A coligação que apoiou Gabeira elegeu os seguintes vereadores:
PSDB:
Lucinha 68.799 votos
Tereza Bergher 31.375 votos
Andréa Gouveia Viera 28213 votos
Luiz Antonio Guaraná 23.476 votos
PV:
Sirkis 47.729 votos
Aspásia 31.880 votos
Paulo Messina 5.201 votos
PPS:
Stepan Nercessian 50.532 votos
Paulo Pinheiro 20.936 votos
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
Gabeira atropela Crivella e vai ao 2º turno contra Paes
Chico Otavio e Luiz Ernesto Magalhães
DEU EM O GLOBO
Cariocas impõem derrota ao prefeito Cesar Maia, cuja candidata ficou em sexto lugar, e também a Crivella, que pela terceira vez não consegue sequer ir ao 2º turno
Ocarioca escolheu Eduardo Paes (PMDB) e Fernando Gabeira (PV) para disputar no segundo turno a prefeitura do Rio. O resultado, mais do que apontar os vitoriosos, representou a derrota de duas forças políticas da cidade: o grupo do prefeito Cesar Maia (DEM), que encerra um ciclo de 16 anos com o fracasso da candidatura de Solange Amaral, que ficou com um pífio sexto lugar, com menos de 4% do total de votos válidos; e o bispo-senador Marcelo Crivella (PRB), atropelado por Gabeira na reta final da campanha e, pela terceira vez, fora do segundo turno.
Com 99,99% das urnas apuradas, às 22h28m de ontem, o ex-deputado e ex-secretário estadual dos Esportes do Rio, Eduardo Paes, da coligação Unidos pelo Rio (PMDB-PP-PSL-PTB), recebeu 1.049.010 votos (31,98% do total). O deputado federal Fernando Gabeira, da Frente Carioca (PV-PSDB-PPS), obteve 839.990 (25,61%). Crivella, que passou boa parte da campanha liderando a disputa, terminou em terceiro, com 625.220 (19,06%), seguido de Jandira Feghali, com 321.005 (9,79%); Alessandro Molon, com 162.926 (4,97%); e Solange Amaral, com 128.591 (3,92%).
Paes chega ao segundo turno com um discurso voltado para as áreas mais carentes do município e destacando a importância da união entre município, estado e governo federal. O carro-chefe da campanha do peemedebista foi a ampliação da rede das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) na cidade. Já a defesa da ética na política marcou a campanha de Gabeira, que diz ter tomado cuidado para não sujar a cidade. Ele também defendeu o enfrentamento da violência, como prefeito, principalmente nas áreas mais pobres.
O equilíbrio na briga, já demonstrado no primeiro turno, deverá fazer das alianças um fator decisivo para os dois candidatos. De olho nas eleições presidenciais de 2010 e na briga por manter a prefeitura de São Paulo, o DEM do prefeito Cesar Maia deve fechar ainda hoje o apoio a Gabeira no segundo turno.
Mas Eduardo Paes terá uma ajuda decisiva na construção de suas alianças: o governador Sérgio Cabral (PMDB), cuja relação com o presidente Lula facilitará as negociações com os partidos da base aliada. Uma das maiores incógnitas é quem vai herdar o patrimônio de 19% dos votos dados a Crivella. Partidos como o PCdoB, de Jandira Feghali, deverão enfrentar o dilema de escolher entre um candidato aliado e outro identificado com a esquerda.
O prefeito Cesar Maia disse que amanhã serão publicados no Diário Oficial os nomes dos integrantes de uma equipe de transição. Ela será formada por técnicos da Controladoria Geral do Município, da Secretaria municipal de Fazenda e da Procuradoria. O objetivo é fornecer a Paes e Gabeira todas as informações solicitadas pelos candidatos.
DEU EM O GLOBO
Cariocas impõem derrota ao prefeito Cesar Maia, cuja candidata ficou em sexto lugar, e também a Crivella, que pela terceira vez não consegue sequer ir ao 2º turno
Ocarioca escolheu Eduardo Paes (PMDB) e Fernando Gabeira (PV) para disputar no segundo turno a prefeitura do Rio. O resultado, mais do que apontar os vitoriosos, representou a derrota de duas forças políticas da cidade: o grupo do prefeito Cesar Maia (DEM), que encerra um ciclo de 16 anos com o fracasso da candidatura de Solange Amaral, que ficou com um pífio sexto lugar, com menos de 4% do total de votos válidos; e o bispo-senador Marcelo Crivella (PRB), atropelado por Gabeira na reta final da campanha e, pela terceira vez, fora do segundo turno.
Com 99,99% das urnas apuradas, às 22h28m de ontem, o ex-deputado e ex-secretário estadual dos Esportes do Rio, Eduardo Paes, da coligação Unidos pelo Rio (PMDB-PP-PSL-PTB), recebeu 1.049.010 votos (31,98% do total). O deputado federal Fernando Gabeira, da Frente Carioca (PV-PSDB-PPS), obteve 839.990 (25,61%). Crivella, que passou boa parte da campanha liderando a disputa, terminou em terceiro, com 625.220 (19,06%), seguido de Jandira Feghali, com 321.005 (9,79%); Alessandro Molon, com 162.926 (4,97%); e Solange Amaral, com 128.591 (3,92%).
Paes chega ao segundo turno com um discurso voltado para as áreas mais carentes do município e destacando a importância da união entre município, estado e governo federal. O carro-chefe da campanha do peemedebista foi a ampliação da rede das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) na cidade. Já a defesa da ética na política marcou a campanha de Gabeira, que diz ter tomado cuidado para não sujar a cidade. Ele também defendeu o enfrentamento da violência, como prefeito, principalmente nas áreas mais pobres.
O equilíbrio na briga, já demonstrado no primeiro turno, deverá fazer das alianças um fator decisivo para os dois candidatos. De olho nas eleições presidenciais de 2010 e na briga por manter a prefeitura de São Paulo, o DEM do prefeito Cesar Maia deve fechar ainda hoje o apoio a Gabeira no segundo turno.
Mas Eduardo Paes terá uma ajuda decisiva na construção de suas alianças: o governador Sérgio Cabral (PMDB), cuja relação com o presidente Lula facilitará as negociações com os partidos da base aliada. Uma das maiores incógnitas é quem vai herdar o patrimônio de 19% dos votos dados a Crivella. Partidos como o PCdoB, de Jandira Feghali, deverão enfrentar o dilema de escolher entre um candidato aliado e outro identificado com a esquerda.
O prefeito Cesar Maia disse que amanhã serão publicados no Diário Oficial os nomes dos integrantes de uma equipe de transição. Ela será formada por técnicos da Controladoria Geral do Município, da Secretaria municipal de Fazenda e da Procuradoria. O objetivo é fornecer a Paes e Gabeira todas as informações solicitadas pelos candidatos.
Gabeira diz que Rio mudou para melhor
Alessandra Duarte e Fábio Vasconcellos
DEU EM O GLOBO
Candidato do PV comemora ida para segundo turno e afirma que apoios não estarão condicionados a cargos
O candidato Fernando Gabeira (PV) comemorou o resultado das urnas e atribuiu a chegada ao segundo turno à união de seus eleitores. Somente hoje, depois de ir ao cinema com as filhas, pretende discutir alianças para a próxima fase. Gabeira disse que primeiro vai analisar os resultados obtidos nas regiões da cidade, mas já sabe que terá que percorrer mais bairros da Zona Oeste. O candidato afirmou ainda que a busca por apoio não será para acrescentar letras à sua candidatura. Também reafirmou o compromisso de que não haverá trocas de apoio por cargos na prefeitura.
- O Rio está de parabéns. Fizemos uma campanha de alto nível, e o Rio apresenta uma possibilidade de mudança para melhor, o que é muito animador. O compromisso é ser um governo da sociedade. Está mantido o compromisso de não haver loteamento de cargos.
