domingo, 26 de dezembro de 2010

Reflexão do dia – Marco Aurélio Nogueira

O momento também ajuda a que se perceba quem coordenará as ações dos novos governos e decidirá sobre a vida e a morte, isto é, terá a ultima palavra. No plano federal, a pergunta reverberou durante todo o mês: dado o protagonismo e o brilho acumulados por Lula, que papel exercerá ele no governo de Dilma Rousseff e, portanto, nas definições que precederão seu início efetivo? Sairá de cena ou permanecerá nos bastidores, influenciando, pressionando, "aconselhando"? Terá cargo compatível com sua estatura real ou presumida? Conseguirá se manter em evidência, de modo a se valorizar como candidato para 2014? Agirá como "reserva moral" da Nação ou como "partidário", como homem público ou como cidadão comum?

A resposta a essas questões respinga evidentemente no que se imagina estar reservado à presidente Dilma. Terá ela força suficiente para se descolar de seu antecessor e provar a todos que uma criatura pode muito bem ter vida autônoma perante seu criador? Imprimirá marca pessoal a seu governo, seja em termos de estilo e linguagem, seja em termos de políticas e escolhas?


(Marco Aurélio Nogueira, in: Seguir em frente, O Estado de S. Paulo, 25/12/2010)

Além das guerras de cultura :: Luiz Sérgio Henriques

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Sociedades modernas, por mais laicas e secularizadas que sejam, costumam ser periodicamente sacudidas por guerras culturais mais ou menos virulentas, que desafiam o princípio de tolerância e a neutralidade do Estado democrático diante da pluralidade de crenças e religiões ou mesmo da parcela dos cidadãos que, de diferentes modos, são agnósticos ou não religiosos.

As recentes eleições americanas e brasileiras, que transcorreram segundo dinâmicas políticas e econômicas muito diferentes e dificilmente podem ser comparadas, tiveram em comum, no entanto, surtos ou manifestações típicas daquele tipo de guerra, em que se confrontam valores absolutos e inconciliáveis. O repertório de temas, como é evidente, pode variar em cada contexto, mas inevitavelmente abrange questões como o aborto, o divórcio, a pesquisa com células-tronco, a união entre pessoas do mesmo sexo, bem como, mais amplamente, o lugar das religiões na comunidade política.

Observadores qualificados sustentam que, tanto no caso americano quanto no nosso próprio caso, esses temas tiveram, tudo somado, um papel subalterno e não definiram resultados num sentido ou no outro.

A fragorosa derrota dos democratas nas eleições americanas teve, por certo, o componente extremado da tradicional Christian right e do movimento Tea Party, com sua difusa capilaridade, seu ativismo e suas conexões com uma certa interpretação providencial da experiência histórica dos Estados Unidos. E, pelo que se conhece das suas expressões políticas e intelectuais mais em evidência, a esse ativismo do Tea Party não é estranha uma instrumentalização muitas vezes grosseira do arsenal da guerra entre culturas, como quando atribui ao presidente Barack Obama uma filiação religiosa alheia aos valores tradicionais ou uma orientação coletivista contrária ao individualismo americano. Em princípio, Obama poderia até ser muçulmano - mas de fato não o é, assim como também não é, inserido que está na respeitada tradição "liberal" rooseveltiana, nem socialista nem comunista.

A derrota do Partido Democrata, segundo a maioria dos analistas, teve mais que ver com o relativo fracasso da estratégia econômica de Obama nestes tempos de Grande Recessão. Se confiarmos na janela aberta sobre os Estados Unidos pelos artigos de Paul Krugman, a qualidade e o alcance da intervenção pública em apoio à demanda declinante deixam muito a desejar. Suficientes para impedir a quebra de grandes bancos e outras empresas, evitaram o pior, mas sem dar ao americano comum alguma confiança em relação ao emprego e ao resgate da hipoteca da casa própria.

O voto americano foi, portanto, majoritariamente pragmático e movido por motivações econômicas. Por certo, nele também influíram os valores tradicionais da direita e da extrema-direita, mas não por si sós. A grande agressividade desses setores contra Obama terá sido um elemento dissuasor contra medidas "rooseveltianas" no terreno da economia por parte da presidência, mas seu dano maior, se levarmos em conta o que diz Krugman, é o papel desempenhado no declínio da cena pública americana, como motor mais aguerrido de uma oposição republicana que beira a irracionalidade.

A situação brasileira, na passagem do primeiro turno para o segundo turno, também viu a movimentação de temas e atores religiosos, muito particularmente na questão do aborto. E, a exemplo do caso americano, essa movimentação não parece ter sido em momento algum decisiva eleitoralmente, muito embora os então principais candidatos, em maior ou menor grau, tenham ambos se comportado de modo subalterno diante do argumento religioso tradicional, que, de resto, se distancia das soluções encontradas para a questão dos direitos reprodutivos na esmagadora maioria das democracias avançadas.

Aqui tem pouco interesse a discussão em si do aborto. No entanto, como a ninguém é dado ignorar, esse é um drama vivido solitariamente pelas mulheres, especialmente as pobres, com imensas repercussões no terreno da saúde pública, embora, pela situação de clandestinidade, não se consiga quantificá-lo nem muito menos, a partir daí, lutar tenazmente para diminuir sua incidência como desesperado recurso contraceptivo. Também não está em questão a legitimidade da expressão dos pontos de vista religiosos tradicionais, em ocasiões eleitorais ou de qualquer outro tipo. O Estado constitucional, por definição, é o espaço para a negociação possível de perspectivas conflitantes, ainda quando estas se apresentem como portadoras de exigências inegociáveis e os acordos só possam ser precários e experimentais.

O que tem maior interesse é contribuir para apetrechar as forças políticas e culturais que se voltam para a modernização dos costumes e da vida civil, tornando-as mais capazes de escapar das armadilhas da guerra entre culturas, esta mesma que acaba de se insinuar na cena brasileira e por certo reaparecerá mais adiante. Paradoxalmente, o caminho mais promissor parece consistir em revalorizar o papel das próprias religiões e os elementos insubstituíveis que trazem para a convivência de todos, ao escutarem de modo muito particular os humilhados e ofendidos, os que foram postos à margem das promessas do moderno.

Sem que ninguém abra mão das próprias convicções, como nos propõe o último Habermas, cidadãos religiosos e não religiosos podem majoritariamente adotar uma estratégia autorreflexiva que ilumine especialmente os limites das respectivas tradições. E, sem deixar de ser laico e secularizado - um traço que cabe a todos preservar -, o Estado constitucional pode ser, entre nós, a moldura de um multifacetado debate público que nos poupe dos argumentos muitas vezes pouco razoáveis que têm paralisado e dividido outras sociedades em campos irredutíveis.

Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci em português site:www.gramsci.org

Nada será como antes:: Marco Aurélio Nogueira

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS

Lula não inventou a roda nem começou do zero, mas mudou o País. Quem há de se vangloriar ou se lamentar disso?

Nunca antes na história deste País houve um presidente como Luiz Inácio Lula da Silva. Encerrada sua dupla presidência, nada será igual. O País que ele nos deixa é outro, para o bem e para o mal. Nem melhor, nem pior, simplesmente diferente. Lula fez e desfez, aconteceu, circulou e apareceu, mudou o discurso do poder e o modo como a opinião pública se relaciona com seus governantes, pacificou e articulou os mais distintos interesses sociais, a ponto de sair de cena como uma espécie inusitada de glória nacional. Deixou marca tão forte na política, na administração pública e no imaginário popular que será preciso um tempo para assimilarmos sua ausência.

Lula não teve a grandeza fundacional e paradigmática de um Vargas, verdadeiro artífice do Brasil moderno, que ele forjou mediante um padrão de intervenção estatal e um “pacto” ainda hoje vigentes. Não trouxe o charme nem o dinamismo de JK, com sua fantasia industrializante de recriar o País, fazendo 50 anos em 5. Nem sequer seria justo aproximá-lo de Fernando Henrique Cardoso, cujo refinamento intelectual fazia com que conhecesse a estrutura do País que pretendeu administrar.

Mas Lula foi diferenciado. A começar do estilo. Falastrão, debochado, emotivo, avesso a protocolos e a regras gramaticais, demarcou um território. Líder metalúrgico, filho humilde do Brasil profundo, encontrou uma fórmula eficiente de dialogar com as grandes multidões, valendo-se da exploração de uma espontaneidade que o levou a ser tratado como um brasileiro igualzinho a você, predestinado a promover a ascensão dos pobres graças à magia de uma identificação imediata. Por ter vindo “de baixo” e carregado a cruz do sofrimento, Lula saberia como atender os pobres. A precariedade da formação intelectual e a falta de gosto por leituras ou estudos sistemáticos seria compensada pela percepção intuitiva das carências sociais. Ponha-se nisso uma pitada de sagacidade e se tem a lapidação de um mito.

O estilo Lula de ser presidente caminhou sempre de braços dados com glorificação e a autoglorificação. Foi assim, aliás, que ele abriu caminho no PT. Soube usar a aura que o cercou no final dos anos 70, quando despontou como expressão de um “novo sindicalismo” que irrompia numa sociedade silenciada pela ditadura e disponível para se emocionar com a movimentação dos operários do ABC paulista. Criou-se assim o signo do trabalhador que se impõe a políticos, estudantes e intelectuais para fundar um partido diferente, uma política de outro tipo, um novo discurso, um distinto modo de deliberar e agir. O bordão “nunca antes na história”, na verdade, nasceu ali, colando-se a sua trajetória.

O estilo sempre esteve próximo da egolatria e da autossuficiência, combinadas com uma enorme vontade de agradar a todos. Lula nunca reconheceu erros ou cultivou a modéstia. Sua vida teria transcorrido numa sucessão de eventos positivos, modelados por seu discernimento, seu sacrifício e seu espírito de luta. Outros erraram, companheiros inclusive; ele no máximo foi enganado ou ficou imobilizado por perseguições e preconceitos.

