1. A crítica gramsciana do elitismo
A crítica gramsciana do elitismo apresenta hoje algumas características de particular relevância. Em primeiro lugar, ela dirige a atenção crítica para uma nova escola (Mosca, Michels, Pareto) que só muitos anos depois encontrou no exterior reconhecimento teórico, retornando a nós na vaga da redescoberta realizada pela politologia americana. Mas, em segundo lugar, a crítica gramsciana da escola elitista se desenvolve num plano de grande originalidade porque, enquanto abandona a linha tradicional do marxismo terceiro-internacionalista ocupada em argumentar sobre tempos e modos de uma improvável “extinção do Estado”, não se reduz a uma visão tecnicista e cética [1]. Esforça-se, em vez disso, na busca de uma abertura da elite dirigente, contestando o caráter permanente da divisão entre governantes e governados, e atribui à elite renovada uma cultura de promoção geral das massas.
A linha terceiro-internacionalista partia, indiscutivelmente, de Estado e revolução, de Lenin, mas encontrou rapidamente um bloqueio nas Questões do leninismo, de Stalin. O utopismo da extinção do Estado é implicitamente posto a nu por Stalin com a afirmação de que a obra de Lenin havia ficado incompleta e que cabia aos seus seguidores... completá-la [2]. E o acabamento a que obviamente o próprio Stalin se candidatava devia consistir na paradoxal operação de reforçar o Estado socialista... a fim de extingui-lo. O Estado-máquina voltava ao centro.
O caráter paradoxal da argumentação de Stalin, na verdade, iluminava o aspecto politicamente inviável da perspectiva de Lenin, mas, sobretudo, indicava o beco sem saída em que terminava um discurso teórico sobre o Estado inteiramente indeterminado, que assumia o Estado como um ente geral-abstrato, como uma pura máquina de poder indiferente às suas relações com um tipo histórico de sociedade e até às próprias diferenciações internas. Naquele beco sem saída terminou, cedo ou tarde, toda a teoria do Estado elaborada nos anos 1920-1930 pelos marxistas da III Internacional [3]. Nele terminou o ativismo revolucionário de Lukács, que nunca conseguiu indicar uma instituição plausível para sustentar sua ditadura do proletariado e que permaneceu encerrado numa inconsistente teoria do partido-vanguarda. Mas nele também terminou a escola jurídica soviética de Pachukanis e de Stutchka, que não conseguiu jamais construir uma crítica do direito público capaz de se ombrear à crítica do direito privado elaborada pelos dois juristas soviéticos. O resultado, no quadro do marxismo da III Internacional, foi a vitória da concepção de Vichinski, que só via o Estado como aparelho-máquina, instrumento coercitivo de uma política arbitrária e repressiva. A teoria normativista de Vichinski selava o voluntarismo político e convivia com a exaltação do Estado de polícia e a negação do Estado de Direito. A normatividade do direito era reduzida ao puro comando político e separada de toda e qualquer análise da relação entre norma jurídica e atividade social, entre Estado representativo e sociedade civil.
Também fora da III Internacional, no restante movimento socialista, a teoria política decaiu, incorporando, por assim dizer, o fracasso teórico do comunismo à moda soviética. Os momentos mais interessantes foram as elaborações do austromarxismo, de Renner e Bauer, que, no entanto, no tocante à concepção do Estado, não foram além de uma redescoberta da democracia industrial e do relançamento da tradição do federalismo autonomista legado pela efêmera experiência da Comuna de Paris.
Se se quiser completar o quadro, basta dizer que, fora do movimento socialista, toda a teoria do Estado marcou passo na linha do normativismo de Hans Kelsen ou mesmo involuiu, segundo a linha do velho liberalismo, até a aceitação do fascismo com Schmitt, Romano, Rocco, Gentile. Não casualmente, Weber morreu sonhando com Bismarck.
Entre as duas guerras, Gramsci parece, precisamente, o único, dentro e fora da cultura política marxista, que trabalha com uma concepção do Estado representativo que analisa em profundidade a relação governantes/governados para nela especificar não só o rústico cimento de força-coação, mas também a ligação elástica e móvel de hegemonia-consenso e cultura. E assim Gramsci pôde se tornar, apesar das condições modestas em que teve de trabalhar, o ponto de referência de uma retomada da reflexão europeia sobre o Estado depois da II Guerra Mundial, quando o colapso dos fascismos cancelou o pessimismo político de uma teoria encerrada no estreito círculo delimitado pelo Estado do velho liberalismo e pelo Estado totalitário.