Gabeira acompanhou a apuração na produtora de TV da sua campanha, em Botafogo. Os cantores Paula Toller e Dado Vila-Lobos estiveram com ele, além da sua filha Maya. Assim que foi confirmado o resultado, aliados comemoraram o percentual de cerca de 53% dos votos que foram obtidos na Barra, região onde Eduardo Paes (PMDB) tem base eleitoral. O candidato disse que vai buscar os eleitores de esquerda.
- Existem os partidos de esquerda, com suas direções, e existem os eleitores de esquerda. Vou buscar os eleitores de esquerda. Acredito que o processo que vai se dar, no meu caso, não será uma busca para acrescentar letras à coligação. Vai ser uma busca de apoio na sociedade.
Sem temor de nacionalização
Tesoureiro da campanha, o ex-deputado Márcio Fortes atribuiu a passagem para o segundo turno aos compromissos assumidos por Gabeira. Fortes afirmou que não teme a nacionalização da campanha.
- Não tememos nada.
Fernando Gabeira chegou ontem às 8h, de Gabeirão - como chama o jipe da campanha -, para votar na Escola Municipal Pedro Ernesto, na Fonte da Saudade. De camisa social azul, calça jeans e tênis preto, e acompanhado do vice, Luiz Paulo Correa da Rocha, ele cumprimentou os eleitores na fila e aguardou a vez.
Ao chegar à seção onde sempre votou, Gabeira contou com a simpatia dos mesários, que lhe desejaram boa sorte e até um "rumo à vitória". Afirmando que não tem superstições, o candidato disse que dormiu bem, sete horas de sono. Sobre sua votação nas áreas pobres afirmou:
- A gente tem a idéia de que morador de áreas mais pobres é conservador, mas não é assim.
Após votar, Gabeira e as filhas, Tami e Maya, o vice e o deputado federal Otávio Leite (PSDB) rodaram a cidade. Foram mais de cem quilômetros: depois de Copacabana e Flamengo, cruzaram o Túnel Santa Bárbara rumo à Zona Norte, onde Luiz Paulo votou na Escola Municipal Londres, no Engenho de Dentro. Gabeira entrou com o vice e sentou-se para esperá-lo, sendo cercado por eleitores. Depois que fiscais questionaram sua presença "se não era eleitor dali", ele preferiu sair.
O Gabeirão passou ainda por vários bairros como Cascadura, Abolição, Pilares, Del Castilho, Jacaré e Mangueira. O périplo acabou no restaurante Forneria, na Lagoa, onde o grupo almoçou. Gabeira atribuiu a subida na reta final à "velha tradição carioca se deixar a decisão para as últimas semanas".
DEU EM O GLOBO
Candidato do PV comemora ida para segundo turno e afirma que apoios não estarão condicionados a cargos
O candidato Fernando Gabeira (PV) comemorou o resultado das urnas e atribuiu a chegada ao segundo turno à união de seus eleitores. Somente hoje, depois de ir ao cinema com as filhas, pretende discutir alianças para a próxima fase. Gabeira disse que primeiro vai analisar os resultados obtidos nas regiões da cidade, mas já sabe que terá que percorrer mais bairros da Zona Oeste. O candidato afirmou ainda que a busca por apoio não será para acrescentar letras à sua candidatura. Também reafirmou o compromisso de que não haverá trocas de apoio por cargos na prefeitura.
- O Rio está de parabéns. Fizemos uma campanha de alto nível, e o Rio apresenta uma possibilidade de mudança para melhor, o que é muito animador. O compromisso é ser um governo da sociedade. Está mantido o compromisso de não haver loteamento de cargos.
Gabeira acompanhou a apuração na produtora de TV da sua campanha, em Botafogo. Os cantores Paula Toller e Dado Vila-Lobos estiveram com ele, além da sua filha Maya. Assim que foi confirmado o resultado, aliados comemoraram o percentual de cerca de 53% dos votos que foram obtidos na Barra, região onde Eduardo Paes (PMDB) tem base eleitoral. O candidato disse que vai buscar os eleitores de esquerda.
- Existem os partidos de esquerda, com suas direções, e existem os eleitores de esquerda. Vou buscar os eleitores de esquerda. Acredito que o processo que vai se dar, no meu caso, não será uma busca para acrescentar letras à coligação. Vai ser uma busca de apoio na sociedade.
Sem temor de nacionalização
Tesoureiro da campanha, o ex-deputado Márcio Fortes atribuiu a passagem para o segundo turno aos compromissos assumidos por Gabeira. Fortes afirmou que não teme a nacionalização da campanha.
- Não tememos nada.
Fernando Gabeira chegou ontem às 8h, de Gabeirão - como chama o jipe da campanha -, para votar na Escola Municipal Pedro Ernesto, na Fonte da Saudade. De camisa social azul, calça jeans e tênis preto, e acompanhado do vice, Luiz Paulo Correa da Rocha, ele cumprimentou os eleitores na fila e aguardou a vez.
Ao chegar à seção onde sempre votou, Gabeira contou com a simpatia dos mesários, que lhe desejaram boa sorte e até um "rumo à vitória". Afirmando que não tem superstições, o candidato disse que dormiu bem, sete horas de sono. Sobre sua votação nas áreas pobres afirmou:
- A gente tem a idéia de que morador de áreas mais pobres é conservador, mas não é assim.
Após votar, Gabeira e as filhas, Tami e Maya, o vice e o deputado federal Otávio Leite (PSDB) rodaram a cidade. Foram mais de cem quilômetros: depois de Copacabana e Flamengo, cruzaram o Túnel Santa Bárbara rumo à Zona Norte, onde Luiz Paulo votou na Escola Municipal Londres, no Engenho de Dentro. Gabeira entrou com o vice e sentou-se para esperá-lo, sendo cercado por eleitores. Depois que fiscais questionaram sua presença "se não era eleitor dali", ele preferiu sair.
O Gabeirão passou ainda por vários bairros como Cascadura, Abolição, Pilares, Del Castilho, Jacaré e Mangueira. O périplo acabou no restaurante Forneria, na Lagoa, onde o grupo almoçou. Gabeira atribuiu a subida na reta final à "velha tradição carioca se deixar a decisão para as últimas semanas".
Campanha que remou contra a maré e virou onda
Chico Otavio
DEU EM O GLOBO
Sem imagem do presidente Lula e apelo popular, candidato ciclista é o fenômeno das eleições cariocas
Para chegar ao segundo turno das eleições cariocas, os candidatos seguiram estratégias parecidas, como um discurso de forte apelo popular e a vinculação da imagem à do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Só Fernando Gabeira, da frente PV-PSDB-PPS, preferiu outro caminho. Em nome de uma campanha limpa, evitou até espalhar a própria imagem em cartazes pela cidade. E é justamente ele, o candidato da bicicleta, que enxotou Severino Cavalcanti do Congresso Nacional, a surpresa que emerge das urnas.
Ontem, quando a pesquisa de boca-de-urna confirmava o fenômeno, cientistas políticos, marqueteiros e aliados procuraram explicá-lo.
A campanha começou centrada no discurso pela ética na política, com imagens de Gabeira enfrentando Severino no plenário da Câmara. Mas o candidato foi além. Soube cativar a empatia dos jovens, apostou na transparência (foi o primeiro a divulgar a lista parcial dos doadores), fez da campanha pela cidade limpa uma metáfora na defesa da ética e abandonou a cautela ao falar sobre a necessidade de conter o processo de favelização.
- Os eleitores viram que o apelo de barrar as favelas vinha pelo lado ecológico e não udenista, de que é preciso simplesmente conter - disse a cientista política Marly Motta, da Fundação Getulio Vargas.
O publicitário Lula Vieira, marqueteiro da campanha, disse que um dos méritos de Gabeira foi mostrar que um político honesto pode ser também um bom governante. E tudo isso sem uma estratégia de marketing:
- Os marqueteiros tiveram participação mínima. Gabeira é exatamente como se exibiu para o eleitor.
