro. Não há nenhum vestígio de decoro. O eventual medo de ser pilhado desaparece e cede lugar ao deboche. Não há diálogo em código ou fraseado evasivo. É tudo dito na lata. Esse descaso pode ser explicado pela impunidade com que a longeva máfia dos combustíveis atua no país. Nos últimos anos, a PF e o MP já produziram provas robustas contra expoentes desse grupo. Até o Congresso criou uma CPI para investigar os crimes – que engendrou ainda mais corrupção.
As investigações foram insuficientes para derrubar as estruturas viciadas do bilionário setor de combustíveis, que convive harmonicamente com a ilegalidade. Gasolina adulterada, sonegação de impostos, lavagem de dinheiro são práticas toleradas com frequência pela ANP, agência que deveria fiscalizar e regular esse rico mercado. Sob a condição de permanecer no anonimato por medo de sofrer retaliações, sobretudo físicas – o submundo do mercado de combustíveis convive com ameaças de morte –, empresários, lobistas, advogados, funcionários da ANP, policiais e políticos aceitaram falar a ÉPOCA. As narrativas não divergem. Todos contaram que as atividades do setor correm praticamente sem fiscalização e que, no vácuo, grupos rivais de funcionários e políticos transformaram a ANP numa central de achaque e extorsão.
A advogada Vanuza sabe bem como ela funciona. Naquele dia ordinário de maio, mal se sentou à mesa, Moreira deu início às tratativas. Tratou primeiro do caso da distribuidora Petromarte, cliente de Vanuza com "problemas" para renovar seu registro na ANP. "Conversei com o Edson (Silva, dirigente do PCdoB, ex-deputado federal e então superintendente da ANP) e ele não tinha muita noção de valores, você entende?", disse Moreira. Ele relatou a conversa que tivera com o superintendente Edson para dar uma solução ao assunto. "Você não quer conversar agora em torno de R$ 40 mil? (...) Você acha razoável?", diz Moreira no vídeo. Moreira prosseguiu, didaticamente: "Aí ele (Edson) me falou que ficaria com 25 (mil reais) e daria 15 (mil reais) para vocês (o próprio Moreira e Daniel)". Mais estarrecedor é o que se segue. Os assessores queriam também que Vanuza agisse em nome deles, numa espécie de terceirização da corrupção. Com a palavra, Moreira:
– Tá na minha mão uma, um processo (...) (empresa) tradicional (...) Chamada Rodonave, de Manaus.
Vanuza intervém:
– Mas por que quer cancelar o registro dela? Empresa antiga...
Moreira titubeia, e Vanuza pergunta:
– Mas é para arrancar dinheiro mesmo?
Moreira gagueja:
– É... É... Não sei se para arrancar dinheiro, é que não conheço o perfil das pessoas.
Ele diz que "burocratas são detestados" e que, por isso, não quer fazer contato direto com os donos da empresa. Vanuza insiste em saber a justificativa criada para ameaçar cassar o registro da empresa. Moreira nem sabe explicar. "Eu encaminhei um processo superficialmente. O assunto nunca foi explorado", diz. Dias depois, a dupla de assessores da ANP entregou a ela os documentos de registro da Rodonave. E disseram: "Vanuza, dá para ganhar dinheiro com esse processo". Moreira e Daniel apresentaram ainda uma lista com três empresas que deveriam ser objeto da investida de Vanuza: Flexpetro, Nova Gasoil e Comos Distribuidora. Todas detinham apenas registro provisório na ANP e haviam pedido o registro definitivo, que demora, em média, 180 dias. A dupla informou a Vanuza que, se as empresas quisessem obter o registro em menos tempo, deveriam pagar R$ 50 mil de propina.
"Quarenta mil reais é razoável?"
Neste trecho, os dois assessores da ANP (Antonio José Moreira e Daniel Carvalho de Lima) dizem à advogada Vanuza Sampaio que a Petromarte, cliente dela, terá de pagar R$ 40 mil de propina para resolver uma pendência na agência – com o aval do então superintendente de abastecimento da ANP, Edson Silva, dirigente do PCdoB
Moreira: Eu conversei com o Edson (superintendente da ANP) e ele não tinha muita noção de valores, você entende? Aí ele falou que era possível, que ia mexer. Mas ele é lento.