A obra de Gramsci podia oferecer pelo menos três pontos de conexão para novos desenvolvimentos teóricos: uma crítica do elitismo bem fundamentada, antes do seu relançamento por parte da politologia americana com Lasswell e Schumpeter; a abertura para um novo Estado de massas que não renegava a democracia política representativa; uma reflexão sobre o papel central do consenso e da cultura da qual partir para reconsiderar a problemática do Estado democrático moderno. Trata-se de três elementos que certamente conviviam em Gramsci com outros de diferente inspiração, mas se trata de elementos vitais que o leitor de Gramsci tem o dever de examinar com atenção, considerando, exatamente, o panorama desconfortável oferecido pela cultura teórico-política da sua época.
A “teoria marxista do Estado”
Apesar dos fracassos que recordamos em torno do problema central do Estado precisamente nos anos 1930, acentuou-se na III Internacional a campanha para exaltar a “pureza” de uma teoria marxista do Estado. O caráter inteiramente político e culturalmente improvisado de tal campanha é facilmente revelado pela incrível negligência com que foram considerados os poucos textos teóricos de Marx mais pertinentes (A questão hebraica, por exemplo), mas sobretudo até os textos de Marx que foram publicados justamente no período 1927-1941 e, especialmente, o grande texto de teoria política que é a Crítica da filosofia hegeliana do direito público. Justamente nestes textos, particularmente na Crítica, vinham à luz preciosos elementos de uma teoria da política firmemente inserida no tema da democracia política e, por isso, em conflito com aquela teoria da ditadura do proletariado que fora tomada como a única e principal proposta de Marx [4]. No entanto, deveria passar meio século até que, no interior da prática política do socialismo, se descobrisse, por fim, que precisamente o “jovem Marx” é que fornecia instrumentos essenciais para a compreensão do Estado Democrático moderno.
Deve-se acrescentar, para concluir este ponto, que a campanha de credenciamento de uma teoria marxista do Estado pronta e acabada (e sem referência às obras de Marx mais pertinentes) foi prontamento acolhida, no plano científico, não só pelos teóricos mais dogmáticos dos movimentos marxistas, mas, mirabile dictu, pelos próprios adversários do marxismo [5]. Uns e outros, em resumo, continuaram a trabalhar com uma “teoria marxista do Estado” que, no melhor dos casos, remontava em realidade a Stalin e a Lenin, e prescindia das importantes obras póstumas de Marx. Foi outro documento da confusão que, entre política e ciência da política, se começava ou se continuava a fazer um pouco por toda parte. Também neste aspecto, destaca-se ainda mais a cautela intelectual de Gramsci e sua originalidade.
3. Schumpeter
Schumpeter, em 1942, registrou de certo modo este estado de coisas, distinguindo um Marx profeta de um Marx sociólogo, e entreviu a causa profunda de uma certa interpretação de Marx observando que “os comentaristas ou os críticos, que partiam do lado da filosofia [...], não conheciam bastante a fundo as ciências sociais”, e que “a forma mentis própria dos construtores de sistemas especulativos tornava-os hostis a toda e qualquer interpretação que não decorresse de algum princípio filosófico” [6]. Comentaristas e críticos, pois, viram “a filosofia na maior parte das afirmações de fato” de Marx, especialmente quando Marx, ao contrário, tentava substituir a teoria especulativa do Estado por uma análise sociológica antiespeculativa.
Mas esta intuição de Schumpeter não foi muito adiante e não chegou sequer a considerar seriamente as obras póstumas de Marx já publicadas em 1942. Portanto, ele exerceu sua candente crítica sobre o cadáver da “teoria marxista do Estado” que os anos 1930 lhe entregaram sob a inspiração de Stalin. Ainda por cima, Schumpeter também atacava a “doutrina clássica da democracia” com os três argumentos da inexistência de um bem comum, da impossibilidade de discerni-lo por parte de todos e da consequente impossibilidade de uma vontade geral do povo. De tais argumentos Schumpeter deduzia que a democracia era só “o instrumento institucional para chegar a decisões políticas com base no qual determinados indivíduos obtêm o poder de decidir através de uma competição que tem por objeto o voto popular” [7]. Na teoria política, isso significava o colapso da cultura da “velha Europa”, já preconizado por Schmitt.