O ex-deputado tucano Márcio Fortes, um dos padrinhos da aliança com o PV, disse que a candidatura Gabeira foi a melhor opção para enfrentar o que chama de "cansaço da população" com a política tradicional:
- O que encantou foi o diferente. A população já não agüentava mais o mesmo. E ele correspondeu. Inventou um enredo, não sujar a cidade, e não teve medo de usar outros meios, como TV e internet, para se apresentar.
Identificado com o eleitorado da Zona Sul, o candidato procurou burilar a imagem para tentar ir além do Túnel Rebouças. O Gabeira que, nos anos 70, já usou tanga na Praia de Ipanema, apareceu agora de terno, sério e cercado da família no horário eleitoral. E, pelo resultado de ontem, conseguiu seduzir camadas mais populares da cidade.
- Gabeira já mostrou estar bem cotado junto à classe média e ao eleitor de centro-esquerda, que estava à procura do candidato ideal. Mas, no segundo turno, terá de fazer discurso para o povão - diz o cientista político Ricardo Ismael, da PU-Rio.
DEU EM O GLOBO
Sem imagem do presidente Lula e apelo popular, candidato ciclista é o fenômeno das eleições cariocas
Para chegar ao segundo turno das eleições cariocas, os candidatos seguiram estratégias parecidas, como um discurso de forte apelo popular e a vinculação da imagem à do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Só Fernando Gabeira, da frente PV-PSDB-PPS, preferiu outro caminho. Em nome de uma campanha limpa, evitou até espalhar a própria imagem em cartazes pela cidade. E é justamente ele, o candidato da bicicleta, que enxotou Severino Cavalcanti do Congresso Nacional, a surpresa que emerge das urnas.
Ontem, quando a pesquisa de boca-de-urna confirmava o fenômeno, cientistas políticos, marqueteiros e aliados procuraram explicá-lo.
A campanha começou centrada no discurso pela ética na política, com imagens de Gabeira enfrentando Severino no plenário da Câmara. Mas o candidato foi além. Soube cativar a empatia dos jovens, apostou na transparência (foi o primeiro a divulgar a lista parcial dos doadores), fez da campanha pela cidade limpa uma metáfora na defesa da ética e abandonou a cautela ao falar sobre a necessidade de conter o processo de favelização.
- Os eleitores viram que o apelo de barrar as favelas vinha pelo lado ecológico e não udenista, de que é preciso simplesmente conter - disse a cientista política Marly Motta, da Fundação Getulio Vargas.
O publicitário Lula Vieira, marqueteiro da campanha, disse que um dos méritos de Gabeira foi mostrar que um político honesto pode ser também um bom governante. E tudo isso sem uma estratégia de marketing:
- Os marqueteiros tiveram participação mínima. Gabeira é exatamente como se exibiu para o eleitor.
O ex-deputado tucano Márcio Fortes, um dos padrinhos da aliança com o PV, disse que a candidatura Gabeira foi a melhor opção para enfrentar o que chama de "cansaço da população" com a política tradicional:
- O que encantou foi o diferente. A população já não agüentava mais o mesmo. E ele correspondeu. Inventou um enredo, não sujar a cidade, e não teve medo de usar outros meios, como TV e internet, para se apresentar.
Identificado com o eleitorado da Zona Sul, o candidato procurou burilar a imagem para tentar ir além do Túnel Rebouças. O Gabeira que, nos anos 70, já usou tanga na Praia de Ipanema, apareceu agora de terno, sério e cercado da família no horário eleitoral. E, pelo resultado de ontem, conseguiu seduzir camadas mais populares da cidade.
- Gabeira já mostrou estar bem cotado junto à classe média e ao eleitor de centro-esquerda, que estava à procura do candidato ideal. Mas, no segundo turno, terá de fazer discurso para o povão - diz o cientista político Ricardo Ismael, da PU-Rio.
20 anos da Constituição
Luiz Carlos Bresser-Pereira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
A Carta foi o resultado do grande pacto nacional que se formou nos anos 70 e levou o Brasil à democracia em 85
A CONSTITUIÇÃO de 1988 está completando 20 anos. É uma Constituição equilibrada, democrática e social, que atende aos valores e aos objetivos políticos de autonomia, liberdade e justiça social partilhados pelos brasileiros. Foi criticada principalmente com base no neoliberalismo -a ideologia fundamentalista de mercado que se tornou dominante no Brasil um pouco depois da sua promulgação, e de cuja irracionalidade a crise financeira atual é mais uma demonstração.
A Constituição brasileira foi o resultado do grande pacto político nacional, popular e democrático que se formou no final dos anos 1970 e levou o Brasil à democracia em 1985. Esse pacto estava baseado em duas demandas centrais da sociedade brasileira -a democracia e a diminuição da radical desigualdade social existente no país. Graças à Constituição de 1988 e ao empenho dos brasileiros, avançamos nesses dois pontos.
Duas críticas foram comuns: de um lado, ela seria "detalhista"; de outro, "irrealista". Ainda que todas as constituições modernas sejam longas, a nossa exagerou nesse ponto. Por isso, deveria possibilitar um processo de emenda menos rigoroso do que o atual. Para ser coerente, não deveria ter cláusulas pétreas (um conceito antidemocrático que apenas facilita o ativismo do Poder Judiciário), mas uma distinção clara entre as normas fundamentais, que exigem três quintos do Congresso, e as demais normas, que poderiam ser emendadas com maioria absoluta.
Mesmo sem essa mudança, porém, o fato é que o Congresso tem se mostrado capaz de emendar a Constituição -algo que é essencial para sua legitimidade e efetividade. Se há alguma base para a crítica do detalhismo, o mesmo não é possível dizer quanto à acusação de irrealismo -de que não haveria possibilidade econômica de garantir na prática os direitos sociais.
Ainda não foi possível transformar em realidade todos os direitos previstos nessa Carta Magna, mas a garantia de muitos deles mostra que ela está sendo efetiva em transformar o Brasil em uma democracia social em vez de uma mera democracia liberal. A implementação do direito universal aos cuidados de saúde é talvez o exemplo mais significativo.
Enquanto uma democracia liberal como os Estados Unidos deixa 50 milhões de habitantes sem nenhuma cobertura, não obstante sua riqueza, todos os brasileiros estão protegidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) -um sistema razoavelmente efetivo e eficiente. Custa cerca de US$ 1 por habitante por ano, e garante atendimento de saúde a praticamente toda a população brasileira.
Dado seu custo, sua qualidade está longe de ser perfeita, mas as pesquisas mostram que seus principais críticos são os ricos ou quase-ricos que não o utilizam; os pobres estão razoavelmente satisfeitos com ele. O êxito do SUS foi resultado de uma grande mobilização política da sociedade brasileira e da adoção de um sistema descentralizado e gerencial de administração, mas a previsão do direito universal à saúde na Constituição foi essencial para que ele se transformasse em realidade.
Como é próprio às grandes cartas, a Constituição de 1988 foi o resultado autêntico de um grande pacto nacional. Seus valores sociais e democráticos e sua qualidade jurídica foram em alguns casos prejudicados pelo entusiasmo da transição democrática e pela pressa em vê-la terminada, e por isso foi necessário emendá-la -nem sempre na melhor direção. Temos, porém, bons motivos para dela nos orgulharmos.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
DEU NA FOLHA DE S. PAULO
A Carta foi o resultado do grande pacto nacional que se formou nos anos 70 e levou o Brasil à democracia em 85
A CONSTITUIÇÃO de 1988 está completando 20 anos. É uma Constituição equilibrada, democrática e social, que atende aos valores e aos objetivos políticos de autonomia, liberdade e justiça social partilhados pelos brasileiros. Foi criticada principalmente com base no neoliberalismo -a ideologia fundamentalista de mercado que se tornou dominante no Brasil um pouco depois da sua promulgação, e de cuja irracionalidade a crise financeira atual é mais uma demonstração.