Mas é impossível diminuir o tamanho real do personagem. Num País em que as elites políticas, econômicas e intelectuais, apesar de não terem conseguido governar com generosidade, nunca largaram as rédeas do governo, a irrupção de um metalúrgico no Planalto deve ser compreendida sem ira nem ressentimento. Tratou-se de um fato excepcional, desses que podem efetivamente sinalizar que algo novo começou a trepidar no chão da vida cotidiana.

A chegada de Lula ao poder não foi obra do desígnio divino, nem derivou exclusivamente de seu carisma ou mérito pessoal. Muita gente se empenhou para isso e a operação exigiu algum sacrifício. O PT, por exemplo, trocou sua identidade operária pela possibilidade de projetar um operário na cúpula do Estado. Depois de ter se recusado a jogar o jogo da redemocratização do País, o partido passou a defender as regras formais e informais do sistema político.

Afastou-se dos compromissos de esquerda. Depurado de combatividade e eixo, ficou refém de seu mais conhecido expoente. Alguma semelhança com o papel desempenhado por Luiz Carlos Prestes no velho PCB não é mera coincidência.

A estratégia foi auxiliada pelos fatos da vida. Houve o governo FHC, que venceu a inflação e lançou a plataforma de uma sociedade mais educada para a racionalidade econômica e mais sensível à necessidade de centralizar a questão social. Lula beneficiou-se, também, da consolidação democrática, da expansão da economia internacional e do que isso trouxe de espaço para o crescimento da economia brasileira. Tudo ajudou as políticas públicas a ganhar nova preeminência e incluir o combate às zonas de miséria e pobreza que devastam a sociedade.

Exagera-se muito na avaliação que se faz de Lula. Na apreciação do que há de positivo em seu governo, nem sempre se dá o devido valor à equipe técnica e política que o assessorou. O bloco de sustentação e a amplíssima coalizão de interesses que montou não se deveram a uma incomum habilidade de negociador, mas sim à recuperação do Estado como agente, à disseminação de práticas generalizadas de composição parlamentar e a uma “racionalidade” dos próprios interesses, que pactuaram para ganhar um pouco mais ou perder um pouco menos. Uma “nova classe média” apareceu, impulsionada pelas facilidades do crediário, pelos programas de transferência de renda e pela impressionante mobilidade da sociedade. Mas não mudou a face do País.

A presidência Lula se completou com a eleição de Dilma Rousseff, sua maior criação. O “animal político” nascido no ABC mostrou que tem corpo e vontade própria. Já não depende mais de um partido para se afirmar e pode almejar ser fiador do novo governo.

Mas nada é tão simples como parece. Todo governante constrói sua biografia e a lógica da política o impele a buscar luz autônoma. Uma hipótese realista sugere que haverá um suave descolamento entre Lula e Dilma. Disso talvez nasça um governo mais ponderado e equilibrado, capaz de substituir a presença de um líder carismático e intuitivo pela determinação e pelo rigor técnico que são indispensáveis para que se possa construir uma sociedade mais igualitária.
Lula entrou para a galeria política brasileira. Mas não inventou a roda, nem começou do zero. Não fará tanta falta quanto imagina ou imaginam. Sua passagem para os bastidores do sistema, ainda que temporária, poderá propiciar uma lufada de oxigênio na política e na dinâmica social, ajudando-as a adquirir mais espontaneidade e a pressionar por agendas de novo tipo.

Nada será como antes, é verdade, mas ninguém lamentará nem se vangloriará disso.


Marco Aurélio Nogueira é professor titular de teoria política da Unesp e autor de o encontro O Encontro de Joaquim Nabuco com a Política (Paz e Terra)


Vermelho e verde :: Mírian Leitão

DEU EM O GLOBO

O governo Dilma deve evitar o erro de considerar que a queda do desmatamento nos últimos anos torna o assunto resolvido. Como se sabe, a área ambiental nunca foi o forte da presidente. Mesmo com a queda na taxa anual de perda de florestas, os riscos continuam e ficam cada vez mais complexos. Algumas obras do PAC são indutoras de desmatamento, por isso o problema pode voltar a crescer.

Uma impressionante reportagem de Marta Salomon, no "Estado de S.Paulo", domingo passado, mostra como é complexa a questão do desmatamento no Brasil. Ela conta que um proprietário que respeitou a lei na Amazônia de Mato Grosso e manteve os 80% de floresta vai ser desapropriado pelo Incra porque a terra foi considerada "improdutiva". Acampados por perto, já à espera do desfecho da briga, os sem-terra já se preparam, inclusive com serrarias no local.

A fazenda Mandaguari foi classificada como "grande propriedade improdutiva", apesar de ter pecuária, apenas porque o proprietário não desmatou 50%, que teria direito adquirido de desmatar, na estranha opinião do superintendente do Incra em Mato Grosso. Uma velha lei permitia a derrubada de 50% da floresta. Esta lei foi mudada pelo ex-presidente Fernando Henrique, elevando a proteção para 80%. O fazendeiro obedece a lei em vigor, mas não deveria, pelo visto. O líder do acampamento dos sem-terra avisou que, se puder, terá uma serraria, e as madeireiras locais já fazem as contas de quanto há de mogno, cedro, ipê e angelim, entre outras madeiras nobres, na terra que será desapropriada. Tomara que agora que está confirmada no cargo, a ministra Izabella Teixeira queira impedir esse crime ambiental, porque hoje assentamentos e desmatamentos em áreas pequenas são uma parte substancial da perda de florestas no país.

O conflito de visão entre o Incra e o Ibama se arrasta há anos. O caso mostrado pela reportagem é emblemático, mas não é o único. Numa visita que fiz a Amazônia, fui apresentada pelo Ibama do Pará a documentos autuando o Incra por queima de castanheira, uma árvore protegida.

A confusão do desmatamento no Brasil é que a fronteira entre mocinhos e bandidos nunca foi clara. Há assentamentos de sem-terra em conluio com grandes proprietários para que a terra seja desapropriada e os donos embolsem grandes indenizações. O financiamento público a atividades que desmatam nunca foi interrompido. O próprio governo que tenta coibir é o que incentiva financeiramente a atividade predatória. Cada bioma tem a sua complexidade e todos têm fragilidades. Até a Mata Atlântica tem perdido cobertura apesar de só restarem fragmentos. Se não entender tudo isso, e ficar dormindo sobre os números de queda, o novo governo pode enfrentar um aumento do ritmo de desmatamento.

Até porque, os números revelam sinais de riscos crescentes. O Imazon mostrou que o desmatamento na Amazônia Legal, em novembro, foi de 65 km, 13% menor do que o de novembro de 2009. Porém, no mesmo período, o aumento da degradação - que é normalmente uma prévia do desmatamento - foi de 256% e atinge 2.805 km. A maior taxa de perda de florestas ocorre exatamente em Mato Grosso.

O cientista florestal Paulo Barreto, do Imazon, conta que, apesar das restrições aprovadas pelo Conselho Monetário Nacional ao financiamento de atividades que desmatam, o nível de crédito rural não foi afetado.

- Em 2008, o ano que começaram a valer as restrições ao crédito, o valor total dos financiamentos a atividades agropecuárias na Amazônia caiu apenas 1% em relação a 2007. Em 2009, o crédito rural na região subiu 11%. Parte desta subida se deu porque o governo aumentou os limites para o crédito para amenizar os efeitos da crise financeira. É importante notar que as restrições do CMN focaram principalmente nos imóveis acima de quatro módulos (entre 200 e 400 hectares). Os imóveis menores continuam tendo acesso ao crédito - diz Barreto.

Outras reportagens têm mostrado que o BNDES é grande financiador de frigoríficos que ainda não conseguiram fazer a sua parte no pacto contra o desmatamento, feito com supermercados e ONGs: não conseguem provar que compram apenas de quem não desmatou recentemente.

Paulo Barreto, do Imazon, acha que a maior derrota para a Amazônia é o governo insistir em certos projetos:

- Alguns são desastrosos, como o asfaltamento da BR-319, que liga Porto Velho a Manaus, outros são duvidosos, como Belo Monte. Isso mostra que o governo não teve e não tem um projeto coerente e inovador para a região. Responde a emergências, de um lado, atende a demandas pontuais de aliados, de outro, e investe no modelo antigo.

O ministro dos Transportes do novo governo é o mesmo Alfredo Nascimento que tentou fazer da BR-319 uma plataforma para a sua eleição ao governo do Amazonas. Derrotado, voltará ao cargo. A área energética continua com aliados de José Sarney. As vitórias que produziram queda no desmatamento são em grande parte derivadas de medidas iniciadas na gestão Marina Silva no Ministério do Meio Ambiente e, depois, com Carlos Minc. Mas a ambiguidade do governo Lula continuará no governo Dilma.

O aumento da degradação, mostrado pelo Imazon, é um indicador antecedente de desmatamento. As obras mais ameaçadoras foram colocadas na agenda nacional por pressão direta da própria presidente Dilma, quando chefe da Casa Civil. O conflito entre agências do governo, com o Incra e o Ibama, produzem fatos absurdos como o mostrado na reportagem sobre a Fazenda Mandaguari, punida por respeitar a lei do país.

Pior que o WikiLeaks:: Rubens Ricupero

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Há mais de um século, um telegrama diplomático quase levou a Argentina e o Brasil às vias de fato

Um telegrama diplomático brasileiro interceptado e violado por agentes do governo argentino provocou, há pouco mais de um século, grave crise que gerou clima de quase guerra entre os dois países.

Muito mais sério que o do WikiLeaks tanto pela autoria oficial da violação como das potenciais consequências, o episódio se passou na segunda metade de 1908.Seus personagens foram o barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores, e Estanislao Zeballos, recém-demissionário da Chancelaria argentina que vinha de ocupar pela terceira e última vez.