Como o próprio Schumpeter afirmava, na teoria da democracia eram invertidos os papéis: tornava-se “secundária a decisão por obra do eleitorado em relação à eleição dos homens que deverão decidir” [8]. O que Schumpeter não dizia era que, na realidade, ele escolhia assim uma das duas linhas teóricas que precisamente a teoria clássica distinguira: antes a linha da eleição como designação do que a da eleição como delegação, antes a da pura designação dos governados do que a da indicação de um mandato para governar. E sequer dizia que na teoria clássica, em realidade, as duas linhas se entrelaçavam estreitamente porque os clássicos não se reduziram, como pensava Schumpeter, ao utilitarismo simplista da identificação do bem comum. De todo modo, Schumpeter chegava a uma decapitação da teoria da democracia que se alinhava às outras duas já efetivadas pelo tecnicismo de Kelsen e pelo decisionismo de Schmitt. De fato, ele, recusando o mecanicismo utilitarista a que reduzira a doutrina clássica, excluía da teoria da democracia o grande problema da transformação dos interesses individuais em projeto geral. Tal problema continha um entrelaçamento indissolúvel de economia, política, direito, e fixava o que chamaria de cultura da democracia. Era o problema de Rousseau, que não conseguia superar o hiato entre vontade de todos e vontade geral, mas também o problema de Kant, que só podia teorizar um Estado de razão suprimindo os interesses individuais. Era o problema da escola liberal, que construía o Estado de Direito restringindo o eleitorado aos proprietários. E era o problema dos socialistas, que, diante deste panorama, chegavam a pensar que numa sociedade baseada na propriedade privada e nos proprietários privados jamais seria possível o sufrágio universal e, portanto, uma lei verdadeiramente igual para todos. Não é um acaso que a primeira proposta operacional de um sufrágio verdadeiramente universal apareça nos registros da Comuna de Paris.
Sem dizê-lo, Schumpeter redescobre a escola elitista italiana e parte do ceticismo desta para delinear uma democracia reduzida a técnica de designação do pessoal político profissional. Prepara, assim, os instrumentos teóricos essenciais para a nascente politologia americana que, depois do segundo conflito mundial, desembarcará na Europa para recordar aos italianos Mosca, Michels e Pareto, já criticados por Antonio Gramsci.
4. Democracia e emancipação
Dissemos que Gramsci não desenvolve, de modo algum, sua crítica do elitismo no rastro da tradicional crítica “marxista” da representação e do Estado. Interessa-lhe, antes, compreender e explicar como se articula a hegemonia dos governantes e como se perpetua a subalternidade dos governados, com específica referência a uma sociedade bastante diferente da sociedade feudal com classes fechadas. Escreve Gramsci: “As classes dominantes precedentes eram essencialmente conservadoras, no sentido de que não tendiam a assimilar organicamente as outras classes, ou seja, a ampliar ‘técnica’ e ideologicamente sua esfera de classe: a concepção de casta fechada. A classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a a seu nível cultural e econômico: toda a função do Estado é transformada: o Estado torna-se ‘educador’, etc.” [9].
Assim, na análise da sociedade moderna, a atenção se desloca precisamente para a mobilidade das classes que se segue à queda dos vetos políticos e das discriminações jurídicas e, por conseguinte, para a nova função assumida pelo Estado e, com ele, pela política e pelo direito. O ponto culminante deste processo é indicado pela difusão do sufrágio universal: do sufrágio verdadeiramente universal (não do sufrágio universal masculino). De fato, é o sufrágio universal que sanciona o igualamento total dos homens e das mulheres no nível mais elevado: o da decisão política. Mas, para ver o alcance deste processo, deve-se ver a centralidade da decisão política e também dos direitos políticos e civis na disputa política. Sem ver esta centralidade, ficamos aturdidos, num extremo, pelo tecnicismo da indicação dos governantes, e, num outro extremo, por aquilo que Gramsci chama, falando precisamente da avaliação do sufrágio universal por parte de Jacques Bainville, de “um sociologismo ingênuo e abstratamente tolo” [10].
