• No bom sentido, Dilma está de novo refém dos militares
- Valor Econômico
Na II Bienal Brasil do Livro e da Leitura, realizada em abril, em Brasília, surgiu de onde menos se esperava um comentário que remeteu o atento e lotado auditório ao que poderia ser a abertura de uma porta larga a um novo debate sobre velho tema da política brasileira: o papel das Forças Armadas.
Conferencista principal do seminário "O golpe, a ditadura e o Brasil: 50 anos", com a credencial de ter participado da luta armada contra a ditadura militar e das ações mais espetaculares que entraram para a história brasileira, como o sequestro do embaixador americano no Brasil, Charles Burke Elbrick, o jornalista Franklin Martins, ex-ministro da Comunicação do governo Lula, hoje integrante da cúpula do comitê de reeleição da presidente Dilma, fez uma proposta.
Disse, aos que lhe perguntaram, que não haveria cenário para um novo golpe, no Brasil de hoje, e defendeu que as Forças Armadas assumissem uma nova história. "As Forças Armadas estão dentro do ambiente democrático mas deveriam ter um papel maior ainda que isso", disse. O jornalista citou necessidades da defesa do Estado que poderiam ser atendidas atribuindo-se novas funções à corporação militar, como um papel mais central na defesa dos interesses do país em questões internacionais: "Quem tem jazidas da magnitude do pré-sal, acaba sendo vitima de ações de fora", exemplificou.
Para isso, teriam que acordar. "As Forças Armadas precisam sair do acostamento, onde estão desde 1985. Elas saíram do poder e foram para o acostamento. Não voltaram a ser o que deviam ser", afirmou. Franklin completou, sob aplausos: "Nossos heróis militares não podem continuar a ser Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, João Figueiredo, nossos heróis têm que ser como o Marechal Rondon, como o Marechal Lott, como o general Machado Lopes, que entenderam o seu papel e honraram a Constituição, o país e a democracia".
O jornalista passou a citar exemplos de como, nesse raciocínio, os militares poderiam voltar à estrada principal, inclusive começando por fazer um pedido formal de desculpas ao país. Desdobramentos da tese, porém, que não vêm agora ao caso, ficam à agenda de debate no foro adequado do governo.
A evocação do que ocorreu há apenas um mês emerge, agora, no momento em que se constata que a preocupação com o papel das Forças Armadas está tomando lugar na atenção do governo, seus órgãos de assessoria jurídica e alguns tribunais mais altos do Poder Judiciário.
Discussões que têm como eixo o fato, real, de que a presidente Dilma está dependente das Forças Armadas, cujo novo papel, especialmente na defesa do Estado, deveria ser mais bem definido para aproveitar a ocasião. E qual ocasião seria esta? A atuação das polícias.
Meio a um mês de tensão, com realização da Copa do Mundo, presença de pelo menos 20 chefes de Estado e de governo, manifestações mais e menos agressivas espalhadas pelo Brasil, as polícias se permitem fazer greve. Greves que, na discussão dos órgãos jurídicos do governo, são consideradas meros instrumentos de política corporativa. Houve greve da polícia na Bahia e em Pernambuco, a Polícia Federal ameaça parar, e promovem-se operações-padrão que o governo considera greves.
"Com essa instabilidade na ação da polícia, o governo passa a depender mais das Forças Armadas, que já teriam que ter um novo papel muito bem concebido", avalia um interlocutor da presidente.
Os militares não estão 100% satisfeitos com o governo. Há reações, especialmente a algumas decisões da Comissão da Verdade e ao debate sobre revisão da Lei de Anistia. Este último, por sinal, formalizado pelo PT no programa de governo sugerido à presidente Dilma para o segundo mandato, do qual a presidente guarda distanciamento, ainda, e que pode por em risco a nova inserção das forças armadas que se pretende promover.
E há registro de tensões com o fato de que promotores estariam usando depoimentos de militares à Comissão da Verdade para entrar com novas ações pedindo a responsabilização pelos crimes de lesa-humanidade, como ocorreu agora no caso Rubens Paiva.
Nem por isso, porém, estão paralisando suas atividades ou ameaçando a tudo e a todos, embora não se possa deixar de perceber que há preocupação com a nova análise que, por recurso da OAB, o STF terá que fazer sobre a Lei da Anistia.
Exatamente por causa do comportamento das corporações policiais, reconhece o governo que o momento é de dependência das Forças Armadas.
A presidente Dilma, dizem seus interlocutores, tem profundo respeito por elas, especialmente por uma de suas características, o profissionalismo, a disciplina. Exatamente o que não encontra nas polícias. Ao governo causa perplexidade o grau de "politização corporativa" nas polícias militar, civil ou federal, na definição de uma autoridade da área jurídica.
Já foram anotadas num caderninho de impropriedades algumas declarações de líderes grevistas, do tipo "as operações da Polícia Federal são respostas da corporação à falta de atendimento a pleitos". Para o governo, isso equivale a dar uma conotação estritamente política às operações, como se elas não fossem ocorrer com equilíbrio, independentemente da resposta às reivindicações do movimento. "A aproximação com os militares pode ser uma reação a esse tipo de politização na questão da greve", afirma um especialista envolvido nas discussões.
Decisões do Judiciário, ao declarar sigilosas determinadas iniciativas da Polícia Federal, tentaram conter também o espetáculo que, segundo avaliam essas fontes, serviam para instrumentalizar politicamente os grevistas.
"A corporação da polícia se sente credora do Estado, e vê o Estado seu devedor". Para o governo, as Forças Armadas têm postura absolutamente diversa. "A presidente Dilma avalia que as Forças Armadas têm mais disciplina, mais profissionalismo, daí ter desenvolvido um respeito muito grande à instituição", resume a autoridade.
Essas reflexões, surgidas no debate ainda interno, poderão ou não se transformar, se Dilma for reeleita, em definições políticas e medidas concretas, para dar maior nitidez à nova inserção das Forças Armadas. No momento, registra-se que a presidente está apenas refém delas, no bom sentido.