Durante mais de 30 anos, os dois rivais se haviam digladiado como os heróis da novela "Os Duelistas", de Conrad ou os pitorescos quadrinhos da série "Spy vs. Spy".

O primeiro embate ocorreu em 1875, quando um enviado argentino se retirou do Rio de Janeiro sem despedir-se do imperador em meio a outra crise entre os dois países.O então jornalista e futuro barão escreveu que não se tratava de afronta ao Brasil, apenas de uma "gaucherie", isto é, uma deselegância. Confundindo a expressão com "gauchada", Zeballos revidou que isso era uma "macacada de má lei", aduzindo com racismo: "É melhor ser gaúcho do que macaco"...

Em 1895, os dois voltariam a se confrontar em Washington como adversários na questão limítrofe de Palmas, submetida à arbitragem do presidente Cleveland, dos EUA, e ganha de modo cabal pelo Brasil.

O ato final se daria em 1908, ano marcado pelos temores argentinos diante do programa de rearmamento naval brasileiro.

Zeballos, ainda ministro, havia interceptado e mandado decifrar o telegrama nº 9 enviado pelo Itamaraty à missão do Brasil no Chile, via Porto Alegre e Buenos Aires.

Pela versão argentina, Rio Branco estaria intrigando os países sul-americanos contra a Argentina, acusada de desígnios sinistros sobre o Paraguai, o Uruguai, a Bolívia e o Rio Grande do Sul.

A mensagem conteria até ofensas gratuitas contra o caráter "volúvel" dos argentinos, sua falta de estabilidade e comentário hoje irônico, pois dirigido com frequência aos nossos atuais dirigentes.

O de que "a ambição de ser protagonista os desmoraliza, sacrificando o mérito, com o descrédito de seus estadistas e prejuízos derivados da falta de seriedade que os caracteriza"...

Desafiado a submeter o telegrama a uma corte de plenipotenciários, o Barão contra-atacou de modo fulminante: publicou o texto cifrado, a tradução falsa e a autêntica, totalmente diversa, bem como o código diplomático brasileiro, que se tornou inutilizável.

Liquidou assim a questão com triunfo esmagador.

Esse não foi o único antecedente do WikiLeaks em termos de correspondência diplomática americana relativa ao Brasil. Convém lembrar também os arquivos secretos do presidente Lyndon Johnson, reveladores, em meados dos anos 1970, do grau de envolvimento de Washington com o golpe de 1964 por meio da Operação "Brother Sam".

Rio Branco teria lições a ensinar e não só aos americanos. Refratário a comentários ofensivos gratuitos a outros países, compreendia que o mais impenetrável dos códigos tem como limite a fragilidade dos seres humanos, sobretudo em tempos de crise do consenso interno sobre política exterior.

Quem devassa devassado será :: Eliane Catanhêde

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

BRASÍLIA - Sua privacidade é devassada quando você vai ao banco, ao supermercado, ao shopping, ao próprio escritório, ao apartamento de um amigo, ao consultório médico, a uma repartição pública, a uma embaixada, e até quando simplesmente anda pela rua.

As câmeras estão por toda a parte, desde a portaria até corredores e salas dos prédios, e raramente faltam no elevador. Até suas partes íntimas estão à mostra em alguns aeroportos de países que se acham donos do mundo.

Essas câmeras indiscretas têm lá sua serventia. Num exemplo doméstico e recente, foram elas que derrubaram a versão dos vândalos que espancavam jovens na Paulista e reconstituíram a verdade para a polícia, para a Justiça e até para as famílias desorientadas.

Contra imagens, não há argumentos.

Portanto, segurança é bom e todo mundo gosta. Mas, se bisbilhotam nossas rendas, nossas contas, nossas digitais, nossas companhias, nossas falas, nossos atos e nossos passos, nós também temos o direito de bisbilhotar quem nos bisbilhota.

Governos e organizações invadem nossa privacidade, e nós queremos invadir a privacidade deles. O que eles sabem e o que decidem nos dizem respeito diretamente.

Imagine só o que o cidadão do mundo ficaria sabendo se o WikiLeaks tivesse quebrado o sigilo dos telegramas e das mensagens do Pentágono e do Departamento de Estado dos EUA à época da invasão do Iraque... Muitos abusos e principalmente muitas mortes poderiam ter sido evitados.

Justamente por isso Julian Assange, do WikiLeaks, foi eleito "homem do ano" do "Le Monde" francês e do próprio mundo. Ele humilhou a maior potência, expôs o ridículo da correspondência diplomática e principalmente equilibrou o jogo de esconde-esconde.

Quem devassa devassado será. Isso vale para nós, meros mortais, e passa a valer para eles, que se julgam os deuses do Universo.

Uma rede chamada humanidade:: Alberto Dines

DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Papai Noel não desceu pela chaminé, baixou pela Internet. Na lista de presentes que distribuiu neste Natal houve mais eletrônica do que joalheria, mais gadgets do que sedas, mais Steve Jobs do que Dior.

Mais ilusões do que realidades: tudo à nossa volta revela uma absurda premência em matéria de apetrechos e equipamentos, corremos esbaforidos atrás dos últimos lançamentos sem perceber que a obsolescência vem junto, brinde obrigatório. Cada nova maquineta nas vitrines é mais uma geringonça a caminho do lixo não-orgânico.

Cansamos de ser humanos, esta é a verdade, preferimos ser operadores de sistemas. Apoiados em pequenos manuais de instrução somos inseridos facilmente nas redes do sucesso, ditas “sociais” – fazemos parte, ganhamos um perfil, rosto, visibilidade. Afinal, chegamos ao status de expoentes embora próximos da nulidade.

Mais complicada, menos sedutora, é a percepção de que a corrida atrás das inovações é enganosa. O ideal iluminista do homem racional, autônomo, livre de dogmas e preconceitos, acabou produzindo em apenas 200 anos – um ninharia na história da civilização – legiões globais de escravos das modas.

O futuro já não é o que era – miragem inalcançável, desafio invencível, sonho, esperança. Representava um salto, ascensão, agora com um clique (re)baixa-se da rede. O futuro era transcendental, agora, uma banalidade de última geração em formato de história em quadrinhos onde os protagonistas são fantásticos equipamentos e os humanos, meros acessórios.

O inglês H.G. Wells tornou-se mais conhecido por suas quimeras científicas do que por seus escritos sobre socialismo e pacifismo. O fatalismo tecnológico transfere para os países desenvolvidos a função de nos abastecer de ferramentas cada vez mais sofisticadas enquanto nos mantém na condição de usuários passivos de suas inovações. Idolatramos um vago e imponderável mundo melhor, esquecidos de algo comezinho: preparar gente melhor para torná-lo viável. Ao menos, capaz de separar os benefícios dos malefícios colaterais.

A modernidade caminha em alta velocidade para tornar-se um retrocesso. Não venceu a intolerância nem o fanatismo como prometera e ainda conseguiu o milagre de fazer da religião um agnosticismo e, deste, uma religião. A modernidade convive com as mentiras, a corrupção, a arbitrariedade e a barbárie graças às infindáveis e anestésicas repetições em tempo real.

Sem consistência, em questão de dias as vanguardas se dissolvem em réplicas, platitudes, reciclagens, híbridos, chavões. Indolor, inodora e inaudível – graças ao barulho ensurdecedor que provoca – a modernidade é uma pirataria desenfreada e invencível.

Tecnologia não liberta ninguém, escreveu recentemente o historiador Timothy Garton Ash. Também não emancipa. Quem liberta, emancipa e transforma são as ideias e as ideias são produzidas pela incerteza nesta arcaica e formidável rede chamada humanidade.


» Alberto Dines é jornalista

O mau sinal do governo que nem começou:: Elio Gaspari

DEU EM O GLOBO

A futura ministra da Pesca cobrou indevidas hospedagens e o do Turismo, despesa de motel

A permanência do deputado Pedro Novais (PMDB-MA) no Ministério do Turismo e da senadora Ideli Salvatti (PT-SC) no da Pesca são um mau presságio para um governo que nem começou. Revelam ligeireza com o dinheiro da Viúva, onipotência e descaso pela opinião pública.

Novais recebeu da Câmara R$ 2.156 por conta de nota fiscal do Motel Caribe, de São Luís, relacionada com despesas feitas no estabelecimento durante a noite de 28 de junho.

A senadora, que recebe R$ 3.800 mensais para custear sua moradia na capital, cobrou à Viúva R$ 4.606 referentes a diárias de hospedagens no hotel San Marco, de Brasília, entre janeiro e dezembro deste ano.

Descobertos, ambos atribuíram as cobranças a "erros" praticados por assessores e informaram que devolveriam o dinheiro.

Pedir desculpas à patuleia, identificando publicamente os responsáveis, nem pensar.

Cobrança de parte da presidente eleita que acabara de indicá-los para o ministério, muito menos. Preservou-se o padrão de casa-grande dos maganos de Brasília. Ao pessoal da senzala restou o alívio da descoberta do avanço sobre seu dinheiro, feita pelos repórteres Leandro Colon, Matheus Leitão, Andreza Matais e José Ernesto Credendio.

O deputado Novais, um maranhense octogenário que vive no Rio de Janeiro e chegou ao Ministério do Turismo por indicação do senador José Sarney, do Amapá, foi imediatamente defendido pelo líder de seu partido, Henrique Eduardo Alves: "Ele está esclarecendo de forma competente".

Em seguida, pelo futuro ministro da Articulação Política, deputado Luiz Sérgio (PT-RJ): "O Pedro Novais é um parlamentar experiente e, pela história dele, precisamos dar crédito à sua versão".

Num primeiro instante, a reação de Novais foi típica dos senhores de escravos: "Pare de encher o saco. Faça o que você quiser".