Deve-se reconhecer que ver a centralidade do sufrágio universal na teoria da democracia não podia ser fácil quando ele ainda só fora instituído em poucos Estados e há pouco tempo. Mas, então, deve ser certamente ainda mais valorizada a avaliação positiva que Gramsci faz do sufrágio universal num cárcere da Itália fascista. Contra o argumento da quantificação da democracia baseada no sufrágio universal, por exemplo, Gramsci objeta que “não é verdade, de modo algum, que o número seja a ‘lei suprema’ nem que o peso da opinião de cada eleitor seja ‘exatamente’ igual. Os números, mesmo neste caso, são um simples valor instrumental, que dão uma medida e uma relação, e nada mais” [11]. Mas Gramsci não conclui daí, de modo algum, como tantos marxistas e revolucionários, que o voto seja só um meio para contar. Continua ele: “E, de resto, o que é que se mede? Mede-se exatamente a eficácia e a capacidade de expansão e de persuasão das opiniões de poucos, das minorias ativas, das elites, das vanguardas, etc., etc., isto é, sua racionalidade ou historicidade ou funcionalidade concreta. Isto quer dizer que não é verdade que o peso das opiniões de cada um seja ‘exatamente’ igual. As ideias e as opiniões não ‘nascem’ espontaneamente no cérebro de cada indivíduo: tiveram um centro de formação, de irradiação, de difusão, de persuasão, houve um grupo de homens ou até mesmo uma individualidade que as elaborou e apresentou na forma política de atualidade. O número dos ‘votos’ é a manifestação terminal de um longo processo, no qual a maior influência pertence exatamente aos que ‘dedicam ao Estado e à Nação suas melhores forças’ (quando são tais)” [12].
Assim, Gramsci vê o sufrágio universal como um instituto igualizador que destrói o privilégio racionalista do homem culto e proprietário e, naturalmente, quase sempre branco e cristão, mas que nem por isso cancela o elemento qualitativo, cultural, racional da política. Ao contrário, precisamente a difusão da disputa política moderna para novos estratos, para toda a massa, permite ver que a reconhecida centralidade do interesse individual em que se baseia a atribuição do voto a todo cidadão não diminui, mas aumenta, a incidência da cultura no embate político. Por isso, entre outras coisas, torna-se tão intensa a atenção de Gramsci ao papel dos intelectuais, à escola, à cultura de massas, à função educadora dos dirigentes, à promoção cultural dos trabalhadores. Por isso, apesar da derrota da democracia italiana, apesar da vitória do fascismo, Gramsci não segue a corrente que arrasta muitos revolucionários a depreciar e, seja como for, a desvalorizar a democracia política, o sistema parlamentar, o sufrágio universal. Ao fazer isso, e ainda que sem plena consciência teórica, Gramsci toma um caminho diferente inclusive em relação a Schumpeter e ao neoelitismo que amadurece no Ocidente. Neste caminho, ele vê a democracia como algo bem diferente do que a eterna subjugação dos governados avalizada pelos instrumentos de poder (Lenin) ou a pura e simples designação dos governantes (Schumpeter): descobre, nada menos, que “a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados (no sentido de governo com o consentimento dos governados), assegurando a cada governado o aprendizado gratuito das capacidades e da preparação técnica geral necessárias a essa finalidade” [13]. Gramsci está aqui falando da escola na democracia e destaca os valores de emancipação inseridos nos institutos democráticos. Não parece excessivo dizer que, com os instrumentos oferecidos pela sua época, está explorando caminhos nos quais hoje todos avançamos.
5. Mudanças categoriais
Reintroduzindo a temática da cultura na política, Gramsci empreende uma espécie de transformação geral dos problemas políticos herdados da tradição marxista. Em primeiro lugar, elimina a contraposição entre democracia política e socialismo baseada na rígida contraposição de duas “ditaduras de classe”. Em segundo lugar, corrige a concepção elementar e dogmática do Estado como pura máquina, introduzindo uma valorização do elemento normativo-cultural. Em terceiro lugar, reflete de modo novo sobre a velha problemática do “fim do Estado”, saindo do genérico utopismo para a concreta avaliação histórica da relação governantes-governados. Se a democracia política tende a fazer coincidir governantes e governados, não será este o terreno novo no qual, de forma nova e refinada, se repropõe o antigo problema do “deperecimento” e da “extinção” da coação estatal? Se o Estado não é pura coação, não será possível, talvez, transformá-lo segundo um projeto consensual de cultura? Por fim, Gramsci transforma os velhos ideais utópicos da tradição socialista em modelos elásticos (históricos), substituindo as dogmáticas “leis” canônicas do doutrinarismo socialista herdado em tendências assintóticas (diria Kant) ou modelos orientadores a serem verificados historicamente. E assim abre a perspectiva de uma profunda renovação do socialismo: de “doutrina” que deve ser “aplicada”, volta a ser o que era na origem, um movimento de crítica do presente, que constrói perspectivas teóricas baseadas na análise social e no diálogo rigoroso com todos os argumentos científicos.