A Constituição brasileira foi o resultado do grande pacto político nacional, popular e democrático que se formou no final dos anos 1970 e levou o Brasil à democracia em 1985. Esse pacto estava baseado em duas demandas centrais da sociedade brasileira -a democracia e a diminuição da radical desigualdade social existente no país. Graças à Constituição de 1988 e ao empenho dos brasileiros, avançamos nesses dois pontos.
Duas críticas foram comuns: de um lado, ela seria "detalhista"; de outro, "irrealista". Ainda que todas as constituições modernas sejam longas, a nossa exagerou nesse ponto. Por isso, deveria possibilitar um processo de emenda menos rigoroso do que o atual. Para ser coerente, não deveria ter cláusulas pétreas (um conceito antidemocrático que apenas facilita o ativismo do Poder Judiciário), mas uma distinção clara entre as normas fundamentais, que exigem três quintos do Congresso, e as demais normas, que poderiam ser emendadas com maioria absoluta.
Mesmo sem essa mudança, porém, o fato é que o Congresso tem se mostrado capaz de emendar a Constituição -algo que é essencial para sua legitimidade e efetividade. Se há alguma base para a crítica do detalhismo, o mesmo não é possível dizer quanto à acusação de irrealismo -de que não haveria possibilidade econômica de garantir na prática os direitos sociais.
Ainda não foi possível transformar em realidade todos os direitos previstos nessa Carta Magna, mas a garantia de muitos deles mostra que ela está sendo efetiva em transformar o Brasil em uma democracia social em vez de uma mera democracia liberal. A implementação do direito universal aos cuidados de saúde é talvez o exemplo mais significativo.
Enquanto uma democracia liberal como os Estados Unidos deixa 50 milhões de habitantes sem nenhuma cobertura, não obstante sua riqueza, todos os brasileiros estão protegidos pelo SUS (Sistema Único de Saúde) -um sistema razoavelmente efetivo e eficiente. Custa cerca de US$ 1 por habitante por ano, e garante atendimento de saúde a praticamente toda a população brasileira.
Dado seu custo, sua qualidade está longe de ser perfeita, mas as pesquisas mostram que seus principais críticos são os ricos ou quase-ricos que não o utilizam; os pobres estão razoavelmente satisfeitos com ele. O êxito do SUS foi resultado de uma grande mobilização política da sociedade brasileira e da adoção de um sistema descentralizado e gerencial de administração, mas a previsão do direito universal à saúde na Constituição foi essencial para que ele se transformasse em realidade.
Como é próprio às grandes cartas, a Constituição de 1988 foi o resultado autêntico de um grande pacto nacional. Seus valores sociais e democráticos e sua qualidade jurídica foram em alguns casos prejudicados pelo entusiasmo da transição democrática e pela pressa em vê-la terminada, e por isso foi necessário emendá-la -nem sempre na melhor direção. Temos, porém, bons motivos para dela nos orgulharmos.
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA , 74, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994".
Reinventar o governo?
Fábio Wanderley Reis
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Em meados de 2002, enquanto se desenrolava a campanha pela sucessão do presidente Fernando Henrique Cardoso, tivemos George Soros a decretar a irrelevância do eleitorado brasileiro e de suas preferências. A opção seria "Serra ou o caos", e se as preferências dos eleitores não correspondessem às dos mercados financeiros sobreviria o que alguns andaram chamando de "golpe de mercado", que dispensaria o velho golpe de Estado.
Há um sentido bem claro em que Soros tinha razão. Embora tenhamos tido a eleição de Lula, eram evidentes a ameaça de crise de grandes proporções e as restrições impostas ao governo que começaria pouco depois. Tais restrições já haviam marcado anteriormente o acesso de partidos ou lideranças de esquerda ao governo em vários países europeus, submetidos à necessidade de haver-se com a "economia da oferta". O consagrado estado de bem-estar era ele próprio submetido a "pressões irresistíveis" rumo à "austeridade permanente" (P. Pierson): apesar da resiliência do apoio popular que obtém e de variações não destituídas de importância no jogo político-partidário a respeito, a consideração decisiva estaria na necessidade de contenção fiscal e de governos austeros, cujo retraimento incentivasse o dinamismo dos negócios.
Naturalmente, os Estados Unidos eram, e continuam a ser, a grande referência de um liberalismo (ou um capitalismo "desorganizado") levado ao campo da proteção social, com impostos e gastos sociais do governo baixos por padrões internacionais, programas de transferência de renda de cobertura reduzida e vinculados a condições restritivas (em especial "income-tested", com o empenho, de acordo com o velho tema conservador, de não premiar os "undeserving poor", ou a vagabundagem dos pobres), etc. De todo modo, anos antes da declaração de Soros, em "O Futuro do Capitalismo" (1996), Lester Thurow, entre outros, atento em particular à financeirização como correlato crucial do sistema econômico de hegemonia estadunidense, sustentava que a indagação decisiva quanto à ocorrência de uma crise ("mexicana") de devastador impacto mundial não seria a de se viria a acontecer, mas apenas a de quando aconteceria.
Não sabemos ainda se a crise que agora abala a economia dos Estados Unidos e se esparrama pelo mundo chegará a ser realmente devastadora. Mal acaba de ser divulgada, no momento em que escrevo, a corroboração pela Câmara dos Deputados da decisão a respeito do pacote de medidas de resgate aprovado há dias pelo Senado do país. As incertezas que subsistem, porém, não fazem senão aumentar o interesse de vários aspectos do complexo experimento que lá se desenvolve, alguns dos quais podem ser relacionados, com significado positivo ou negativo, às evocações acima.
Assim, destaque-se primeiro a ironia envolvida na idéia da austeridade exigida do Estado quando se observa, na raiz da crise, a perfídia do comportamento dos agentes privados no jogo em que entra o Estado "austero". Fica evidente o caráter de ideologia barata do liberalismo extremado que se tornou afirmativamente dominante no país, erigindo pedestais a um Ronald Reagan e assemelhados.
Há, de outro lado, o contraste das relações entre o processo eleitoral e os mercados nos EUA de agora com as que levaram, no Brasil de 2002, à manifestação de Soros. Se aqui vimos os mercados constrangerem o processo político-eleitoral, lá, onde se trata da sede por excelência dos mercados que deveríamos aplacar, segundo Soros, podemos ver agora, em medida não desprezível, o inverso. Não obstante, naturalmente, o peso decisivo de Wall Street e o fato de que o resgate se imponha em nome do próprio interesse público, o jogo eleitoral está longe de ser irrelevante, como se mostra de forma preliminar nas vicissitudes por que passou no Congresso o plano de Paulson e Bernanke. Mas há algo de muito mais importante aí, a saber, que a crise leve a que a discussão do tema da necessidade de regulação dos mercados ganhe saliência na disputa da Presidência do país. E que, igualmente em decorrência de tratar-se do centro hegemônico do capitalismo mundial e de um Estado de peso correspondente, a resposta que se venha a ter para as questões envolvidas certamente acarrete consequências para a dinâmica transnacional - e quem sabe para passos significativos rumo à verdadeira "reinvenção do governo", a regulação e a governança efetivas no plano transnacional em que passaram crescentemente a operar os mercados.
