- O Estado de S. Paulo
As tentativas de desconstrução da candidatura de Marina da Silva é algo até certo ponto normal. Campanhas eleitorais têm sempre a função de mostrar diferenças entre os candidatos, comparar vícios, virtudes, desempenhos e propostas. O esforço é para os candidatos se apresentarem ao eleitor e, ao mesmo tempo, se distinguirem uns dos outros. Contudo, no caso da atual campanha é notório que quanto mais batem em Marina – algo que o PT e Dilma Rousseff estão fazendo de forma desonesta, intolerante e às vezes brutal – mais ela se consolida e cresce na opinião dos eleitores. Sem deixar de responder aos ataques, Marina rebate mostrando que, em realidade, os verdadeiros problemas estão do outro lado, quer dizer, do lado de quem se revela incapaz de reconhecer erros e apontar caminhos confiáveis para o país, como Dilma.
A nova pesquisa do IBOPE consolidou o crescimento de Marina. Os resultados confirmam a possibilidade de ela vencer as eleições, senão no primeiro, no segundo turno. Isso tem várias implicações, mas a primeira, embora não seja a mais importante, indica que a tradicional polarização PT X PSDB pode ter perdido sentido para os eleitores – ao menos nessas eleições – e que, para além dessas alternativas, o cenário político brasileiro conta com um novo polo, aquele que associa a posição de uma esquerda moderada, comprometida com a estabilidade econômica e com o aprofundamento das políticas sociais, às teses do desenvolvimento sustentável. Não é pouca coisa, isso coloca os eleitores brasileiros, e toda a sociedade, em face de uma nova leitura dos principais desafios estratégicos enfrentados pelo país na atual conjuntura nacional e internacional.
O fato é que, depois do acidente que vitimou Eduardo Campos, a campanha presidencial foi invadida por um novo fenômeno político. Esse fenômeno, representado ou vocalizado por Marina Silva, diz respeito ao mal estar que acomete a democracia brasileira há anos e que desde junho do ano passado passou a ocupar as ruas das principais cidades do país. O mal estar tem dois lados: por uma parte, diz respeito à frustração com o governo do PT, incapaz de manter o crescimento econômico, a modernização social e a melhoria dos costumes e métodos políticos, aí incluídas a eficiência e a competência da gestão de políticas de segurança, educação e saúde públicas. Por outra, se refere à crise da representação e, em especial, ao sentimento de amplos segmentos sociais de que, para além da corrupção que atinge todas as esferas da vida pública, seus interesses e problemas não são levados na devida consideração pelos partidos políticos e pelo Congresso Nacional. Isso pode ser devido a déficits de informação e de cognição, mas as taxas de desconfiança quanto aos partidos e o parlamento são muito altas e crescentes no país, colocando em questão a legitimidade dessas instituições – algo que as pesquisas que tenho conduzido nas últimas décadas comprovaram.
Um dos aspectos mais interessantes – e paradoxais – dessa situação é que o mal estar da política está sendo canalizado por um movimento que é quase um outsider do sistema político brasileiro. Marina, embora tendo o PSB como coadjuvante, não tem, contudo, um partido próprio por trás de si; mas diferente de outras lideranças ou partidos políticos, ela tem sido capaz de dialogar com os protestos que deram voz às avaliações negativas da política e que galvanizam milhões de brasileiros. Como mostraram pesquisas recentes, mais de 70% de entrevistados declaram desejar mudanças na política, nos seus rumos e nos seus procedimentos; ou seja, como diria Norberto Bobbio, a questão não é apenas quem governa, mas como se governa. Até recentemente, no entanto, nenhum partido ou liderança política tinham sido capazes de se conectar com esse sentimento de frustração com os rumos da política, e menos ainda de oferecer uma saída construtiva para o impasse. As tentativas de Dilma Rousseff nesse sentido foram desastrosas, e Aécio, do PSDB, apesar de defender uma gestão moderna, até agora não disse nada de efetivo que o ligasse com os sentimentos de perda e frustração de milhões de eleitores com os rumos da política; andou bem em garantir a continuidade das políticas sociais, mas sobre o modo de fazer política, o papel dos partidos e o enfrentamento da corrupção – que também atingiu o seu partido – não disse sequer uma palavra; isso talvez explique porque, desde o início de agosto, ao invés de crescerem, seus índices de apoio eleitoral só fazem diminuir.
Isso remete a outro paradoxo da atual situação. Em certo sentido, o fenômeno que está assolando a campanha de 2014 é uma espécie de indicador da crise do sistema partidário brasileiro. O que isso quer dizer? Quer dizer que, em que pese o fato de os partidos continuarem atuando no Congresso Nacional – ou seja, na chamada arena decisória -, na hora de sinalizarem rumos para a sociedade padecem de sentido, perdem a eficácia ou emudecem; é sinal de um semi-colapso. Senão, como explicar que tanto o PT, depois de 12 anos na direção do Estado, e o PSDB, com sua experiência no governo federal e em vários governos estaduais importantes, não consigam reagrupar os seus apoiadores para continuarem ou voltarem ao governo? O que explica que não consigam mais mobilizar as suas bases tradicionais de apoio, nem serem capazes de motivar novos segmentos do eleitorado? Isso sem falar do PMDB que, apesar de sempre encontrar meios para se aliar a qualquer governo que se forme, demonstra pouca ou nenhuma vocação para influir na disputa pelo principal cargo majoritário do país.