6. A “catarse política”
Da redução da democracia a mera técnica de designação dos governantes operada por Schumpeter derivou um tecnicismo mais perigoso do que aquele jurídico-normativo de Kelsen. De fato, a democracia se tornava uma competição mercantil entre os membros de uma elite profissional separada e substancialmente autárquica pela qual o eleitorado só podia se interessar na medida em que, tal como qualquer outra instituição democrática, as próprias eleições se tornassem a arena de operações de troca medidas por interesses particulares. Surpreendentemente, a crítica schumpeteriana do economicismo do velho marxismo desemboca no relançamento de uma “política dos interesses” que ainda hoje domina a politologia ocidental. Não somente se teoriza que o mercado é o suporte fundamental da democracia, mas até que a própria democracia é só mercado político.
Da matriz oitocentista derivaram, na teoria política, justapondo-se e contrapondo-se, um romantismo político que culmina na política “paixão” e um positivismo político que culmina na “razão de Estado”. Parece que esta bifurcação ressurge constantemente em virtude do fato de que falta uma tentativa consistente de mediar as duas opostas instâncias da política como ideal e da política como força. Dá-se o caso de que Gramsci talvez seja o primeiro a realizar tal tentativa, criticando seja a política-paixão de Croce, seja a política-força dos elitistas.
Vindo da tradição marxista, Gramsci estava saturado de cultura “economicista”. Ele buscava verificar sua consistência e superar seus limites. É este o sentido profundo da sua crítica ao corporativismo, assim como da importância atribuída à cultura e à direção intelectual na política. Neste caminho Gramsci sugere a catarse da política socialista, isto é, sua passagem do economicismo à plena compreensão das “superestruturas”. Neste caminho evita toda tentação de redução tecnicista do problema político e recupera com a cultura toda a “zona superior” da política, tanto o momento normativo do direito quanto o ideal da ética. Em comparação com os desdobramentos teóricos que a política apresenta na nossa época, Gramsci, portanto, oferece uma grande ajuda para uma refundação laica e, no entanto, antipragmática da política. Esta, ao contrário, parece escapar quer ao idealista Croce, para o qual a política-paixão permanece “guiada pelo sentido do útil”, quer ao empirista Schumpeter, que concebe a política como mercado. Croce busca a catarse fora da política, no retorno agostiniano-especulativo ao homem interior; Schumpeter sequer a busca.
Este caminho da catarse política ainda hoje permanece a via mestra do Ocidente, isto é, de uma política que não queira renunciar à cultura e, portanto, à produção de uma moderna civitas, de uma democracia moderna ainda capaz de nos fascinar e, também, de nos ser útil. Uma tal democracia consiste em regras do jogo, mas não se limita a um vazio jogo das regras, e consiste em valores não metafísicos, identificados com as instituições. Uma tal democracia, portanto, é feita de instituições políticas que também produzem e reproduzem, além de regras metodológicas, valores intelectuais e morais.
Schumpeter disse que a democracia é feita de instituições, não de valores. Gramsci nos ajuda a reagir a esta cética conclusão mascarada de eficientismo tecnicista e a readquirir uma confiança teórica na democracia moderna como regime político orientado não só por regras certas, mas também por fins certos de promoção do homem; como regime político, portanto, no qual se pode realizar uma reforma intelectual e moral: a revolução no Ocidente.