Finalmente, cabe registrar o fato de que as políticas de George W. Bush, extremando o ideário que se afirmava há tempos com o predomínio Republicano, tenham permitido ao Partido Democrata, através de lideranças como Hillary Clinton e Barack Obama, denunciar com força as precariedades do "welfare state" estadunidense. E que a isso se tenha somado um aspecto que, mesmo se surge como fortuito do ponto de vista da face mais dramática da crise de agora e de suas causas, seguramente se liga ao que tem havido de mais positivo na dinâmica da democracia do país, isto é, o gradual avanço do vigoroso componente pluralista de sua tradição perante traços como a herança racista e o etos de fundamentalismo religioso e militarista. Refiro-me ao aparecimento da figura singular de Barack Obama para vocalizar e personificar a mensagem de mudança. Oxalá não haja razões para acreditar que as concessões acarretadas por certo realismo eleitoral possam levar a que se comprometam, no caso da vitória que parece anunciar-se, as esperanças em torno da neutralização dos desdobramentos nefastos do ingrediente assimétrico e "imperalista" da globalização e do renovado papel mundial dos Estados Unidos de rosto moreno com que nos vamos acostumando.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
DEU NO VALOR ECONÔMICO
Em meados de 2002, enquanto se desenrolava a campanha pela sucessão do presidente Fernando Henrique Cardoso, tivemos George Soros a decretar a irrelevância do eleitorado brasileiro e de suas preferências. A opção seria "Serra ou o caos", e se as preferências dos eleitores não correspondessem às dos mercados financeiros sobreviria o que alguns andaram chamando de "golpe de mercado", que dispensaria o velho golpe de Estado.
Há um sentido bem claro em que Soros tinha razão. Embora tenhamos tido a eleição de Lula, eram evidentes a ameaça de crise de grandes proporções e as restrições impostas ao governo que começaria pouco depois. Tais restrições já haviam marcado anteriormente o acesso de partidos ou lideranças de esquerda ao governo em vários países europeus, submetidos à necessidade de haver-se com a "economia da oferta". O consagrado estado de bem-estar era ele próprio submetido a "pressões irresistíveis" rumo à "austeridade permanente" (P. Pierson): apesar da resiliência do apoio popular que obtém e de variações não destituídas de importância no jogo político-partidário a respeito, a consideração decisiva estaria na necessidade de contenção fiscal e de governos austeros, cujo retraimento incentivasse o dinamismo dos negócios.
Naturalmente, os Estados Unidos eram, e continuam a ser, a grande referência de um liberalismo (ou um capitalismo "desorganizado") levado ao campo da proteção social, com impostos e gastos sociais do governo baixos por padrões internacionais, programas de transferência de renda de cobertura reduzida e vinculados a condições restritivas (em especial "income-tested", com o empenho, de acordo com o velho tema conservador, de não premiar os "undeserving poor", ou a vagabundagem dos pobres), etc. De todo modo, anos antes da declaração de Soros, em "O Futuro do Capitalismo" (1996), Lester Thurow, entre outros, atento em particular à financeirização como correlato crucial do sistema econômico de hegemonia estadunidense, sustentava que a indagação decisiva quanto à ocorrência de uma crise ("mexicana") de devastador impacto mundial não seria a de se viria a acontecer, mas apenas a de quando aconteceria.
Não sabemos ainda se a crise que agora abala a economia dos Estados Unidos e se esparrama pelo mundo chegará a ser realmente devastadora. Mal acaba de ser divulgada, no momento em que escrevo, a corroboração pela Câmara dos Deputados da decisão a respeito do pacote de medidas de resgate aprovado há dias pelo Senado do país. As incertezas que subsistem, porém, não fazem senão aumentar o interesse de vários aspectos do complexo experimento que lá se desenvolve, alguns dos quais podem ser relacionados, com significado positivo ou negativo, às evocações acima.
Assim, destaque-se primeiro a ironia envolvida na idéia da austeridade exigida do Estado quando se observa, na raiz da crise, a perfídia do comportamento dos agentes privados no jogo em que entra o Estado "austero". Fica evidente o caráter de ideologia barata do liberalismo extremado que se tornou afirmativamente dominante no país, erigindo pedestais a um Ronald Reagan e assemelhados.
Há, de outro lado, o contraste das relações entre o processo eleitoral e os mercados nos EUA de agora com as que levaram, no Brasil de 2002, à manifestação de Soros. Se aqui vimos os mercados constrangerem o processo político-eleitoral, lá, onde se trata da sede por excelência dos mercados que deveríamos aplacar, segundo Soros, podemos ver agora, em medida não desprezível, o inverso. Não obstante, naturalmente, o peso decisivo de Wall Street e o fato de que o resgate se imponha em nome do próprio interesse público, o jogo eleitoral está longe de ser irrelevante, como se mostra de forma preliminar nas vicissitudes por que passou no Congresso o plano de Paulson e Bernanke. Mas há algo de muito mais importante aí, a saber, que a crise leve a que a discussão do tema da necessidade de regulação dos mercados ganhe saliência na disputa da Presidência do país. E que, igualmente em decorrência de tratar-se do centro hegemônico do capitalismo mundial e de um Estado de peso correspondente, a resposta que se venha a ter para as questões envolvidas certamente acarrete consequências para a dinâmica transnacional - e quem sabe para passos significativos rumo à verdadeira "reinvenção do governo", a regulação e a governança efetivas no plano transnacional em que passaram crescentemente a operar os mercados.
Finalmente, cabe registrar o fato de que as políticas de George W. Bush, extremando o ideário que se afirmava há tempos com o predomínio Republicano, tenham permitido ao Partido Democrata, através de lideranças como Hillary Clinton e Barack Obama, denunciar com força as precariedades do "welfare state" estadunidense. E que a isso se tenha somado um aspecto que, mesmo se surge como fortuito do ponto de vista da face mais dramática da crise de agora e de suas causas, seguramente se liga ao que tem havido de mais positivo na dinâmica da democracia do país, isto é, o gradual avanço do vigoroso componente pluralista de sua tradição perante traços como a herança racista e o etos de fundamentalismo religioso e militarista. Refiro-me ao aparecimento da figura singular de Barack Obama para vocalizar e personificar a mensagem de mudança. Oxalá não haja razões para acreditar que as concessões acarretadas por certo realismo eleitoral possam levar a que se comprometam, no caso da vitória que parece anunciar-se, as esperanças em torno da neutralização dos desdobramentos nefastos do ingrediente assimétrico e "imperalista" da globalização e do renovado papel mundial dos Estados Unidos de rosto moreno com que nos vamos acostumando.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
A Constituição e algumas considerações
Wilson Figueiredo
A Constituição fez 20 anos ontem, à feição sem compromisso de Mamãe faz cem anos, de Carlos Saura, sem ninguém se lembrar de que, ao olho estrábico da História, o material é de boa qualidade. Só faltou a cena inicial com Ulisses Guimarães descendo numa cadeirinha em plena solenidade. A monarquia por aqui se sustentou com apenas uma constituição, embora outorgada, durante 66 anos que não foram fáceis. A República soma 4 constituições nascidas de assembléias constituintes, respectivamente em 1891, 1934, 1946 e 1988, sem prejuízo da que bancou, em 1937, o Estado Novo. Foram 8 anos de ditadura, sem liberdade de imprensa, sem Congresso e sem eleição (e com prisões abarrotadas de presos políticos). A estatística não secou: os Atos Institucionais, do primeiro ao quinto, caíram pela falta de legitimidade e de opinião pública.
Começou bem a Constituinte de 1986/88, embora pudesse também acabar mal aquele festival de amadorismo. A Constituição fez 20 anos vergada ao saldo de 62 emendas que a poliram. O temor se limitou ao fato de se ouvir e ler que deputados e senadores estavam “escrevendo a Constituição”. Constituições são aprovadas com responsabilidade política.
Escrevem-se carta, livro, bilhete. É pouco para a responsabilidade do mandato eletivo. Em plena batalha, o presidente José Sarney arriscou a profecia de arrepiar os cabelos ao advertir para o risco de ingovernabilidade, enrolada como uma serpente no meio de tantas emendas. Contaram-se 492 alterações no ante-projeto original, pela carência de segurança institucional, e não mais a do Estado com medo da cidadania. Tratava-se de dar à nova constituição fundações flexíveis como nos edifícios altos em países onde a terra treme por princípio geológico.Dos 250 artigos iniciais, 117 passaram por alguma alteração. A criatividade parlamentar gerou 65.809 emendas às Disposições Transitórias, porque a vida política estava atrasada e todos tinham pressa.