Depois, apresentou uma explicação que tem muito de experiente e pouco de competente: "Indignei-me como parlamentar e homem público, mas, acima de tudo, como cidadão e marido. A acusação leviana tenta atingir minha moral e a firmeza de minha vida familiar.

Sou casado há 35 anos. Na noite de 28 de junho, data da emissão da nota fiscal, pelo estabelecimento, estava em casa, ao lado de minha mulher. Não posso aceitar que essa falha seja usada para acusações irresponsáveis à minha pessoa".

Mesmo que na noite de 28 de junho o deputado estivesse na Igreja Evangélica Brasileira, que fica na rua do Amor, nas cercanias do Motel Caribe, isso não teria qualquer importância.

Foi seu gabinete que apresentou à burocracia da Câmara a nota fiscal do motel. Ademais, uma funcionária do Caribe informou que houvera reserva em seu nome.

Admitindo-se que tudo não passou de um erro, Novais deveria ser grato ao repórter Leandro Colon, pois ele permitiu que expurgasse de sua longeva biografia e de seu firme matrimônio a sombra de uma despesa de R$ 2.156 num motel.

Em 2002, a nação petista sabia que o tesoureiro Delúbio Soares ia além de sua chinelas nas mágicas financeiras que fazia com o publicitário Marcos Valério. Acharam que dava para segurar.

Em 2003, o poderoso José Dirceu sabia como operava seu assessor Waldomiro Diniz. Achou que dava para segurar. Depois que as acrobacias confluíram no mensalão, Nosso Guia deu-se conta de que deveria ter substituído Dirceu logo depois do caso de Waldomiro.

Em todos os episódios, o governo comprou o risco da crise porque tolerou malfeitos que lhe pareciam toleráveis. Isso, supondo-se que Dilma Rousseff não fazia ideia das atividades da família Guerra quando patrocinou a ascensão da doutora Erenice à chefia da Casa Civil da Presidência.

A senadora Salvatti e o deputado Novais foram preliminarmente exonerados pela teoria do "erro", sempre praticado por assessores jamais identificados e nunca disciplinados.

Repetindo: nem desculpas pediram. Passou-se adiante o pior dos sinais: "Vamos em frente, não tem problema".

O ciclo Lula dá adeus :: Gaudêncio Torquato

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Daqui a seis dias, no final da tarde de sábado, Luiz Inácio Lula da Silva descerá a rampa do Palácio do Planalto, deixando a condição de mandatário-mor do País. Nesse momento, as cortinas descerão sobre um palco aberto em 1.º de janeiro de 2003, onde peças sempre bem aplaudidas exibiram a performance do mais prestigiado líder do Brasil contemporâneo, um dos raros a combinar dois celebrados conceitos de Maquiavel: a virtú e a fortuna. Ao maximizar seu prestígio junto às massas, reforçado por um perfil carismático, Lula administrou, de maneira exemplar, as circunstâncias de um tempo pleno de aspirações, atingindo, por consequência, o grau de maior provedor das necessidades do povo que governou. A sorte que bafejou o governante, soprada por ventos que revigoraram o ambiente econômico, foi usada por ele de maneira eficaz para estreitar as distâncias entre as classes sociais. Ajudou-o nessa tarefa a alma intuitiva de um brasileiro que saiu do andar mais baixo do edifício nacional. Alma plasmada pelas carências das populações mais sofridas. Esse tempero fez a diferença de estilo.

Afinal, o que foi o ciclo Lula? Foi, sobretudo, a era de intensa dinâmica social, que propiciou a inserção de apreciável contingente ao mercado de consumo. A pirâmide das classes teve seu meio alargado com afunilamento da base, ou seja, tornou-se menos triangular e mais retangular. Esse constitui o maior feito do governo comandado pelo ex-metalúrgico. Além de 30 milhões de brasileiros que ascenderam à classe média (baixa), outro núcleo se movimentou da margem extrema da base para um degrau acima, ou, nos termos da estratificação social, subiram da classe E para a D. Abre-se, aqui, um parêntesis. A ascensão social foi, é e sempre será meta prioritária das esquerdas. Por consequência, o PT procurou validar o seu passaporte esquerdista - até para estabelecer um diferencial sobre outros partidos - a partir da política de inserção social da era Lula. Mas é arrematado exagero dizer que uma guinada esquerdizante passou por aqui. Há tentativas naquela direção - como criação de controles na área de comunicação e abordagens polêmicas na política de direitos humanos -, mas um sistema de freios tem segurado as intenções. Ademais, vale lembrar que o ciclo Lula caracteriza-se também por sediar uma teia de siglas insossas, inodoras e incolores. E mais: o sucesso do programa de distribuição de renda e acesso ao crédito teve uma semente plantada no passado.

Sob essa leitura se esvanece a tese de que o grid de largada do Brasil na pista internacional é coisa exclusiva do governo Lula. Na verdade, a montagem da corrida se deu lá atrás, quando o ciclo Itamar/FHC abria os tempos estáveis do Plano Real. Por isso, parcela ponderável da expressão cívico/ufanista do período que se encerra faz parte do enredo de autoglorificação. O verbo solto que se emprega para exalar os feitos contemporâneos chega a lembrar o ciclo militar, quando a harmonia social, flagrada nas imagens de crianças brincando em jardins, se fundia com o verde-amarelo da bandeira, enquanto um hino cívico enaltecia o Brasil Potência. Nem por isso se pode diminuir a inequívoca virtú do presidente Lula, exercida nos palanques populares e nos salões nobres e irradiando influência. Exemplo é a imagem externa do Brasil. Ficou mais forte, apesar de rompantes da diplomacia, ao cortejar países de inequívoca tradição repressiva, como o Irã. Não se imagina evento de magnitude no plano internacional sem a voz do Brasil.

Os êxitos do lulismo, como se aduz, se devem sobretudo ao gerenciamento da economia. Ali se desenvolveu uma política conservadora. Controle de câmbio e juros elevados. A habilidade do dirigente em aproximar os frutos econômicos do estômago das massas - entendendo-se que as camadas atendidas incluíram fortes estratos das classes médias - ganhou realce nos palanques da redundância, que deram ampliação aos fatos e versões. Portanto, na esfera da propaganda, o refrão "nunca antes na história deste país" pode ser considerado verdadeiro. Errado é usá-lo para comparações em alguns campos, eis que há cinco, seis ou sete décadas não havia parâmetros para medir programas governamentais.

Ademais, não se pode comparar um país de 195 milhões de habitantes, num mundo globalizado, com um território de 50, 60 ou 70 milhões num espaço cheio de fronteiras.

Já na seara política, a situação não avançou. Pode-se até concluir que Luiz Inácio usou com mais astúcia do que seus antecessores os meios de cooptação para formar sólida base de apoio ao governo. Passou perto dele o trem do mensalão, mesmo que defenda ter sido o fenômeno uma invenção da mídia. Ora, a Justiça provou que o processo ocorreu. A mesma sensação de que a coisa não andou ocorre nos campos da saúde, segurança, Previdência, tributos e trabalho. Viu-se, em compensação, um Judiciário mais solto e aberto, descendo de um altar inacessível para ficar mais próximo da sociedade. E tomou às mãos pautas da mais alta relevância. Cassou mandatos. E contou com o esforço de um batalhão de defensores da sociedade, arregimentados no Ministério Público. A corrupção não acabou, porém ficou mais exposta a controles.

Por último, a dúvida: com a descida da rampa, o ciclo Lula se encerra? Sem dúvida. A explicação para a resposta leva em consideração o fato de que os ciclos governamentais não se repetem, mesmo que antigos dirigentes sejam reconduzidos ao posto de comando.

Relembramos a velha lição do filósofo: "Um rio nunca corre duas vezes pelo mesmo lugar." Lula, como ele próprio já piscou, pode até voltar em 2014. Mas o ambiente deverá ser diferente. Outros movimentos aparecerão no cenário. A dinâmica social continuará em evolução, enquanto núcleos organizados energizarão a sociedade. É possível prever a migração do voto do bolso para o voto da cabeça. Bom sinal. O rio correrá por outros lugares.

Jornalista, é professor titular da USP e consultor político e de comunicação

"Guarda meu lugar, tá?":: Danuza Leão

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Apesar de sua lealdade ao presidente, esperamos que Dilma comece a governar com a sua cabeça, e rápido

Temos uma nova presidente que conhecemos pouco, mas que dizem ser mandona -e tem cara; ótimo. Tomara que não só mande, como seja bem durona e não passe a mão na cabeça de nenhum de seus auxiliares que faça algo de errado. E que também apareça às vezes no Congresso, de surpresa, para que os deputados saibam que tem alguém atento aos absurdos que fazem. Tiririca, inclusive.

Dilma não parece ser nem vaidosa nem exibida. É sóbria, e duvido que vá fazer a simpática e dizer gracinhas sem graça alguma, para que os bajuladores riam, como sempre fazem, quando os poderosos abrem a boca. Tem a seu favor: trabalha -arrisco dizer- com gosto, como aliás é a obrigação de todos os presidentes, mas que nem todos fazem.

No dia da diplomação seu discurso foi curto, falou sem gesticular nem apontar ameaçadoramente o dedo, seu vestido não era nem vermelho nem verde e amarelo, estava emocionada, mas contida. Enquanto o ministro Ricardo Lewandowsky falava, ela ouvia, mas seus olhos estavam longe, bem longe; parecia estar repassando sua vida inteira, como se estivesse vendo um filme -e que filme.

Apesar de sua confessada lealdade ao presidente, esperamos que comece a governar com a sua cabeça, e rapidinho; afinal, as pessoas podem ser leais e pensar de maneira diferente.

Uma boa notícia é que Lula vai descansar (e nós dele) durante um tempo, e espero que 2011 nos traga a felicidade de abrir os jornais de manhã e encontrar menos denúncias de corrupção nas áreas do governo. Seria ingenuidade querer não encontrar nenhuma.