7. Conclusão
Avaliar a atualidade de um pensador político é um problema bastante complexo que não pode consistir num mecânico registro “do que está vivo e do que está morto” à luz dos novos dados da história. Este registro talvez possa bastar para os níveis menos expostos às grandes mudanças sociopolíticas — a lógica ou a estética — e, por isso, mais “duráveis”. Mas por certo é inteiramente insuficiente e até enganoso para um pensador político, que deve julgar instituições e relações, e não somente “pensar”. Aqui, a atualidade só pode ser buscada com uma operação que relacione, em primeiro lugar, o pensador à política do seu tempo e, depois, reflita tanto sobre sua capacidade de entendê-lo, indo além do passado, quanto sobre a diversidade do nosso tempo e a ordem diferente de categorias que ela determina. Só com uma complexa operação dete tipo se consegue compreender — suponhamos — a grandeza da Doutrina do direito de Kant, que, no distante ano de 1797, desenha o esqueleto moderno do Estado de direito, observando-o de uma cidadezinha da velha Prússia. Naturalmente, os mil detalhes “prussianos” do quadro são quase todos fora de foco, imprestáveis, até ridículos. Mas o essencial lá está e é o que muda toda a velha ordem das categorias (soberania, divisão dos poderes, primado da lei, etc.). Quem, hoje, avaliar Kant segundo os detalhes “prussianos” e, portanto, de acordo com a ausência de indicações utilizáveis a curto prazo, não erraria só o juízo sobre Kant, mas também sobre o tempo dele e o nosso.
Gramsci se presta bem, pois, para demonstrar que a releitura de um pensador político exige um esforço complexo de criatividade científica e, em primeiro lugar, o abandono de todo estilo mimético de pensamento. Ninguém pode sensatamente acreditar que bastará “aplicar” Gramsci para compreender nosso tempo sem ter previamente comparado as variantes profundas que se verificaram nas instituições e nas relações políticas. No entanto, pode ser bastante útil ver como Gramsci escapa da tradição que tem recebe e sugere novos esquemas de compreensão da realidade política. Embora admitindo, ele mesmo, ter tomado emprestado de Lenin o conceito de hegemonia, Gramsci — sabemos — insere-o no quadro de relações políticas bastante diversas e enriquece-o até contrapor a hegemonia (consenso) à força na dinâmica da luta política. E isso, ressalte-se, cerca de dez anos depois de Estado e revolução e da Revolução de Outubro, sob o peso da derrota infligida pelo fascismo ao seu partido. Naqueles doze anos, liberais como Croce e Gentile hesitaram ou renderam-se ao “fascínio” da força vencedora, e liberais como Churchill ainda viam “com compreensão” o fascismo italiano. Lukács navegava no tempestuoso mar da sua mitologia ativista rumo ao stalinismo. Weber morrera sonhando com Bismarck, e Schmitt ansiava por um Protetor, que destruiria a Constituição democrática. Em vez disso, os melhores homens do liberalismo — Gobetti e os irmãos Rosselli — batiam-se para que não se voltasse à “velha” democracia liberal e, por isso, encontravam-se com Gramsci, que indicava novos caminhos na relação entre elite e massa.
Por certo, seu partido-príncipe hoje nos parece — e é — demasiadamente carregado de passado “leninista” para guiar o moderno pluralismo dos partidos, mas, vindo daquele passado, Gramsci chegava a definir o partido como “um filtro” e escapava do dogmático dilema de saber se o partido era parte ou vanguarda da classe. Por alguns aspectos, Gramsci aludia a um “partido novo”, que rompia a tradição não só de Lenin mas também de Michels e dos elitistas italianos. Por certo, muitos detalhes estavam errados (eram ditados pela Italiazinha provinciana), mas Gramsci não terá visto o essencial que estava por vir? Ousaria dizer que houve uma singular comprovação: a do Comitê de Libertação Nacional, o partido-príncipe da Libertação que arrastou um povo até a refundação da democracia.
Não faltaram outras comprovações, se soubermos vê-las. Não terá havido na Itália uma Assembleia Constituinte, como Gramsci de algum modo vaticinava? E se não houve, por certo, o Estado operário e camponês preconizado pelo Gramsci sovietista, não terá havido uma inédita República democrática “baseada no trabalho” e assentada em grandes partidos populares e fortes sindicatos operários?