O presidente (da Constituinte) Ulysses Guimarães sacou a frase : “A Constituinte passará mas os constituintes sobreviverão à sombra do Bosque dos Constituintes” (cada árvore, um nome). Sorte nossa, que o bosque se foi, muitos constituintes também, mas a Constituição está aí. É a segunda em longevidade relativa, logo depois da republicana de 1891. Já deixou para trás a de 1934 e a de 1946. Na véspera da promulgação, o PT notificou a quem interessasse que seus constituintes se recusavam a comparecer e assinar o novo texto pelas razões de sempre: uma constituição burguesa não merece o aval de esquerdistas que se prezam. Mas, depois de ponderações e panos quentes, todos assinaram (discretamente). O petismo deu ali o primeiro sinal de que não seria o mesmo. A carta de Lula aos brasileiros, em 2002, abriu-lhe o acesso ao poder burguês, onde, aliás, todos se dão muito bem, obrigado.
O ponto nevrálgico na elaboração da nossa lei das leis foi o corte das asas do Executivo, dada a incompatibilidade óbvia entre ele e o Legislativo, pela insistência em invadir a margem normativa onde operam os eleitos para cuidar das leis.Antes de um impasse funcional entre os dois Poderes, a questão se resolveu com as Medidas Provisórias, de inspiração parlamentarista e intenção oculta à espera de oportunidade. O debate premiou o presidencialismo e o núcleo de conflitos futuros ficou para ser resolvido noutra oportunidade.
Sarney alertou para a crise de ingovernabilidade esboçada por um parlamentarismo que não ousava dizer o seu nome. Para se fazer uma idéia, um constituinte (que veio a ser ministro do Supremo, parlamentar e figura de destaque no ministério) confessou ter inserido na Constituição um artigo que não passou sequer pela Comissão Constitucional. Da Constituinte ficou também a denúncia, bancada por Luiz Inácio da Silva, de 300 picaretas que tumultuaram os trabalhos com escavações do interesse público em proveito pessoal. Lula renunciou à oportunidade de propor uma CPI, antes ou depois de dar por encerrado o primeiro mandato e desistir de ser legislador.
O Brasil recomeçava pela aparência nova, sem repelir o assédio do velho aos costumes e às constituições. Na medida do tempo com que a História trabalha, estes vinte anos que se celebram contam, mas são insuficientes. No meio do caminho da democracia brasileira há uma pedra a ser removida. Que saia, nem que seja aos pedaços.
Uma história da Europa
Eric Hobsbawm
DEU NA FOLHA DE S. PAULO (+Mais!)
É absurda a presunção de unidade quando se fala em Europa, porque é precisamente a divisão que caracteriza a história do continente
Mesmo para os europeus que levam hoje uma vida realmente transnacional, a identificação primeira ainda é nacional
Como o Deus da Bíblia no momento da criação, o cartógrafo é obrigado a dar nomes àquilo que descreve; conseqüentemente, a toponímia, construção humana, é carregada de motivações humanas. Por que classificar como "continente" o conjunto de penínsulas, montanhas e planícies situadas na extremidade ocidental do grande continente euro-asiático?
No século 18, um historiador e geógrafo russo, V.N. Tatichtchev, traçou a linha divisória entre Europa e Ásia que todos nós conhecemos: dos Urais ao mar Cáspio e ao Cáucaso. Para banir o estereótipo de uma Rússia "asiática" -logo, atrasada- era preciso destacar seu pertencimento à Europa.
Os continentes são tanto -ou mais?- construções históricas quanto entidades geográficas. A Europa cartográfica é uma construção moderna. Foi apenas no século 17 que ela saiu do limbo. A idéia atual de uma União Européia (UE) é ainda mais jovem, e os projetos práticos para sua unificação só nasceram no século 20, filhos das guerras mundiais. Países antes hostis se uniram para formar uma zona de paz, avalista dos interesses comuns.
Trata-se de uma Europa historicamente jovem. A Europa ideológica, porém, é bem mais antiga. É a Europa, terra da civilização, versus a não-Europa dos bárbaros. A Europa como metáfora de exclusão existe desde Heródoto. Sempre existiu. É uma região de dimensões variáveis, definida pela fronteira (étnica, social, cultural e geográfica) com as regiões do "Outro", freqüentemente situadas na "Ásia", às vezes "África".
A etiqueta "Ásia" como sinônimo de um "outro" que reúne a ameaça e a inferioridade foi colada nas costas da Rússia desde sempre. Da política aos mitos é apenas um passo. O mito europeu por excelência é o da identidade primordial.
O que temos em comum é essencial; o que nos diferencia é secundário ou insignificante. Ocorre que a presunção de unidade, em se tratando da Europa, é ainda mais absurda pelo fato de que é precisamente a divisão que caracteriza sua história. Uma história da Europa é impensável antes do fim do Império Romano Ocidental e mesmo antes da ruptura permanente entre as duas margens do Mediterrâneo, que se seguiu à conquista muçulmana do norte da África.
Os gregos da Antigüidade se situavam numa civilização tricontinental, que engloba o Oriente Médio, o Egito e um setor modesto da Europa mediterrânea oriental.
Nos séculos 4º e 3º a.C., a iniciativa militar e política passou às margens do setor europeu desse espaço. Alexandre, o Grande, criou um império efêmero que se estendia do Egito ao Afeganistão. A República romana construiu um império mais durável entre a Síria e o estreito de Gibraltar.
DEU NA FOLHA DE S. PAULO (+Mais!)
É absurda a presunção de unidade quando se fala em Europa, porque é precisamente a divisão que caracteriza a história do continente
Mesmo para os europeus que levam hoje uma vida realmente transnacional, a identificação primeira ainda é nacional
Como o Deus da Bíblia no momento da criação, o cartógrafo é obrigado a dar nomes àquilo que descreve; conseqüentemente, a toponímia, construção humana, é carregada de motivações humanas. Por que classificar como "continente" o conjunto de penínsulas, montanhas e planícies situadas na extremidade ocidental do grande continente euro-asiático?
No século 18, um historiador e geógrafo russo, V.N. Tatichtchev, traçou a linha divisória entre Europa e Ásia que todos nós conhecemos: dos Urais ao mar Cáspio e ao Cáucaso. Para banir o estereótipo de uma Rússia "asiática" -logo, atrasada- era preciso destacar seu pertencimento à Europa.
Os continentes são tanto -ou mais?- construções históricas quanto entidades geográficas. A Europa cartográfica é uma construção moderna. Foi apenas no século 17 que ela saiu do limbo. A idéia atual de uma União Européia (UE) é ainda mais jovem, e os projetos práticos para sua unificação só nasceram no século 20, filhos das guerras mundiais. Países antes hostis se uniram para formar uma zona de paz, avalista dos interesses comuns.
Trata-se de uma Europa historicamente jovem. A Europa ideológica, porém, é bem mais antiga. É a Europa, terra da civilização, versus a não-Europa dos bárbaros. A Europa como metáfora de exclusão existe desde Heródoto. Sempre existiu. É uma região de dimensões variáveis, definida pela fronteira (étnica, social, cultural e geográfica) com as regiões do "Outro", freqüentemente situadas na "Ásia", às vezes "África".
A etiqueta "Ásia" como sinônimo de um "outro" que reúne a ameaça e a inferioridade foi colada nas costas da Rússia desde sempre. Da política aos mitos é apenas um passo. O mito europeu por excelência é o da identidade primordial.
O que temos em comum é essencial; o que nos diferencia é secundário ou insignificante. Ocorre que a presunção de unidade, em se tratando da Europa, é ainda mais absurda pelo fato de que é precisamente a divisão que caracteriza sua história. Uma história da Europa é impensável antes do fim do Império Romano Ocidental e mesmo antes da ruptura permanente entre as duas margens do Mediterrâneo, que se seguiu à conquista muçulmana do norte da África.