Não votei em Dilma, mas faço votos para que ela faça um bom governo, e que seja implacável com tudo de errado que encontrar no país. Sua escola foi o PDT, do saudoso Brizola, mas ela sabe como o PT chegou ao poder, alardeando ser "o partido que não rouba e não deixa ninguém roubar"; é isso que queríamos. Que ela se mostre firme como dizem que é, e chegue logo o dia de dizer seu primeiro NÃO aos pedidos dos Sarneys da vida, dos partidos em geral, inclusive o PT, e também aos de Lula -e que a herança lhe seja leve. Dá para entender que nesse primeiro momento não deu, mas essa hora vai ter que chegar, e quando isso acontecer -se acontecer- vou começar a acreditar em todas as qualidades que dizem que ela tem. Dilma vai ficar de olho no Brasil, mas o Brasil já está de olho em Dilma.

Presidente nova, vida nova, vamos ser otimistas, vai dar tudo certo. Está fazendo muito calor para ouvir Lula continuar falando da crise do Oriente Médio, que o Brasil deve ter assento no Conselho de Segurança da ONU, indo à UNE, ao sambódromo, ao Morro do Alemão, abraçar Zeca Pagodinho e ameaçar com 2014 -e ainda vai ter mais. Mas, como disse Chico Buarque, vai passar; aliás, já está quase. Quanto ao ministério, a cada nomeação, mais igual fica, e se tudo se passar como espera Lula, a ministra da Cultura do próximo governo poderá ser escolhida entre Ivete Sangalo e Alcione - indicação de Sarney.

Quem vai dar o tom no Alvorada é a mãe da presidente. Segundo ela, a verdadeira Dilma é ela; a filha é Dilminha. Dilma (mãe) está inteiraça, e parece ser alegre, falante e vaidosa.

Melhor, impossível.

Felicidades, Dilminha; desculpe a intimidade, mas é só hoje.

Os caminhos de Dilma :: Suely Caldas

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Até as eleições de 2012 a presidente Dilma Rousseff terá um ano e meio para aproveitar a força política das urnas e fazer o Congresso aprovar uma agenda que Lula desistiu de tocar, mas é fundamental para a economia prosperar, para tornar mais limpa a prática política, para a dívida social recuar e para acabar com a miséria. Se conseguir, seu governo será bem avaliado e dará a ela cacife para ser reeleita em 2014, desta vez sem apadrinhamento algum. Será um período difícil, concentrado no prazo exíguo e, ao mesmo tempo, ampliado em múltiplos segmentos em que a ação do governo é fundamental e determinante para fazer o País avançar.

Dessa agenda tudo é prioritário, mas a reforma política se sobrepõe, porque ela abre caminho para facilitar, acelerar e viabilizar todo o resto. É uma espécie de mãe de todas as reformas. Na visão limitada dos políticos, a reforma política é simplesmente prover dinheiro público para financiar campanhas eleitorais e ponto. Ela é muito mais. É a espinha dorsal do fortalecimento das instituições e da democracia, o anteparo ao fisiologismo e à corrupção, desencoraja o desvio do dinheiro público e força presidente, governadores e prefeitos a governarem melhor, com mais eficiência. O interesse público estará preservado e a população ficará agradecida se suas regras atenderem a esses objetivos. Importante também é não ceder a pressões para amansar a Lei de Responsabilidade Fiscal e não permitir que governantes gastem mais do que podem. Sancionada no governo FHC, essa lei é parte integrante da reforma política, embora a vinculação não tenha sido explicitada na época da sua aprovação.

Para aprovar as reformas e outros projetos do Executivo no Congresso é fundamental que a nova presidente resista à prática do toma lá dá cá, ao jogo de chantagem dos parlamentares. Se ceder na primeira vez, a chantagem se espalha e Dilma pode virar refém de uma prática que Lula e o mensalão fartamente provaram ser desastrosa para o País e para quem o governa. Não só porque avança sobre o dinheiro do contribuinte. Também porque vender dificuldades para obter facilidades leva tempo, deforma o conteúdo das matérias, atrasa sua tramitação e o Executivo acaba desistindo de projetos essenciais para o País. Foi o que aconteceu com Lula, que desistiu das reformas tributária, trabalhista, sindical e previdenciária, causando um lamentável atraso de oito anos.

Dilma acaba de escolher seu ministério, contemplando os dez partidos políticos da aliança que a elegeu. Em regimes democráticos, de representação partidária, essa prática é legítima, desde que os escolhidos tenham o passado limpo e agreguem competência e preparo técnico ao cargo. Em relação à maioria dos ministros escolhidos, tais critérios não foram, nem minimamente, observados. Mas está feito, vá lá. Agora ela vai enfrentar uma segunda etapa de pressões para nomear políticos em diretorias de estatais, agências reguladoras, órgãos públicos em Brasília e nos Estados e cargos no segundo, terceiro e quarto escalões.

Aí já é diferente. Mais uma vez, Dilma precisa resistir com força, mostrar-se irredutível. Para administrar com eficiência o bem público, o governante não pode entregar cargos técnicos, que executam decisões e projetos de governo, a políticos fisiológicos, cujo interesse é unicamente extrair do cargo vantagens para seu partido. Como julga que nunca erra, Lula recusou-se a aprender com erros. Mas Dilma deve ter na memória os últimos oito anos de enorme desgaste político com os eleitores e fracasso de gestão em estatais e órgãos públicos por Lula ter nomeado políticos oportunistas para cargos técnicos.

Esse é o arcabouço político e humano com que Dilma vai trabalhar nos próximos quatro anos. É imperfeito, sujeito a pressões políticas, lobbies e chantagens. Portanto, ela deve ficar permanentemente atenta para três objetivos: esgotar o calor das urnas para aprovar matérias difíceis - e de interesse do País - nos primeiros 18 meses de mandato; não nomear políticos incompetentes para funções técnicas; e adotar, desde já, por princípio não ceder a chantagens de parlamentares.

A agenda. Na campanha Dilma evitou falar das reformas (política, tributária, trabalhista, sindical e previdenciária). É um tema politicamente complicado para ser defendido em momentos de caça aos votos. Mas Dilma sabe que elas são tão essenciais quanto difíceis de passar no Congresso. Daí o esforço para tentar aprová-las nos primeiros 18 meses de governo. Além delas, fazem parte da agenda de curto prazo as microrreformas - dirigidas a apoiar o crescimento de longo prazo, criar ambientes propícios a novos negócios e a aumentar a eficiência do mercado. Eliminar papelada, encurtar prazos, facilitar, enfim, a burocracia para a abertura de empresas são providências bem-vindas para estimular novos investimentos, gerar emprego e renda. Correndo por fora desta agenda, a nova presidente vai enfrentar o complicado e minucioso trabalho de administrar o cotidiano da economia.

Dilma assume num momento em que a economia está mais aquecida do que deveria, pressionando a alta da inflação - o Banco Central (BC) elevou sua projeção para 2011 de 4,6% para 5% - e gerando expectativa de o BC voltar a elevar a taxa Selic na próxima reunião do Copom. Se quiser evitar isso, ela terá de endurecer no desempenho fiscal, cortar despesas, suspender contratações, frear a ambição do PT por cargos, recusar pressões e lobbies por gastos de toda ordem e, se necessário, cortar investimentos do PAC. Desequilibrado em razão do desajuste cambial e da crise nos países ricos, o déficit externo está em plena ascensão, devendo fechar 2010 em US$ 49 bilhões e, segundo o BC, em US$ 64 bilhões em 2011 - 31% maior do que este ano. Esse é um problema delicado que requer atenção e ação para não se agravar.

A boa notícia é que a maioria das empresas tem planos de investir em 2011, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas. Mais investimento, mais emprego, mais dinheiro circulando, mais receita tributária. E é com esse aumento de receita que Dilma deveria organizar um programa de pagamento gradual da dívida e de redução a zero do déficit público nominal.

No mais, boa sorte ao Brasil e à gestão da nova presidente. E um feliz ano-novo aos queridos leitores.

Jornalista, é professora de comunicação da PUC-RIO

O mundo do dinheiro em 2011:: Vinícius Torres Freire

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Bancão vê baixo risco de colapso chinês, reclama da inflação no Brasil e está otimista com "emergentes"

Os problemas da economia do Brasil não são, no curto prazo, lá muito dramáticos. A impressão geral vem das avaliações de investimentos e mercados do Goldman Sachs, o bancão de investimento mais bem-sucedido no mundo. O mais interessante nesses relatórios, dirigidos a clientes, é que o nível de hipocrisia é quase nenhum. Seus redatores não estão interessados em pregação ideológica e não dão a mínima para o bem-estar ou para o futuro do país. Ou melhor, tal perspectiva importa apenas quando se trata de analisar quais são os riscos e as oportunidades de investimento.

Como se trata de estudos de estratégia global de investimento, não há consideração sistemática sobre o caso de país algum, com exceção da China. A preocupação maior é avaliar o risco de bolhas, de crises financeiras e de mudanças dramáticas em políticas econômicas e preços de ativos. O pessoal está otimista.

A economia mundial estaria saindo da lama, "não emergentes" incluídos. O risco de colapso chinês seria baixo. Até o alardeado excesso no mercado imobiliário chinês não é levado muito a sério -na conta do pessoal do Goldman Sachs, os preços médios e relativos dos imóveis chineses estão num patamar aceitável. A inflação chinesa continua a acelerar, para mais de 6%, mas é administrável.

Uma reviravolta negativa nos mercados financeiros, ações em particular, não deve acontecer antes de 2012, afora a hipótese de alguma catástrofe. O mercado deve piorar com o fim do relaxamento monetário no mundo rico, com a alta de juros nos Estados Unidos e/ou com a baixa relevante do desemprego americano. As catástrofes por ora improváveis seriam uma crise da dívida europeia (agora detonada pela Espanha) ou de "pouso forçado" na China (com inflação explodindo).