O quesito mais importante que apresentaria para explicar a atualidade de Gramsci é este: de onde Gramsci extraiu sua capacidade de sair da tradição? Responderia que a extraiu do seu vigoroso esforço de comparação entre o pensamento político que havia estudado (Lenin, Sorel, Croce, os elitistas) e as diferenças do seu tempo. Conseguiu, assim, escapar seja do doutrinarismo do repetidor (a que gostaria de reduzi-lo quem ainda busca “o leninismo de Gramsci”), seja do ecletismo do empírico que persegue os fatos, perdendo os critérios. Mas, para aquela comparação, teve de criticar, por um lado, alguns dos seus doutrinarismos passados, e, por outro, sobretudo, refazer profundamente a análise do objeto. E, como o objeto era a Itália, compreende-se bem que, mesmo entre tantas “divagações” do filólogo e do erudito, houve um fio condutor que o levou, através de notas e comentários, rumo à compreensão da história italiana como o verdadeiro pressuposto da sua própria derrota. E, por isso, rumo à reestruturação de uma teoria política que não pretendia “aplicar” doutrinas, mas extrair do estudo da sociedade italiana indicações estratégicas.
Como sempre, ao avaliar a atualidade de Gramsci — e de qualquer outro pensador político —, será conveniente vencer a preguiça doutrinária sugerida pela ênfase dos seguidores e dos adversários políticos. Será melhor tentar ler, através dos Cadernos do cárcere, os problemas e as diferenças da nossa nova história de hoje. Para alterar tempestivamente a ordem das categorias.
*Umberto Cerroni (1926-2007), teórico marxista do direito, escreveu, entre muitos títulos, Regole e valori nella democrazia. Stato di diritto, Stato sociale, Stato di cultura (Roma: Riuniti, 1989), em que foi publicado originalmente este ensaio.
Notas
[1] Esclareço que a improbabilidade da “extinção do Estado” não se refere à perspectiva teórica, mas sim àquela prática, no sentido de que, ainda que se pudesse considerar fundamentada a perspectiva da “extinção do Estado”, ela se mostra absolutamente inviável para uma política de breve termo. De resto, toda a tradição teórica marxista, Lenin incluído, sublinhou abundantemente quais deveriam ser os “pressupostos econômicos” da extinção do Estado. Este juízo de inviabilidade fica reforçado, se for referido às condições da Rússia de 1917. A propósito de toda esta problemática, remeto a Teoria politica e socialismo, Roma, 1973.
[2] A obra de Lenin ficou efetivamente incompleta à véspera da Revolução de Outubro, mas isso certamente não podia ser um argumento forte. Foi assumido de modo oportunista por Stalin para avocar a si a elaboração da teoria política. O trecho staliniano está em Questioni del leninismo, Roma, 1952, p. 722.
[3] Sobre o pensamento político-jurídico soviético, remeto a Teorie sovietiche del diritto, Milão, 1964, e também a Il pensiero giuridico sovietico, Roma, 1969. Sobre outros desdobramentos, cf. Teoria politica e socialismo, cit., além de Politica, Roma, 1987.
[4] Reuni os principais textos de Marx referentes a uma possível conexão entre democracia e socialismo no pequeno volume K. Marx, Critica al programma di Gotha e testi sulla transizione democratica al socialismo, Roma, 1976. Trata-se de textos, deve-se notar, que atravessam toda a vida intelectual de Marx. Eles estão em contraste, naturalmente, com outros textos imediatamente ligados à prática política de uma época que ainda não conhecia o sufrágio universal. Daí a indiscutível polivalência da obra de Marx, mas daí também — se soubermos apreender — sua riqueza.
[5] Portanto, é efetivamente difícil encontrar pontos de referência consistentes para uma reconstrução do pensamento político de Marx subtraída à hipoteca da vulgata nascida da experiência soviética. Pode-se apontar como parcial exceção alguns aspectos de trabalhos interpretativos de G. della Volpe e de J. O’Malley. No mínimo, ambos têm pelo menos o mérito raríssimo de ter chamado a atenção para a fundamental Crítica da filosofia hegeliana do direito público, liquidada por seguidores e críticos de Marx como texto “de juventude”. Sobre todo o problema, remeto à introdução para K. Marx, Critica della filosofia hegeliana del diritto pubblico, Roma, 1983.
[6] J.A. Schumpeter, Capitalismo, Socialismo, Democrazia, Milão, 1964, p. 10.
[7] J.A. Schumpeter, op. cit., p. 257.
[8] J.A. Schumpeter, ib.
[9] A. Gramsci, Quaderni del carcere, Turim, 1975, p. 1647.
[10] A. Gramsci, ib.
[11] A. Gramsci, op. cit., p. 1624.
[12] A. Gramsci, ib.
[13] A. Gramsci, op. cit., p. 1547.
Tradução: A. Veiga Fialho
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.