Advogada: É baiano.
Moreira: Baiano... Aí ele me falou: "Ó, você não quer conversar agora em torno de 40 mil reais? Você acha razoável? Quanto você acha razoável?". Falei "não sei, Edson, não sei quantificar, não sei valor". E foi a primeira vez que aconteceu alguma coisa. A gente pode estabelecer um bom relacionamento. Aí ele falou isso, que ficaria com 25 (mil reais) e daria 15 (mil reais) pra vocês. Esse é do Rodomarte. É... É do Petromarte.
"É para arrancar dinheiro mesmo?"
Depois de cobrar a propina, os assessores oferecem uma parceria à advogada Vanuza. Querem que ela achaque a empresa Rodonave, objeto de um processo na ANP.
Vanuza se espanta:
"Mas é para arrancar dinheiro mesmo?"
Moreira: Tá na minha mão um processo... O interesse é muito grande. (Empresa) tradicional chamada Rodonave, de Manaus.
Advogada: Mas por que querem cancelar o registro dela? (...) É para arrancar dinheiro?
Moreira: Não sei... não, eu acho que não é para arrancar dinheiro (...) Eu também não queria me indispor, chegar e ligar para a Rodonave... Então, se você tiver interesse, te dou uma orientada.
Lógica Petista
Em seguida, os três põem-se a discutir as diferenças entre os corruptos da agência. Roberto Ardenghy, antecessor de Edson Silva na Superintendência de Abastecimento, é citado como exemplo de negociante voraz. Diz o assessor Moreira: "Ele tinha uma lógica muito à petista. Era muito para ele"
Advogada: Ele (Ardenghy) sempre me travou de uma forma muito inteligente. Só hoje consigo ver o que ele ganhava de um outro lado.
Moreira: (...) Era uma lógica muito à petista. Era muito pra ele e ele avançava também para todos os lados (...) Uma vez eu trouxe um caso, ele queria cobrar muito. Falei "Ardenghy, não é o momento de cobrar muito". Ele falou "não, mas se a gente não cobrar muito (...) Se a gente cobrar pouco, você vê fantasmas todos os dias".
No vídeo, Vanuza reclama que funcionários da ANP assediavam seus clientes, transmitindo-lhes o recado de que, se não mudassem de advogado, perderiam todas as "pendências" que tivessem ou viessem a ter na agência. Esse ataque aos clientes coincidira com a mudança de nomes na ANP, com a chegada de políticos e filiados ao PCdoB. Desde o começo do governo Lula, em 2003, a ANP foi lentamente repartida entre apaniguados do PCdoB. Entraram diretores, como o atual presidente, Haroldo Lima, quadro antigo do partido, integrantes dos comitês estaduais da sigla e comunistas recém-convertidos aos encantos do capitalismo estatal. Quase todos com ficha de filiação ao PCdoB, mas, como se descobriu nos últimos anos, sem competência ou preparo técnico para gerenciar o mercado de petróleo no país. A entrega da agência ao PCdoB representou uma inflexão no submundo dos combustíveis. Com a ascensão do partido, o esquema de corrupção tornou-se orgânico e se ramificou por toda a ANP.
No caso denunciado pela advogada Vanuza, a burocracia da ANP primeiro passou a criar dificuldades para seus clientes. Para deferir pedidos simples, procrastinavam o máximo possível, exigindo documentos previamente entregues pelas empresas, caso da Lubcom. Em outros casos, como a Small Distribuidora, os funcionários da ANP deixaram de receber pedidos e, quando resolviam atender os representantes da empresa, requisitavam documentos desnecessários. Como Vanuza não cedesse às investidas, logo os assessores da ANP começaram a avançar diretamente sobre seus clientes.