Os gregos da Antigüidade se situavam numa civilização tricontinental, que engloba o Oriente Médio, o Egito e um setor modesto da Europa mediterrânea oriental.
Nos séculos 4º e 3º a.C., a iniciativa militar e política passou às margens do setor europeu desse espaço. Alexandre, o Grande, criou um império efêmero que se estendia do Egito ao Afeganistão. A República romana construiu um império mais durável entre a Síria e o estreito de Gibraltar.
Terra fragmentada
O Império Romano nunca conseguiu estabelecer-se solidamente além do Reno e do Danúbio. Roma foi um império pan-mediterrâneo, mais que europeu, e o que conta para o destino da Europa não é o império que triunfa, mas o império que desaparece. A história da Europa pós-romana é a história de um continente fragmentado, presa constante de invasores.
Hunos, abares, magiares, tártaros, mongóis e pequenas tribos turcas chegam do leste, os vikings, do norte, os conquistadores muçulmanos, do sul. Essa época só termina em 1683, quando os turcos são derrotados às portas de Viena. Afirmou-se que a Europa descobriu sua identidade ao longo dessa luta milenar.
É um anacronismo. Nenhuma resistência coletiva ou coordenada, mesmo em nome do cristianismo, cimentou o continente e a unidade cristã desaparecidos no meio da época das invasões. Desde então, houve uma Europa católica e outra ortodoxa. Entre a queda de Bizâncio em 1453 e o cerco de Viena de 1683, os últimos conquistadores vindos do Oriente, os turcos otomanos, ocupam todo o sudeste europeu. Mas outra parte da Europa já iniciou uma época de conquistadores.
Eles descobrem não apenas as Américas, mas a Europa, pois é em contraposição aos povos indígenas do Novo Mundo que espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses, franceses e italianos, que se precipitam sobre as Américas, vão reconhecer seu caráter europeu. Eles têm a pele branca, impossível de confundir com a dos "índios". Nasce uma diferenciação racial que, nos séculos 19 e 20, se converterá na certeza de que os brancos detêm o monopólio da civilização. Mesmo assim, a palavra "Europa" ainda não faz parte do discurso político -para isso é preciso esperar o século 17.
O nome remete ao jogo militar e político dominado pela França, o Reino Unido, o império dos Habsburgos e a Rússia, a que vem se juntar mais tarde uma quinta "grande potência", a Prússia -transformada em Alemanha unida. Mas foram também as transformações da paisagem política que, no século 17, tornaram possível o nascimento dessa Europa consciente dela mesma. A Paz de Westfália, que pôs fim à Guerra dos 30 Anos, trouxe duas inovações políticas. Daquele momento em diante, não houve mais Estados territoriais que não fossem soberanos, e esses Estados passaram a não reconhecer nenhuma obrigação superior a seus interesses, definidos segundo os critérios da "razão de Estado" -uma racionalidade política e laica. É o universo político que habitamos hoje.
Duas outras europas se afirmam. A primeira é a da república das letras que toma corpo a partir do século 17. Para os que compõem essa república -ou seja, as algumas centenas ou, no século 18, alguns milhares de pessoas que se comunicam em latim, depois em francês, a Europa existe.
Quanto à última Europa, trata-se da comunidade cosmopolita dotada dos valores universais da cultura do século 18, que se amplia após a Revolução Francesa. No decorrer do século 19, a Europa se torna viveiro de um conjunto de instituições educativas e culturais e de todas as ideologias do mundo contemporâneo.
Esse sobrevôo da história da identidade européia nos permite identificar o anacronismo cometido quando se procura um conjunto coerente de supostos "valores europeus". É ilegítimo supor que os "valores" nos quais se inspiram hoje a democracia liberal e a União Européia tenham sido uma corrente subjacente à história de nosso continente. Os valores que fundaram os Estados modernos antes da era das revoluções foram os das monarquias absolutas e mono-ideológicas. Os valores que dominaram a história da Europa no século 20 -nacionalismos, fascismos, marxismos-leninismos- são de origem tão puramente européia quanto o liberalismo e o "laissez-faire".
Inversamente, outras civilizações praticaram certos valores ditos "europeus" antes da Europa: o império chinês e o império otomano praticaram a tolerância religiosa -para a sorte dos judeus expulsos pela Espanha. Foi apenas no final do século 20 que as instituições e os valores em questão se difundiram por toda a Europa, pelo menos teoricamente.
Os "valores europeus" são uma palavra de ordem da segunda metade do século 20. De 1492 a 1914, a Europa esteve no coração da história do mundo. Primeiro por sua conquista do Hemisfério Ocidental do globo e, de maneira mais ampla, a partir de 1750, por sua superioridade militar, marítima, econômica e tecnológica. O "momento" europeu da história mundial se encerra com a Segunda Guerra, embora ainda nos beneficiemos do rico legado econômico e, em menor medida, intelectual e cultural dessa supremacia perdida.
A hegemonia dessa região levanta problemas que continuam a dividir os historiadores. Lembremos apenas que, depois da queda de Roma, a Europa não conheceu nenhum outro quadro de autoridade comum nem qualquer outro centro de gravidade permanente.
O Império Romano nunca conseguiu estabelecer-se solidamente além do Reno e do Danúbio. Roma foi um império pan-mediterrâneo, mais que europeu, e o que conta para o destino da Europa não é o império que triunfa, mas o império que desaparece. A história da Europa pós-romana é a história de um continente fragmentado, presa constante de invasores.
Hunos, abares, magiares, tártaros, mongóis e pequenas tribos turcas chegam do leste, os vikings, do norte, os conquistadores muçulmanos, do sul. Essa época só termina em 1683, quando os turcos são derrotados às portas de Viena. Afirmou-se que a Europa descobriu sua identidade ao longo dessa luta milenar.
É um anacronismo. Nenhuma resistência coletiva ou coordenada, mesmo em nome do cristianismo, cimentou o continente e a unidade cristã desaparecidos no meio da época das invasões. Desde então, houve uma Europa católica e outra ortodoxa. Entre a queda de Bizâncio em 1453 e o cerco de Viena de 1683, os últimos conquistadores vindos do Oriente, os turcos otomanos, ocupam todo o sudeste europeu. Mas outra parte da Europa já iniciou uma época de conquistadores.
Eles descobrem não apenas as Américas, mas a Europa, pois é em contraposição aos povos indígenas do Novo Mundo que espanhóis, portugueses, ingleses, holandeses, franceses e italianos, que se precipitam sobre as Américas, vão reconhecer seu caráter europeu. Eles têm a pele branca, impossível de confundir com a dos "índios". Nasce uma diferenciação racial que, nos séculos 19 e 20, se converterá na certeza de que os brancos detêm o monopólio da civilização. Mesmo assim, a palavra "Europa" ainda não faz parte do discurso político -para isso é preciso esperar o século 17.
O nome remete ao jogo militar e político dominado pela França, o Reino Unido, o império dos Habsburgos e a Rússia, a que vem se juntar mais tarde uma quinta "grande potência", a Prússia -transformada em Alemanha unida. Mas foram também as transformações da paisagem política que, no século 17, tornaram possível o nascimento dessa Europa consciente dela mesma. A Paz de Westfália, que pôs fim à Guerra dos 30 Anos, trouxe duas inovações políticas. Daquele momento em diante, não houve mais Estados territoriais que não fossem soberanos, e esses Estados passaram a não reconhecer nenhuma obrigação superior a seus interesses, definidos segundo os critérios da "razão de Estado" -uma racionalidade política e laica. É o universo político que habitamos hoje.
Duas outras europas se afirmam. A primeira é a da república das letras que toma corpo a partir do século 17. Para os que compõem essa república -ou seja, as algumas centenas ou, no século 18, alguns milhares de pessoas que se comunicam em latim, depois em francês, a Europa existe.