A crise do sistema partidário pode ser vista por diversos ângulos, mas aqui importa chamar a atenção para a sua incapacidade de operar eficazmente na chamada arena societária, ou seja, para o significado que eles têm para a função de representação política da sociedade. A democracia representativa só funciona bem – e com qualidade – quando os partidos significam, para os eleitores, algo mais do que a simples luta pelo poder e sua permanência nele; em última análise, se não representarem atalhos adequados para as difíceis escolhas dos eleitores sobre as políticas públicas, isso significa que os cidadãos têm pouca ou nenhuma importância no funcionamento da democracia. O risco dos partidos que perdem conexão com a sociedade é de se transformarem em facções fechadas ou oligarquias desvinculadas dos interesses públicos e, assim, rebaixarem a qualidade da democracia.
Uma terceira observação sobre o quadro político também é necessária. Em certo sentido, o atual cenário eleitoral desenha outro paradoxo de difícil solução. Marina e a avalanche de apoios que está recebendo sinalizam claramente a necessidade e o desejo da sociedade por mudanças na política brasileira – e um estrategista do mundo dos negócios já disse que, por isso, talvez ela seja “o nosso Obama”, ou seja, a alternativa que defende, apesar de tudo, que “yes, we can”, isto é, que podemos mudar o nosso modo de fazer política e podemos melhorar a qualidade da nossa democracia. Isto, por um lado, tem a capacidade de sugerir a possibilidade de um novo começo, o que não é pouco em situações que envolvem a descrença e a desesperança de muitos. O problema, contudo, é que isso é insuficiente para assegurar que déficits e distorções institucionais e de comportamento que afetam a democracia brasileira serão enfrentados a partir de 2015.
Mudanças na governança e mesmo nas orientações quanto a políticas estratégicas – como a retomada do crescimento econômico e o aprofundamento das políticas sociais – sempre são possíveis se forem adotadas logo de partida e se o novo governo for capaz de negociar os apoios necessários à sua aprovação. Ao contrário dos ataques que tem recebido, Marina tem indicado que deseja adotar uma perspectiva ampla, capaz de convocar a participação dos melhores quadros de vários partidos.
Embora não vá ser uma negociação fácil, se vier a ocorrer, isso não é impossível, em especial, se a nova liderança política for capaz de conduzir os entendimentos em torno de objetivos claros, transparentes e que tenham amplo apoio da opinião pública. Riscos como os representados pela experiência Collor são menores agora porque todos aprenderam com as lições do passado, e Marina não parece ser alguém que repete erros de mais de 20 anos atrás, seus olhos estão voltados para frente.
Outra coisa, no entanto, é a efetiva concretização da chamada nova política. Por tudo que se viu nos debates – e nos protestos de 2013 -, isso não diz respeito apenas à necessária mudança de comportamento das lideranças. Claro, novas atitudes são indispensáveis e alguns aspectos ficaram evidentes no curso desta campanha: a necessidade de os líderes não mentirem e falarem claramente sobre os problemas do país, de reconhecerem seus erros e se responsabilizarem por eles, e de o país enfrentar – como lembrou Eduardo Jorge – os temas espinhosos que, permanecendo em silêncio, continuam a vitimizar milhares de pessoas: o aborto sem assistência, a realidade das prisões, a violência doméstica contra crianças e mulheres, os assassinatos e agressões contra homossexuais e outras minorias.
Uma nova política, no entanto, é muito mais do que isso, e deve envolver mudanças substanciais no funcionamento das instituições e no modo como as decisões relevantes são tomadas no país. Aqui entramos em um território diferente, que foi tocado apenas de leve nos debates, mesmo por Marina: diz respeito a como aumentar a participação dos cidadãos, a como dar-lhes mais poder na democracia e a como melhorar tanto as instituições de representação como a justiça. A pauta é ampla e complexa e não se resumem ao mero enunciado de que as decisões de políticas públicas devem ser submetidas a controle social. As propostas têm de responder às distorções do financiamento de campanhas eleitorais, à distância que existe entre representados e representantes, às necessárias mudanças no sistema de representação proporcional, à dificuldade de acesso à justiça pelas pessoas comuns, à assimetria das relações entre Executivo e Legislativo, e assim por diante – mas nada disso entrou, de fato, no debate dos candidatos.
Dilma Rousseff, embora tenha retomado a tese do plebiscito para fazer a reforma política, pouco disse sobre o conteúdo da reforma que proporia caso seja reeleita. Aécio, diferente dos demais, quase não se referiu à necessidade da reforma política, a não ser no que se refere ao fim do instituto da reeleição, e nem mesmo sobre o tema da corrupção indicou, por exemplo, como enfrentaria a questão da impunidade, caso eleito. Marina foi quem mais avançou no tema das mudanças, mas mesmo assim a sua defesa da nova política não é suficiente para esclarecer o impulso que ela daria à reforma das instituições democráticas. Além dos conselhos criados pela Constituição de 1988, dos referendos e plebiscitos, como melhorar a participação dos cidadãos e a sua representação política? Como aumentar a presença das mulheres e outros outsiders nos parlamentos? O voto distrital, majoritário ou misto, entrará na pauta? A cláusula de barreira para o funcionamento dos partidos será retomada?
E no caso dos partidos políticos, muitas vezes dominados por oligarquias, haverá alguma preocupação com a sua necessária democratização interna? O país deveria adotar o sistema de primárias para aumentar a influência dos eleitores nas disputas eleitorais?
Todas essas questões permanecem sem esclarecimento ou debate, na atual campanha eleitoral, apesar de que um de seus impulsos mais importantes esteja sendo, precisamente, a defesa da necessidade de o país fazer mudanças na vida política. Ainda há tempo para que esses paradoxos sejam enfrentados, mas não está inteiramente claro quem vai assumir, de fato, a missão de esclarecer melhor a sociedade sobre tudo isso e que liderará o país na direção das mudanças.
José Álvaro Moisés, cientista político e professor da USP