Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
domingo, 11 de outubro de 2020
Merval Pereira - De olho em 2022
Dorrit Harazim - O enterro de um mundo
O
perigo, agora, é que Trump passou a declarar sua intenção de moldar as regras
do poder democrático com vigor redobrado
O
dique foi rompido na sexta-feira, formalmente. Nancy Pelosi, a presidente da
Casa dos Representantes dos EUA e terceira na linha sucessória da Casa Branca,
encaminhou a criação de uma comissão bipartidária que terá 16 membros, com
função decisória sobre eventual incapacidade de futuros presidentes. A proposta
não tem chance nem tempo hábil para entrar em funcionamento ainda em 2020, mas
ela acata a pergunta que ronda a Casa Branca desde a eleição de 2016: Donald
Trump é, ou está, mentalmente são? O comportamento errático do 45º presidente
às vésperas do pleito mais neurastênico do país, somado à incógnita quanto a seu
real estado de saúde aditivado com medicamentos pesados, passou à emergência
nacional.
Com
uma agravante: a 25ª Emenda Constitucional que trata do tema não contém
qualquer regra para uma eventual incapacitação simultânea também do
vice-presidente. Considerando que Mike Pence, primeiro na linha sucessória,
esteve e continua ao alcance do surto de Covid-19 que infesta a Casa Branca, a
barafunda é grande. Segundo escreve Garrett Graff na última edição da revista
“Politico”, o maior pesadelo a rondar Washington é, justamente, um Pence também
afastado temporariamente pela Covid.
O
histórico da Vice-Presidência na construção política dos Estados Unidos é cheio
de sinuosidades. De início, o cargo nem sequer existia per se: os dois nomes mais votados
para presidente simplesmente ocupavam o 1º e 2º cargos, mesmo quando filiados a
partidos opostos. Imagine-se a confusão. Até meados do século XX, quando Dwight
Eisenhower ficou hospitalizado por sete semanas em 1955 no auge da Guerra Fria,
seu vice Richard Nixon não recebeu o aval do chefe para tomar as rédeas. Ele
tampouco pôde exercitar qualquer poder quando “Ike” foi submetido a uma
cirurgia estomacal, seguido de um derrame. O documento informal de quatro
páginas que Eisenhower entregou em mãos e em segredo a Nixon, já no último
quadrante do mandato, definindo as regras para o vice assumir, se necessário,
só se tornaria publico décadas mais tarde.
Foi
um arranjo extraconstitucional, sem registro nem processo formal, uma aberração
para aqueles tempos nucleares. Ainda assim, nos anos seguintes, também John
Kennedy e seu vice Lyndon Johnson trataram de eventual sucessão de maneira não
formal, com base na confiança.
Lourival Sant'Anna* - A vantagem de Biden
Pesquisas
eleitorais de 'The New York Times', CNN e Ipsos indicam candidato democrata à
frente em diferentes cenários
Mais
de 7 milhões de eleitores americanos já depositaram seu voto. Se a composição
do eleitorado que está votando até o dia 3 for parecida com a dos entrevistados
nas pesquisas de intenção de voto, Joe Biden terá vitória tão contundente no
colégio eleitoral que deixará pouca margem para contestação.
Os
institutos de pesquisas afirmam ter corrigido os erros cometidos em 2016. Eles
acertaram no resultado nacional, ao prever a vitória de Hillary Clinton, mas
erraram nos Estados, que definem a eleição dos delegados ao colégio eleitoral
proporcional à população de cada um.
A
divisão de estatísticas do New York Times calcula que, mesmo que as
pesquisas estaduais deste ano estejam tão distorcidas quanto em 2016, ainda
assim Biden obteria 319 cadeiras no colégio eleitoral, e Trump, 219. São
necessárias 270 para se eleger.
Considerando
apenas os Estados nos quais um candidato tem 3 pontos porcentuais de vantagem
sobre o outro, Biden teria 341 delegados e Trump, 125. De acordo com a CNN, os
Estados que estão solidamente no campo de Biden somam 203 cadeiras e aqueles
que se inclinam para ele são mais 87, totalizando 290. Trump tem 163.
Segundo
modelo matemático da revista The Economist, Biden teria 350 votos no
colégio eleitoral e Trump, 188. A chance de o candidato democrata vencer é de
92%, calcula a revista; a de o partido continuar com maioria na Câmara é de 99%
e a de conquistá-la no Senado, 70%.
Eliane Cantanhêde* - Zumbi internacional
Vitória
de Biden rompe a dupla 'Deus' e 'mito' e joga o Brasil no isolamento e no limbo
Contagem regressiva para as eleições americanas, em 3 de novembro, com o presidente Donald Trump dando sinais de desespero, perdendo o rumo, aprofundando a arrogância, incapaz de tirar do centro da pauta o seu maior calcanhar de Aquiles: a pandemia. Mais do que as pesquisas, é o próprio Trump quem sinaliza ao mundo que caminha para uma derrota histórica na maior potência do planeta.