Quanto à última Europa, trata-se da comunidade cosmopolita dotada dos valores universais da cultura do século 18, que se amplia após a Revolução Francesa. No decorrer do século 19, a Europa se torna viveiro de um conjunto de instituições educativas e culturais e de todas as ideologias do mundo contemporâneo.
Esse sobrevôo da história da identidade européia nos permite identificar o anacronismo cometido quando se procura um conjunto coerente de supostos "valores europeus". É ilegítimo supor que os "valores" nos quais se inspiram hoje a democracia liberal e a União Européia tenham sido uma corrente subjacente à história de nosso continente. Os valores que fundaram os Estados modernos antes da era das revoluções foram os das monarquias absolutas e mono-ideológicas. Os valores que dominaram a história da Europa no século 20 -nacionalismos, fascismos, marxismos-leninismos- são de origem tão puramente européia quanto o liberalismo e o "laissez-faire".
Inversamente, outras civilizações praticaram certos valores ditos "europeus" antes da Europa: o império chinês e o império otomano praticaram a tolerância religiosa -para a sorte dos judeus expulsos pela Espanha. Foi apenas no final do século 20 que as instituições e os valores em questão se difundiram por toda a Europa, pelo menos teoricamente.
Os "valores europeus" são uma palavra de ordem da segunda metade do século 20. De 1492 a 1914, a Europa esteve no coração da história do mundo. Primeiro por sua conquista do Hemisfério Ocidental do globo e, de maneira mais ampla, a partir de 1750, por sua superioridade militar, marítima, econômica e tecnológica. O "momento" europeu da história mundial se encerra com a Segunda Guerra, embora ainda nos beneficiemos do rico legado econômico e, em menor medida, intelectual e cultural dessa supremacia perdida.
A hegemonia dessa região levanta problemas que continuam a dividir os historiadores. Lembremos apenas que, depois da queda de Roma, a Europa não conheceu nenhum outro quadro de autoridade comum nem qualquer outro centro de gravidade permanente.
Continente das guerras
Mas essa heterogeneidade do continente oculta uma divisão de funções entre dois centros dinâmicos sucessivos e suas periferias. O primeiro foi o Mediterrâneo ocidental, lugar de contato com as civilizações do Oriente Médio e distante, lugar da civilização urbana e da sobrevivência do legado romano.
Mas, entre 1000 e 1300, uma zona cada vez mais orientada ao Atlântico foi tomando a dianteira como eixo central da evolução urbana, comercial e cultural do continente.
O grande desenvolvimento da Europa teria sido difícil sem a contribuição das "periferias" exportadoras de matérias-primas. O desnível entre essas zonas, cujas estruturas sociais divergem em razão da divisão de trabalho e de suas experiências históricas, foi profundo.
Ainda temos consciência da linha de fratura que existe, embora tenha diminuído, entre as duas europas, como entre Itália do norte e Itália do sul ou entre Catalunha e Castela. No século 19, uma elite restrita conseguiu superar essas divisões, enquanto a massa dos europeus continuava a viver no universo oral dos dialetos locais.
O progresso das línguas do Estado perpetuou essa pluralidade agrária, que perdurou com a chegada dos Estados nacionais: a partir daí, o cidadão se identifica com uma "pátria" contra outras. A Europa das nações tornou-se o continente das guerras.
E, se a Europa, hoje, não saiu totalmente dessa configuração, esses anos que se passaram não deixaram de ser uma época de convergências impressionantes, com a harmonização institucional e jurídica ou a redução das desigualdades internacionais -econômicas e sociais-, graças aos notáveis "saltos à frente" dados por países como Espanha, Irlanda ou Finlândia. As revoluções em transportes e comunicações facilitaram a homogeneização cultural, que avança com a explosão da educação secundária e da universitária e com a difusão, especialmente entre os jovens, de um modo de vida e de consumo de origem transatlântica.
No mundo da cultura, entre as classes instruídas e abastadas, é a herança européia que se globalizou. Desde o desaparecimento dos regimes autoritários e o fim dos regimes comunistas, as divisões político-ideológicas da Europa desapareceram, embora as sobrevivências da Guerra Fria ainda lancem abismos entre a Rússia e seus vizinhos. Mas um paradoxo se faz notar: apesar desse processo de homogeneização, os europeus não se identificam com seu continente. Mesmo para aqueles que levam uma vida realmente transnacional, a identificação primeira ainda é nacional.
A Europa está mais presente na vida prática dos europeus que em sua vida afetiva. Apesar de tudo, porém, ela conseguiu encontrar um lugar permanente no mundo, como coletividade -permanente, mas incompleta, enquanto a Rússia não encontrar seu lugar em seu seio.
ERIC HOBSBAWM (1917) é historiador inglês e professor emérito da Universidade de Londres, autor de "A Era dos Impérios" (Paz e Terra). A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".Tradução de Clara Allain .
Mas essa heterogeneidade do continente oculta uma divisão de funções entre dois centros dinâmicos sucessivos e suas periferias. O primeiro foi o Mediterrâneo ocidental, lugar de contato com as civilizações do Oriente Médio e distante, lugar da civilização urbana e da sobrevivência do legado romano.
Mas, entre 1000 e 1300, uma zona cada vez mais orientada ao Atlântico foi tomando a dianteira como eixo central da evolução urbana, comercial e cultural do continente.
O grande desenvolvimento da Europa teria sido difícil sem a contribuição das "periferias" exportadoras de matérias-primas. O desnível entre essas zonas, cujas estruturas sociais divergem em razão da divisão de trabalho e de suas experiências históricas, foi profundo.
Ainda temos consciência da linha de fratura que existe, embora tenha diminuído, entre as duas europas, como entre Itália do norte e Itália do sul ou entre Catalunha e Castela. No século 19, uma elite restrita conseguiu superar essas divisões, enquanto a massa dos europeus continuava a viver no universo oral dos dialetos locais.
O progresso das línguas do Estado perpetuou essa pluralidade agrária, que perdurou com a chegada dos Estados nacionais: a partir daí, o cidadão se identifica com uma "pátria" contra outras. A Europa das nações tornou-se o continente das guerras.
E, se a Europa, hoje, não saiu totalmente dessa configuração, esses anos que se passaram não deixaram de ser uma época de convergências impressionantes, com a harmonização institucional e jurídica ou a redução das desigualdades internacionais -econômicas e sociais-, graças aos notáveis "saltos à frente" dados por países como Espanha, Irlanda ou Finlândia. As revoluções em transportes e comunicações facilitaram a homogeneização cultural, que avança com a explosão da educação secundária e da universitária e com a difusão, especialmente entre os jovens, de um modo de vida e de consumo de origem transatlântica.
No mundo da cultura, entre as classes instruídas e abastadas, é a herança européia que se globalizou. Desde o desaparecimento dos regimes autoritários e o fim dos regimes comunistas, as divisões político-ideológicas da Europa desapareceram, embora as sobrevivências da Guerra Fria ainda lancem abismos entre a Rússia e seus vizinhos. Mas um paradoxo se faz notar: apesar desse processo de homogeneização, os europeus não se identificam com seu continente. Mesmo para aqueles que levam uma vida realmente transnacional, a identificação primeira ainda é nacional.
A Europa está mais presente na vida prática dos europeus que em sua vida afetiva. Apesar de tudo, porém, ela conseguiu encontrar um lugar permanente no mundo, como coletividade -permanente, mas incompleta, enquanto a Rússia não encontrar seu lugar em seu seio.
ERIC HOBSBAWM (1917) é historiador inglês e professor emérito da Universidade de Londres, autor de "A Era dos Impérios" (Paz e Terra). A íntegra deste texto saiu no "Le Monde".Tradução de Clara Allain .
O que pensa a mídia
Editoriais dos principais jornais do Brasil
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1109&portal=
http://www.pps.org.br/sistema_clipping/mostra_opiniao.asp?id=1109&portal=
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