No geral, o bancão continua a sugerir investimentos além da média em "emergentes", como o faz há uma década. Segundo economistas do banco, o "mercado" começaria a antecipar a hipótese de fim do crescimento dos "emergentes" apenas quando tais países passassem a ter grandes deficit em conta-corrente e sua dívida externa voltasse a aparecer, "o que está muito longe de acontecer".

Além do mais, continuam firmes os vetores do crescimento emergente: crescimento acelerado da produtividade, baixo endividamento do setor privado e público e moedas desvalorizadas. No Brasil, porém, o crescimento da produtividade é relativamente menor. Ainda mais discrepante, a moeda brasileira é a mais supervalorizada do mundo emergente em relação ao dólar, entre 30% e 40% mais cara do que seu "valor justo", na conta do banco.

O que parece incomodar mais o bancão é a economia crescendo além do "potencial", que, segundo o banco, é de 4%, e a inflação decorrente já atingiu um nível "problemático" (maior que 5% ao ano). De 19 "mercados emergentes" avaliados, Brasil, Argentina e Índia levam bandeira vermelha.

Porém, do ponto de vista do investidor global, o problema brasileiro estaria longe de ser crítico, como observado acima: o superaquecimento se torna um risco mais assustador depois de anos de elevados deficit em conta-corrente e da volta da dívida externa.

A perspectiva de tal coisa ocorrer no Brasil é remota, por ora.

O que pensa a mídia

Editoriais dos principais jornais do Brasil
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PMDB se queixa do espaço perdido para o PT no Ministério

DEU EM O GLOBO

Cristiane Jungblut e Gerson Camarotti

BRASÍLIA. A redução dos recursos orçamentários administrados pelo PMDB no futuro governo de Dilma Rousseff deu início a uma rebelião silenciosa na bancada do partido. Apesar de integrar a chapa com o vice-presidente Michel Temer (PMDB-SP), a legenda não se conforma por ter perdido espaço para o PT. No futuro governo, os petistas passarão a gerenciar um orçamento de cerca de R$250 bilhões, enquanto o PMDB ficará com R$84,9 bilhões, já descontando o Ministério da Previdência, porque os recursos da pasta são comprometidos praticamente em sua totalidade com o pagamento de benefícios previdenciários e assistenciais.

Os peemedebistas incluem na conta os orçamentos dos ministérios da Saúde, de R$77,1 bilhões, e das Comunicações, de R$4,4 bilhões, que foram para o PT, e o da Integração Nacional, de R$5,4 bilhões, que foi para o PSB.

SAE, uma pasta sem orçamento

Em troca, o PMDB passou a administrar pastas de menor expressão, como Turismo e Previdência, além de uma pasta sem orçamento, a Secretaria de Assuntos Estratégicos.

Mesmo descontando os orçamentos dos ministérios técnicos, como Fazenda e Planejamento, o PT somará, ainda, cerca de R$215 bilhões. Além da Saúde, que tem parte da verba bloqueada para o custeio do Sistema Único de Saúde, o PT continuará controlando o Ministério da Educação, que chegará a R$63,6 bilhões. Há ainda o Ministério do Desenvolvimento Social, com R$43,1 bilhões, sendo que apenas o Bolsa Família responde por R$13,4 bilhões.

O PMDB ficará com R$84,9 bilhões mas, como compensação, concentrará em suas mãos alguns campeões de emendas parlamentares, como o Ministério do Turismo, que teve sua verba inflada em quase R$2,8 bilhões na passagem do Orçamento pelo Congresso. Há também o Ministério de Minas e Energia e o Ministério da Agricultura.

Partido admite que Temer errou

A rebelião do PMDB já passou a ser monitorada na Granja do Torto pelos integrantes da equipe de transição. Líderes peemedebistas já avisaram que, no primeiro momento de dificuldade, o partido saberá mostrar sua importância. A expectativa no comando da legenda é que, na primeira reforma ministerial, o PMDB volte a recuperar o espaço perdido para o PT.

A estratégia peemedebista é não entrar em confronto com os demais aliados. Há o reconhecimento de que não houve crescimento expressivo de nenhum partido da base governista. O PMDB aguarda a insatisfação natural de legendas não contempladas, como o PSC e o PTB, que ficaram de fora do primeiro escalão, para acumular forças.

De forma reservada, o PMDB reconhece que houve um erro nas negociações encaminhadas pelo vice, Michel Temer, com Dilma. Na condição de integrante da chapa vitoriosa, Temer teria sido excessivamente tímido nas negociações, avaliou um influente peemedebista.

Diante disso, o partido admite que deveria ter indicado um negociador mais agressivo para tratar dos cargos do primeiro escalão. A ordem será escalar um interlocutor com esse perfil para discutir o loteamento do segundo escalão.

Diante da perda de ministérios estratégicos, o PMDB decidiu fazer uma espécie de silêncio obsequioso nesse momento. Isso porque as reclamações públicas feitas pelo partido estavam carimbando a imagem de uma sigla fisiológica, com grande desgaste para os peemedebistas.

Oficialmente, a ordem é relativizar a redução de espaço para evitar novos ataques.

- Esse assunto está superado. O partido é governo e tem que compreender as dificuldades da presidente Dilma para montar o Ministério. Não estamos preocupados com o orçamento, e nem com bilhões para mais ou para menos. Não estamos fazendo esta conta. Estamos, sim, preocupados com o conjunto do governo. Estamos contemplados, até porque agora nós somos governo - disse o líder do PMDB, deputado Henrique Eduardo Alves (RN).

Na Granja do Torto, a ordem é tentar pacificar o PMDB para evitar surpresas durante o governo Dilma. O futuro ministro de Relações Institucionais, deputado Luiz Sérgio (PT-RJ), argumenta que o PMDB não pode se sentir diminuído na composição do futuro governo, e lembra que é preciso incluir nesse cálculo o espaço político no Legislativo, como o cargo de presidente do Senado, que deve permanecer na cota do PMDB, com o senador José Sarney (AP). Ele acrescenta que é preciso incluir nesse cálculo também a vaga de vice-presidente para Temer.

- Não podemos olhar de forma fracionada para os partidos aliados. Temos que olhar o conjunto da obra. O que existe é uma coalizão, no qual a presidente eleita é do PT e o vice, do PMDB. O que existe é uma composição, que, além de Dilma e Temer, tem Sarney como candidato à presidência do Senado.

Petista minimiza o desgaste

Na prática, cada partido ficou com um grande filão. O PP ficou com o Ministério das Cidades, outro campeão de emendas parlamentares e onde se concentra boa parte dos investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O PSB ficou com Integração Nacional. O PR, com o Ministério dos Transportes, que também concentra o PAC. O PCdoB ficou com o Esporte, que receberá recursos por causa das obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas de 2016. E o PDT manteve o feudo no Ministério do Trabalho.

No Planalto, há o reconhecimento de que o PMDB ficou com uma fatia menor. A ordem é minimizar o episódio e tentar consertar no futuro. Tampouco o PT quer se vangloriar de ter ficado com a maior.

- Não acredito que a divisão dos ministérios possa criar problemas, porque todos os partidos estão representados e satisfeitos. A presidente Dilma teve sensibilidade de ouvir todas as correntes de opinião das legendas aliadas - minimizou o líder do governo, deputado Cândido Vaccarezza (PT-SP).

Marina usará institutos para tentar voltar em 2014

DEU EM O GLOBO

Terceira colocada na eleição deste ano, verde fica sem mandato e planeja manter capital de 20 milhões de votos

Sérgio Roxo

SÃO PAULO. Depois de deixar o Senado em 31 de janeiro, Marina Silva usará dois institutos para levar adiante o projeto de disputar a Presidência novamente em 2014. Marina ficará sem mandato no Senado. Apesar de ter afirmado em seu discurso de despedida do Congresso que, "a priori", não se colocará como presidenciável, seus aliados já traçam os planos para a verde continuar nos holofotes e manter o capital político dos quase 20 milhões de votos obtidos em outubro.

Marina planeja continuar morando em Brasília para ficar próxima dos filhos, radicados na cidade. Trabalha para criar na capital o Instituto Marina Silva, responsável por guardar o acervo acumulado nos dois mandatos de senadora e na passagem pelo Ministério do Meio Ambiente (2003-2008). A expectativa é que surjam convites para palestras no Brasil e no exterior. Um aliado acredita que ela irá se sustentar financeiramente com o dinheiro arrecadado nas palestras. Devem acompanhar Marina no projeto seus assessores mais próximos do gabinete no Senado, como Carlos Vicente, Pedro Ivo e Jane Villas Boas.

Em São Paulo, Marina irá reassumir a presidência do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), posto que deixou na eleição presidencial. A entidade propõe realizar debates de propostas e ideias que contribuam para aprofundar a democracia e a sustentabilidade. O IDS foi criado em 2009, com recursos do Instituto Arapyaú, do empresário Guilherme Leal, sócio da Natura e candidato a vice na chapa de Marina.

Decisão do Supremo gera confusão sobre quem deve assumir

DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Tribunal garantiu vaga para suplente do mesmo partido, enquanto regra da Câmara leva em conta a coligação

Denise Madueño e Mariângela Gallucci

Decisão tomada no início do mês por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) provocou atrito com a Câmara, deixou a assessoria jurídica da Casa atônita e suplentes desnorteados.

No último dia 9, o STF concedeu liminar, a pedido do PMDB, determinando que a vaga decorrente da renúncia em outubro do deputado Natan Donadon (PMDB-RO) seja ocupada pelo primeiro suplente do partido do titular, ou seja, do PMDB.

A exigência contraria a regra adotada ao longo de todos os anos pela Câmara. Na substituição dos titulares, a Casa convoca o suplente seguindo a ordem da lista de eleitos encaminhada pela Justiça Eleitoral, o que leva em conta a coligação partidária.