Em fevereiro de 2008, sobreveio o bote. Os assessores Daniel e Moreira ligaram para Vanuza, marcaram uma reunião e explicaram que era preciso pagar por qualquer procedimento, mínimo que fosse. Disseram que estavam ali "em nome" de Edson Silva, o superintendente de Abastecimento – talvez o cargo mais poderoso da ANP, cujo ocupante define cotas de venda e compra de combustível, além de deter a prerrogativa de liberar ou cassar registros de distribuidoras e postos. Que qualificação tinha Edson para ser nomeado? Ser um "quadro histórico" do PCdoB. E só. Para se certificar de que os dois de fato falavam em nome do superintendente Edson, Vanuza pediu um encontro com a presença de todos. Dias depois, Vanuza, os dois assessores e Edson Silva tomaram um café nas cercanias da sede da ANP, no centro do Rio. Não se conversou sobre valores, mas Edson, segundo seu relato ao Ministério Público, deixou claro que os assessores detinham autorização para negociar com Vanuza. Agora, eles queriam que Vanuza lhes repassasse metade do lucro – ou dos clientes, encaminhados a um advogado que indicassem. Diante da voracidade, Vanuza entrou em pânico e procurou o MP. Orientada por agentes da PF, topou gravar uma reunião com a turma, de modo a produzir um flagrante. É por isso que, na gravação, a advogada procura estabelecer diferenças entre o grupo do PCdoB e seus antecessores.
Roberto Ardenghy, por exemplo, ocupou o cargo de superintendente de Abastecimento antes do comunista Edson Silva. Ardenghy fora indicado pelo ministro Nelson Jobim, com quem trabalhara na pasta da Justiça, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso. Segundo documentos em poder do MP e da PF, como contas bancárias e e-mails, Ardenghy usava o cargo para ganhar dinheiro, agindo sozinho. Para se precaver nas conversas com os empresários, ele criara endereços de e-mail do Yahoo, como "mazaropi" ou "daniflores". Orientava seus clientes a depositar dinheiro numa conta do Bradesco, em nome do café e bar Ninense, no centro do Rio. Hoje, Ardenghy é diretor institucional da British Gas no Brasil.
Vanuza, por dever de ofício, naturalmente também conhece Ardenghy. No vídeo, ela elogia sua capacidade de fazer negócios e afirma que ele não "agride direto" como o comunista Edson Silva. O assessor Moreira reserva boas palavras para Ardenghy: "A lógica dele (Ardenghy) era muito à petista. Era muito para ele e ele avançava também por todos os lados". Depois, Moreira ainda faz chiste com o apetite financeiro de Ardenghy. "Eu trouxe um caso para ele e ele queria cobrar muito. Eu falei: "Ardenghy, não é o momento de cobrar muito"." E cai na risada ao relatar a negativa de Ardenghy.
O rumo do papo anima Moreira. Ele relaxa, recosta-se na cadeira e se aproxima da advogada. Confidencia, com uma risada: "Aí o Ardenghy começou a cobrar serviço extra (das empresas). Mensalidade e serviço extra!". Moreira ri. Daniel ri. Todos riem. Moreira se anima, inclina-se novamente na cadeira e, ainda às gargalhadas, imita a voz de Ardenghy: "É que meu pessoal está faminto!". De tão confortável, Moreira pede a Vanuza que troque um cheque de R$ 11 mil, recebido por ele do advogado Cristiano Benzota, cujo principal cliente era Dirceu Antônio de Oliveira, conhecido como Major Dirceu e tido pelas autoridades como o maior adulterador de combustíveis do país. "Não posso depositar isso na minha conta", diz Moreira. Desde que o PCdoB entrou na ANP, as empresas do Major Dirceu, antes cassadas pela fiscalização da agência, voltaram a operar.
No meio da reunião, os três também comentam a prosperidade de Victor Martins, ex-diretor da ANP e irmão de Franklin Martins, ministro da Comunicação Social no governo Lula. Meses depois dessa conversa, descobriu-se que Victor era dono de uma consultoria que prestava serviço a municípios interessados em ganhar mais na partilha de royalties relacionados à produção de petróleo – precisamente a área da ANP que ele coordenava. "O que não pode (na ANP) é mau-caráter. Aquele Victor Martins, irmão do Franklin Martins, é desagregador, cheio de desconfiança", diz Moreira. O assessor Daniel confirma em seguida: "Ele é muito conflitante, briga muito". "A mulher dele é que está rica", afirma Vanuza.