Isso
deixa o Brasil, e diretamente o presidente Jair Bolsonaro, seus filhos e o
chanceler Ernesto Araújo, numa enrascada. Em seu artigo mais chocante, ou
delirante, intitulado “Trump e o Ocidente”, Araújo prega que o Ocidente está em
perigo e depende de Deus. Em seguida, nomeia: “só Trump pode ainda salvar o
Ocidente”. Trump é Deus. Logo, coitado do Ocidente, estará perdido sem Trump.
São visões confusas, que põem o Brasil numa situação difícil com a perspectiva de um governo democrata, com Joe Biden e Kamala Harris. Onde esconder os textos de Araújo? O boné “Trump 2020” do ex-quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro? A subserviência de Jair Bolsonaro a Trump?
Resta
a eles orar para o “Deus” Trump conseguir um milagre e repetir 2016: perder no
voto popular, mas vencer no colégio eleitoral. Não é o que as pesquisas
indicam, pois Trump perde não só em Estados-pêndulos, que historicamente podem
ir para um lado ou outro, mas até em bases republicanas. Eleição não se ganha
ou perde de véspera e Trump surpreendeu em 2016, tem estratégia e truques
diabólicos – inclusive massificar que Joe Biden, de 77 anos, está senil,
desorientado. Logo, nunca é demais botar um pé atrás, mas tudo aponta a vitória
democrata.
Vera Magalhães - A construção de bunkers
Como Bolsonaro minou o combate à corrupção para proteger a família
Bastou
se aproximar do Centrão, da ala fisiológica do MDB e dos ministros
antilavajatistas do Supremo Tribunal Federal que Jair Bolsonaro, logo quem,
passou a ser visto por setores da política (os mesmos acima, diga-se) e até da
imprensa como alguém imbuído da disposição de construir pontes.
Trata-se
de uma leitura entre cínica e ingênua de uma realidade bastante clara aos olhos
de quem quiser ver. Bolsonaro continua onde sempre esteve: avesso à ideia de
qualquer composição a não ser as de ocasião, que lhe permitam lograr seus
intentos na política e proteger a si e aos filhos da perigosa aproximação das
garras da lei quando esticaram demais a corda da ruptura institucional e/ou
foram com sede ao pote demais nos recursos públicos a que tiveram acesso nas
suas longas carreiras políticas dotadas de todos os vícios de um clã
tradicional brasileiro.
Eduardo
Bolsonaro, o “03”, conhecido por ser dos menos brilhantes da família, deixou
claro o jogo nas redes sociais, com direito a erro de português: “Não é
arrependimento, é espertise (sic) de mudar de estratégia pois o plano original
fracassou”.
Não
precisa desenhar. O plano original era fazer as instituições se curvarem diante
de uma tropa golpista, “antiestablishment”, como adorava se gabar o “estrategista”
Filipe G. Martins. A pandemia foi o gatilho para colocar o plano original em
marcha, com direito a uso de terroristas como Sara Winter, que agora se diz
decepcionada, e seus 30 gatos-pingados.
O
fracasso constatado pelo ex-quase-embaixador veio do próprio STF, que colocou
freio aos delírios autoritários de Bolsonaro.
Bernardo Mello Franco - Delírios amazônicos
- O Globo
A
placa descerrada na cerimônia anunciava o início de uma “arrancada histórica”.
De terno e gravata na selva, o presidente Emilio Garrastazu Medici se empolgou
ao testemunhar a derrubada de uma árvore de 50 metros de altura. A queda da
castanheira foi “aplaudida entusiasticamente” pelo general, relatou o enviado
especial do GLOBO.
Medici
havia pousado em Altamira para inaugurar a construção da Transamazônica, que se
estenderia por mais de cinco mil quilômetros, cortando sete estados. A visita
completou 50 anos na sexta-feira, mas a rodovia nunca ficou pronta. Alguns
trechos foram engolidos pela floresta, outros jamais saíram do papel.
A
obra faraônica fazia parte do Programa de Integração Nacional, lançado em 1970.
A ditadura embalou o plano com o lema “Integrar para não entregar”. Nas
palavras de Medici, era preciso “colonizar” a região para combater o “interesse
estrangeiro”. O general prometia tirar o “relógio amazônico” do passado. Sua
visão de futuro se resumia a fumaça, asfalto e motosserra.
A
pretexto de povoar a Amazônia, os militares promoveram a exploração predatória da
floresta. A ditadura estimulou a derrubada da mata para a criação de gado e o
cultivo de soja. Garimpeiros e madeireiros também receberam subsídio para
desmatar. Tudo em nome da “soberania nacional”.