No caso de Donadon, a Mesa da Câmara deu posse ao deputado Agnaldo Muniz (PSC), eleito primeiro suplente pela coligação Rondônia Mais Humana no ano de 2006.

Descontente, o PMDB recorreu ao STF para garantir a posse de Raquel Duarte Carvalho, suplente da legenda, e teve apoio do ministro Gilmar Mendes, relator da ação. O ministro considerou que o mandato pertence ao partido, segundo decisões anteriores do próprio STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Mendes alegou que a formação de coligações tem caráter temporário e está restrita ao processo eleitoral. A posição saiu vitoriosa, apesar de três votos contrários. O ministro Ricardo Lewandowski disse que as coligações atuam na campanha e não podem ser excluídas apenas porque as eleições terminaram.

Respostas. Desde que a ordem do Supremo anulando o ato de posse de Agnaldo Muniz chegou à Câmara, a Mesa procura respostas: o que fazer com os 20 suplentes que estão atualmente no exercício do mandato e não são do mesmo partido do titular? Esses atos de posse deverão ser anulados e outros suplentes, chamados? O que fazer quando um deputado titular se afastar do cargo e o partido não tiver nenhum suplente para ser chamado? Haverá nova eleição?

As dúvidas não terminam por aí. A Câmara ainda não sabe o que fará, em 31 de dezembro, quando os deputados que assumirão ministérios e secretarias estaduais e os que tomarão posse como vice-governadores se afastarem da Casa.

Até lá, o presidente da Casa, Marco Maia (PT-RS), terá de decidir se chamará os suplentes do mesmo partido, acatando o novo entendimento do Supremo, ou da coligação, seguindo a ordem da Justiça Eleitoral.

O suplente Francisco Escórcio (PMDB-MA) já avisou a secretaria da Mesa que está recolhendo os documentos para assumir a vaga do deputado Pedro Novais (PMDB-MA), que tomará posse como Ministro do Turismo no dia 1º de janeiro.

O primeiro suplente da coligação, no entanto, é Costa Ferreira (PSC-MA). A assessoria jurídica da Câmara já prevê uma enxurrada de ações na Justiça movida pelos suplentes que se sentirem prejudicados.

Tempo. No caso de Muniz, por enquanto, a Mesa da Câmara deu tempo ao deputado para defender o seu mandato. Ele tem o prazo até 29 de dezembro para apresentar defesa em um processo aberto na corregedoria da Casa. O corregedor, deputado Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM-BA), deverá apresentar um parecer antes de a Mesa decidir o que fazer.

Esse é mais um embate entre o Supremo e a Câmara. Atualmente os dois Poderes estão em litígio por conta do reajuste salarial. Os ministros querem a votação do projeto que aumenta os seus salários de R$ 26,7 mil para R$ 30,6 mil e o que reajusta os salários dos servidores em 56%.

Cresce diferença entre salário público e privado

DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Renda média do funcionalismo sobe 31% além da inflação nos oito anos de Lula

A desigualdade salarial entre o setor público e a iniciativa privada aumentou durante a gestão do presidente Lula, mostra levantamento feito pela Folha a partir das pesquisas mensais de emprego do IBGE.

As diferenças de rendimentos se acentuaram a partir de 2006, quando o governo lançou o primeiro pacote de reajustes para funcionários do Executivo.

Às vésperas do primeiro governo Lula, o rendimento médio mensal no setor privado era, em valores corrigidos, R$ 1.173. Em novembro deste ano, atingiu R$ 1.323, com um aumento de 13%.

Já a renda média no serviço público apresentou, no mesmo período de oito anos, aumento de 31% acima da inflação, passando de R$ 1.909 para R$ 2.494.

Os salários de advogados da União, auditores-fiscais, diplomatas e gestores do Executivo federal, por exemplo, subiram 70% no governo Lula.

Sob Lula, cresce fosso entre salários público e privado

Ganho de servidores cresceu 31% contra 13% de empregados particulares

Diferença se acentuou em 2006 quando petista fez primeiro pacote de reajustes generalizado para o funcionalismo


Gustavo Patu e Pedro Soares

BRASÍLIA e RIO - Os mesmos dados que mostram a queda do desemprego e o aumento da renda ao longo do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva também apontam, ao serem decompostos, o aumento da desigualdade entre o emprego público e o trabalho no setor privado.

Segundo levantamento feito pela Folha a partir das pesquisas mensais de emprego do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), os rendimentos médios dos servidores públicos federais, estaduais e municipais, que já eram superiores, cresceram ainda mais que os da iniciativa privada nos últimos oito anos.

As diferenças começaram a se acentuar em 2006, ano em que a administração petista lançou o primeiro de dois pacotes de reajustes salariais generalizados para os funcionários do Poder Executivo. Governadores e prefeitos também aproveitaram os ganhos de receita para beneficiar o funcionalismo.

Em valores corrigidos pela inflação, o rendimento médio mensal no setor privado, incluindo assalariados, autônomos e empregadores, era de R$ 1.173 em dezembro de 2002, às vésperas do início do governo Lula.

De lá para cá, um aumento de 13% levou o valor a R$ 1.323 em novembro passado, pela pesquisa feita nas seis principais regiões metropolitanas -São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre e Recife.

No mesmo período, a renda no serviço público, formada basicamente por salários, teve expansão de 31% acima da inflação, passando de R$ 1.909 para R$ 2.494.

SINDICALISTAS

As tabelas de remuneração do Executivo federal, publicadas periodicamente, apresentam cifras maiores e exemplos mais concretos dos ganhos obtidos pelo funcionalismo, cujos sindicatos estão entre as principais bases políticas do PT.

Uma disputa entre as carreiras da elite da administração direta levou os salários máximos pagos regularmente pelos ministérios para perto dos R$ 20 mil mensais atualmente.

Desconsiderando perdas em gestões anteriores, os salários de advogados da União, auditores-fiscais, diplomatas e gestores foram elevados em quase 70% acima da inflação no governo Lula, aproximando-se do topo do Executivo, ocupado pelos delegados e peritos da Polícia Federal.

Segundo o IBGE, o contingente de servidores federais, estaduais e municipais também cresceu nos últimos anos e atingiu 3,4 milhões de pessoas nas seis regiões.

Cerca de 65% deles eram contratados pela regras do regime estatutário do funcionalismo e militares; os demais tinham vínculo temporário ou regido pela CLT.

Para Cimar Azeredo Pereira, gerente da Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE, houve nos últimos anos "uma valorização clara" do serviço público, que resultou no crescimento do contingente de empregados.

Tal tendência, afirma, só foi interrompida pela crise, que repercutiu em 2009 e no início deste ano. Mas em meados de 2010, diz Pereira, o efetivo de trabalhadores voltou a subir.

O mesmo, diz, ocorreu com os rendimentos, que avançaram com reajustes maiores a servidores concedidos nos últimos anos.

Os anos de Lula :: Flávio Tavares

DEU ENO ZERO HORA (RS)

Chegam ao fim os oito anos de Lula da Silva no poder e não há como deixar de admirá-lo. Ele não é um estadista (ao contrário, faz tudo o que um estadista jamais faria), mas nunca houve um presidente tão gracioso e simpático. É impossível imaginar Getúlio Vargas dizendo o que Lula diz em público, numa simplificação vulgar, às vezes quase baixo calão. Nem o general João Figueiredo foi a tanto, naquelas imagens espontâneas em que dizia preferir cheiro de cavalo a cheiro de povo. Em Lula, a atração surge da facilidade com que diz coisas estapafúrdias como se fosse ciência pura ou verdade absoluta. Provoca risos, mas o jeito de menino travesso o absolve de pecado.

Em 2005, a corrupção do “mensalão” ameaçou devastá-lo e ele pensou que teria o mesmo destino de Collor. Mas insistiu em que “não sabia de nada” e que fora “traído”. Negou o inegável. Fingiu ser um paspalhão, alheio a tudo ao seu redor e foi reeleito em 2006.

No governo, tudo é “show”, termo inglês que conhece (mesmo sem saber idiomas) pois é exímio em representar. Se inaugura consultório odontológico, posa de dentista e assim por diante. Onde está, representa um papel. É o grande artista do grande espetáculo.

Em oito anos, o governo gastou cerca de R$ 10 bilhões em propaganda, segundo a Secretaria de Comunicação Social (Secom), sem contar a “publicidade legal”, produção e patrocínios. Para mostrar que o Brasil é “um país de todos”, em 2010 os gastos vão a R$ 1,1 bilhão, uns R$ 3 milhões ao dia, dos quais 64,2% para as emissoras de TV. A propaganda tornou-se inteligente e persuasiva quando Franklin Martins assumiu a Secom, após os escândalos de 2005 e foi fundamental para fazer esquecer a corrupção.

Todos falam da popularidade do presidente e não toco nisso. Fico com a análise dos que vivem perto do poder:

“Na economia, o ‘mito Lula’ não se sustenta em fatos, é só a repetição de versão triunfalista e truques numéricos. Em 2010, houve o maior crescimento em 25 anos, mas porque em 2009 caiu 0,6%, a pior recessão desde 1990. No primeiro ano, Lula aumentou o superávit primário; nos últimos, promoveu orgias de gastos. Consolidou amplo programa de transferência de renda aos pobres e fez forte doação de recursos públicos aos ricos. Quem vê só a cena final, não entende o filme”, escreveu Miriam Leitão, lúcida analista econômica. E lembrou: “Com Lula, desmataram 125 mil km2 da floresta amazônica (Portugal e Bélgica somados) e tudo aumentará com a hidrelétrica de Belo Monte e outras. Na crise de 2008, o Banco Central acumulou reservas, mas em 2010 o déficit em transações correntes vai a US$ 50 bilhões. Em oito anos, o Brasil cresceu menos que a América Latina, com os juros mais altos do mundo”.