Ela entregou o vídeo ao Ministério Público Federal no dia 16 de maio de 2008. Na ocasião, depôs sobre esses fatos ao procurador da República Carlos Aguiar. Também apresentou documentos que corroboram suas palavras, como ofícios trocados entre seu escritório e funcionários da ANP, números de telefone, endereços, cheques, e-mails, codinomes. Seu depoimento se assemelha ao dos empresários ouvidos por ÉPOCA. Esses relatos demonstram que a grande arma dos corruptos da ANP reside no poder da agência em carimbar qualquer etapa do processo de produção e distribuição de combustíveis. Cada cota, cada registro e cada fiscalização constituem uma oportunidade para negociatas. "É inescapável pagar", diz um dos maiores empresários do setor, cujo negócio depende continuamente dos caríssimos carimbos da ANP.
O ex-superintendente da ANP Roberto Ardenghy e o advogado Cristiano Benzota não responderam aos recados deixados pela reportagem de ÉPOCA. Procurados por e-mail, a assessoria da ANP, Moreira, Daniel e o assessor da presidência, Edson Silva, não haviam, até o fechamento desta edição, respondido às questões enviadas.
As primeiras agências reguladoras no país foram criadas na metade dos anos 1990, a partir da privatização dos setores de telefonia e energia. No mundo ideal, os principais objetivos das agências são: garantir o cumprimento das regras de mercado, incentivar os investimentos e fiscalizar as empresas que prestam serviços públicos para garantir serviços de qualidade aos cidadãos. Inspiradas no modelo americano, elas deveriam gozar de autonomia de decisão e financeira. No mundo real é diferente. A interferência política na condução desses órgãos e a escassez de recursos prejudicam sua atuação.
No início do governo do PT, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não gostava de ouvir falar nas agências, por considerá-las uma herança maldita do governo de Fernando Henrique Cardoso. Com o passar do tempo, o PT enxergou nas dezenas de vagas disponíveis nelas uma forma de acomodar políticos da base aliada (leia o quadro abaixo). Passou a loteá-las sem levar em conta a premissa de manter técnicos de primeira linha a sua frente. Um exemplo claro é Haroldo Lima, o presidente da ANP. Político do PCdoB, Lima cometeu gafes inesquecíveis. Uma delas foi divulgar, num seminário, informações estratégicas sobre campos de petróleo, alimentando a especulação. "Isso não é um problema meu. É um problema da Bolsa de Valores", afirmou.
Atualmente, o órgão mais representativo desse fatiamento político é a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Seu presidente, Bernardo Figueiredo, foi indicado pelo PT. O diretor Mário Rodrigues foi apadrinhado pelo deputado federal Valdemar Costa Neto (PR-SP). O diretor Ivo Borges contou com o apoio do senador Gim Argello (PTB-DF). Há, ainda, um representante do PMDB, o diretor Jorge Macedo Bastos.
Se a indicação política pode ser perniciosa, a indicação de empresas reguladas também merece ser vista com cautela. O atual presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), Maurício Ceschin, é oriundo de operadoras de planos de saúde. Sua indicação foi contestada por servidores públicos, receosos de que Ceschin pudesse favorecer ou deixar de fiscalizar devidamente as empresas reguladas. Por meio de sua assessoria de imprensa, Ceschin afirmou que há dez anos não trabalha diretamente para empresas reguladas pela ANS.
Quem ousou contestar a realidade de funcionamento das agências saiu chamuscado. Ex-presidente da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o engenheiro Jerson Kelman, um técnico, foi repreendido pelo governo quando disse que deveria haver uma redução nos valores da taxa de fiscalização, tributo cobrado do consumidor e não usado inteiramente para financiar as atividades da agência. Também desagradou ao Planalto quando, em 2008, apontou riscos reais de novo apagão elétrico, comportamento interpretado como uma insubordinação política.
Os critérios de escolha dos diretores, apesar de mudanças perceptíveis, ainda são precários. Formalmente só é exigido do candidato que tenha nível superior e reputação ilibada. Na avaliação do presidente da Associação Brasileira de Agências de Regulação, José Luiz Lins dos Santos, deveria exigir-se do candidato conhecimento notório sobre o setor regulado. "É uma forma de garantir um profissional qualificado para importante função", afirma. Há sete anos tramita na Câmara dos Deputados um projeto de lei para definir atribuições, poderes e limites das agências reguladoras. É a falta de vontade do governo em tratar o assunto como merece que gera casos escandalosos como a ANP.
FONTE: REVISTA ÉPOCA