Frei Betto, que integrou o programa “Fome Zero” (substituí-do pelo Bolsa-Família), recorda: “Com Lula, os mais pobres mereceram recursos anuais de R$ 30 bilhões; os mais ricos, através do mercado financeiro, foram agraciados com mais de R$ 300 bilhões/ano. O país continua sem reforma agrária, política e tributária. O investimento na educação não superou 5% do PIB e a Constituição exige 8%, ao menos. Em qualidade de educação, o Brasil se compara ao Zimbábue, pelos índices da ONU”.

Resta o petróleo do pré-sal, dádiva da natureza, que a Petrobras descobriu e “o governo joga fora”, diz Ildo Sauer, do Instituto de Energia da USP e, até 2007, diretor de Petróleo e Gás da Petrobras: “Sem debate e sem um pio, entregamos de 2,6 a 5,5 bilhões de barris e toda a tecnologia da Petrobras a uma empresa de Eike Batista, aquele que, num leilão, pagou R$ 1 milhão pelo terno de posse do Lula”.

Ou, na síntese de Delfim Netto, conselheiro do presidente, “o governo Lula consolidou o capitalismo no Brasil”.

*Jornalista e escritor

Pintando a guerra e a paz :: Affonso Romano de Sant'Anna

DEU NO ESTADO DE MINAS

Ali mesmo, naquele palco, mas diante de JK, então presidente da República, essa obra de Portinari foi exposta pela primeira vez

Repete-se assim a cena de 1956, quando ali mesmo, naquele palco, mas diante de Juscelino Kubitschek, então presidente da República, essa obra de Portinari foi exposta pela primeira vez.

Volto no tempo, estou em duas épocas. Já no hall do teatro converso com Maristela, filha de JK. E lhe digo: “Você sabe que te vi meio menina, meio adolescente, lá no Palácio da Alvorada, correndo naqueles salões, quando lá ia cantar com o Madrigal Renascentista?”.

Ela se emociona, e eu também. Agora está ali no camarote assistindo, como eu, à história ser reencenada. Já mostraram um filme rápido sobre os horrores da guerra. Milton Nascimento e seu grupo já cantaram, Ana Botafogo já dançou a coreografia que tematiza figuras pintadas por Portinari. Fernanda Montenegro já fez sua fala e os painéis (estupendos) estão ali no palco. Falou Luciano Coutinho, do BNDES, falou o chanceler Celso Amorim, historiando o esforço que o Brasil faz em favor do diálogo, e não da guerra. Até arriscou um comentário estético, indicando a possível influência de Paolo Ucello e ressaltando que o azul, que geralmente lembra a paz, foi posto ousadamente no quadro da guerra, e na parte da paz estão o vermelho e o laranja.

Agora é a vez de João Portinari, filho do pintor, falar e agradecer. Ele menciona várias pessoas em seu discurso. Duas delas estão presentes e ajudaram Portinari a fazer os painéis: os pintores Enrico Bianco, de 94 anos, e Maria Luiza Leão. Ambos fazem parte da história da pintura brasileira. Ao final, o público foi convidado, em grupos de oito, a subir ao palco e ver de perto a obra monumental do pintor, que viveu para a pintura e morreu envenenado pelas tintas que usava em suas obras. Entre tantos artistas presentes, Carlos Bracher me diz que vai para a fila, pois tem que tocar e ver de perto a obra do mestre.

Esse João Portinari é uma pessoa excepcional. Conheci-o na PUC Rio, em 1970. Ele havia regressado dos Estados Unidos com doutorado em matemática, mas jogou tudo para o alto e resolveu dedicar a vida à preservação da pintura e da memória do pai. Dentro daquela universidade, criou o Projeto Portinari, um modelo. Se todo descendente de artista tivesse esse desvelo pelas obras herdadas, o Brasil seria melhor e mais nosso.

Esses dois painéis, por exemplo, vieram da ONU para serem restaurados aqui. Estarão expostos, durante o restauro, no famoso prédio do Ministério da Educação, que já reunia os talentos de Corbusier, Niemeyer, Lucio Costa, Portinari e outros. Depois percorrerá o mundo, pedagogicamente, expondo a arte brasileira. Inclusive acompanhado dos extraordinários tapetes feitos a partir do Guerra e paz pela família Dumont. Vocês sabem, são a mãe e os cinco filhos, originários lá de Pirapora, fazendo uma obra sem paralelo em nossa cultura.

Essa obra de Portinari foi feita no pós-guerra, no tempo da Guerra Fria. Em nossa memória estava ainda vivo o horror do nazismo, do fascismo e das explosões atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Mas surgia o sonho de conter a guerra e gerar a paz.

Conseguimos?

A obra de arte registra nossas perplexidades e anseios.

E continua chovendo... :: Ferreira Gullar

DEU NA FOLHA DE S. PAULO/ ILUSTRADA

Foi numa visita de Vinicius que lhe mostrei o retrato e, como ele disse ter gostado, dei-lhe de presente

Em 1975, em Buenos Aires, dei a Vinicius de Moraes um quadro pintado por mim. Mas foi o de menos, tantas outras coisas que aconteceram naquela época. Embora já conhecesse Vinicius de antes, em Buenos Aires, quase dez anos depois, é que nos tornamos amigos.

E a amizade se consolidou mesmo depois da manjada leitura do "Poema Sujo", que fiz, a pedido dele, na casa de Augusto Boal. Como se sabe, me fez gravar o poema numa fita e o trouxe para o Brasil.

Naquela ocasião, Vinícius começava a namorar uma argentina, bem mais jovem que ele e, por causa disso, mudou-se provisoriamente para Buenos Aires, instalando-se num apart-hotel, no centro da cidade. Desse modo, mantinha-se a salvo de qualquer reação da outra namorada, uma bela mulata baiana, com quem vivia em Salvador.

Essa permanência do poetinha na Argentina tornou frequentes nossos encontros e, mais ainda, porque recebeu a encomenda de uma editora francesa para fazer o texto de um álbum fotográfico do Rio de Janeiro. Sabendo de minha situação financeira periclitante, convidou-me para escrever o livro com ele.

Foi então que os militares derrubaram o governo de Isabelita Perón e instauraram mais uma ditadura na América Latina.

Dias depois, Tenório Júnior, o pianista do show que Vinicius apresentava ali, desapareceu.

Embora casado, Tenório Júnior viera com uma namoradinha, que conheci no apart-hotel de Vinicius, naquele dia em que me falou do sumiço do pianista. Pedira a ajuda do ex-genro, alto funcionário da embaixada brasileira, que nada conseguira. É que a ditadura militar recém instaurada prendera e executara muita gente e mantinha esses fatos em sigilo.

Diante disso, ofereci a ajuda que estava a meu alcance: consultar uma vidente que havia localizado um filho meu, desaparecido, um ano atrás. Como o telefone da vidente não estava comigo, teria que ir a meu apartamento e, de lá, ligar para ela. Assim, acompanhado de Maria Julieta, filha do poeta Carlos Drummond, que naquela época trabalhava na Argentina, e da namoradinha de Tenório Júnior, segui para lá e liguei para dona Haydé, a vidente.

Após dizer-lhe o nome completo do desaparecido, ela me informou que o pianista deveria estar inconsciente ou morto, uma vez que não conseguia contatá-lo .(É que esse tipo de comunicação se faz de mente a mente). Em seguida, para meu espanto, advertiu: "Diga a essa mocinha, namorada dele, que está aí com o senhor, que trate de ir embora para o Brasil, enquanto é tempo".

Como ela podia saber da moça? Mistério que a razão não explica. No dia seguinte, me deu a notícia final: Tenório Júnior tinha sido espancado até a morte por policiais, numa boca de fumo, onde fora comprar cocaína. Disse isso a Vinicius, que chorou.

Enquanto isso, sua namorada baiana recorria às entidades do candomblé para ver se o separava da rival argentina. Como os pais de santo não conseguiram resolver o problema, viajou para o Rio, entrou no apartamento do poeta e, lá, sobre a cama de casal, fez rezas e depositou fetiches, que também de nada adiantaram.Vinícius trouxe a argentina para o Rio e com ela viveu um intenso, ainda que efêmero, romance.

Mas foi numa visita que me fez, ainda em Buenos Aires, que lhe mostrei o autorretrato e, como ele disse ter gostado, dei-lhe de presente. Nunca mais vi o quadro, que ele trouxe para o Brasil. Se o deu alguém, não sei.

A verdade é que, recentemente, minha amiga Guguta Brandão me informou que o cineasta Ruy Solberg era o atual proprietário do quadro e decidira dá-lo a mim de presente. E o fez num almoço com muitos amigos, na casa de Vera e Zelito Viana, há umas três semanas.

Quase uma solenidade, que me comoveu. Foi como se uma estrela, que se extraviara, voltasse do fundo da vida e me pousasse nas mãos. "Ao ouvir você na Flip, pensei: tenho que devolver o quadro ao Gullar, que é seu legítimo dono", disse-me ele. Gente fina, esse Ruy Solberg. E Zelito, de gozação: "Se fosse eu, não devolvia".

Outro dia foi a revista de Artaud, que voltou a minhas mãos, agora o autorretrato.

Continua a chover na minha horta...

Chico Buarque & Milton Nascimento - O que será (1976)

Natal da falta!!! :: Graziela Melo

Natais tristes
que longe
vão...

Tristes natais
que aqui
estão...

os natais
da fome
da pobreza
extrema
da solidão!!!

Da falta
de afeto,
da falta
de teto,
da falta
de pão!!!

Da falta
de solidariedade
da presença
da crueldade,

da falta
de coração...

de um coração
batendo
carregado
de emoção!!!

Da falta
de um gesto
simples

como o de
estender
a mão!!!

Natal
do sim
para
os ricos

E para
os pobres...

o natal
do não!!!


Rio de Janeiro – RJ, 25/12/2010


(Graziela Melo, poetisa, autora do livro “Crônicas, contos e poemas”, - Brasília, 2008)