Janio de Freitas – ‘Somos todos Ustra’
Declaração de Mourão presta um serviço ao esclarecer como o Exército pensa
Os
generais Hamilton Mourão e Eduardo Pazuello, vice de Bolsonaro e ministro da
Saúde, prestaram serviço muito apropriado à sociedade em geral, e à imprensa em
particular, com suas mais recentes revelações.
Ao
mesmo tempo pessoais e funcionais, as palavras de ambos despencam, talvez
inadvertidas, sobre a assimilação de Bolsonaro e do bolsonarismo pelos meios de
comunicação, outros setores antes eriçados como os atores e escritores, e
muitas eminências, a ponto de no recuo a ombudsman da Folha, Flavia Lima, apontar
também “amarelamento”.
A
intervenção do vice consistiu em repentino elogio
ao coronel Brilhante Ustra,
que passou das masmorras da ditadura para a memória nacional como símbolo da
criminalidade militar em torturas e assassinatos. Mourão sempre provocou
interrupções na escalada da sua imagem de mais lúcido dos centuriões de
Bolsonaro. O general dialogável, o general alternativo. Agora foi mais
decisivo.
O elogio
a Ustra foi
como Mourão dizendo-nos: Não se iludam. Nunca ouviram falar em pensamento
único? É o nosso no Exército. Como vocês diziam “somos todos Marielle”, nós
podemos dizer “somos todos Ustra”. E é assim que estamos aqui, para nossos
objetivos, não para os de vocês.
Bruno Boghossian - Bolsonaro, Ustra e a 'direita burra'
Qual
seria a tal direita iluminada com que Bolsonaro se identifica?
Depois
de apanhar nas redes por uma semana, Jair Bolsonaro se irritou com as milícias
digitais que costumavam agir a seu favor. Numa transmissão ao vivo, ele disse
que os ataques à
sua primeira indicação ao STF partiam de "uma direita
burra". "Não é infiltrado de esquerda! Não é petista, não!",
reclamou.
Em
2018, o candidato extremista que explorou uma agenda ultraconservadora
conseguiu se vender como o verdadeiro representante da direita naquela
campanha. Hoje, o presidente se sente confortável para questionar a
inteligência dos ex-apoiadores que criticam os acordos políticos que ele fechou
em busca de proteção para sua família.
Qual
seria a tal direita iluminada com que Bolsonaro se identifica? O presidente
pode estar pensando na turba que perseguiu uma menina de 10 anos que buscava um
aborto legal depois de ser estuprada pelo tio. Ou na ministra de Estado
que defendeu que
ela levasse a gravidez adiante.
Ainda
é possível que a referência destra do chefe de governo sejam os torturadores da
ditadura militar. O próprio Bolsonaro, afinal, já usou o cargo para enaltecer o
coronel Brilhante Ustra, condenado por sua atuação no regime. Na última semana,
o vice Hamilton Mourão disse que aquele era “um homem de honra”.
Hélio Schwartsman - O que justifica as cotas?
Elas
seguem na lógica de que podemos definir o destino de alguém com base em suas
características fenotípicas
Há
dois caminhos principais para justificar as cotas raciais. Pelo primeiro, elas
seriam uma forma de reparar injustiças
históricas. É preciso ser estatística e historiograficamente cego
para não ver que existe racismo
estrutural no Brasil e que a escravidão tem muito a ver com
isso. Uma compensação aos descendentes de escravos na forma de cotas seria,
então, uma forma de fazer justiça.
Não
gosto muito dessa justificativa. O argumento central contra ela é que há um
considerável descompasso entre o universo de prejudicados pela injustiça
original e o de beneficiados pela política reparatória. As cotas, afinal,
favorecem só um número pequeno dos descendentes de escravos, em geral os com
mais instrução e que menos precisariam de impulso. Os negros mais necessitados,
aqueles que não completam o ensino fundamental, lotam as cadeias e vão parar
precocemente nos cemitérios, nada ganham com elas.
Elio Gaspari - Luiz Fux comeu a jabuticaba
Alteração
no regimento do STF levou para o plenário questões penais que envolvem foro
privilegiado
Ao
alterar o regimento do Supremo Tribunal Federal levando para o plenário
questões penais que envolvem maganos com foro privilegiado, o presidente do
Supremo Tribunal, ministro Luiz Fux, limitou o alcance da jabuticaba das duas
turmas da Corte. Com a provável chegada de Kassio Nunes à segunda turma, no
lugar de Celso de Mello, Gilmar Mendes reinaria absoluto. Com o seu voto, o de
Kassio, mais o de Ricardo Lewandowski, formariam maiorias automáticas,
inclusive nos processos da família Bolsonaro.
Isso
no varejo. No atacado, Fux fez muito mais, pois as turmas do Supremo são uma
jabuticaba criada no século passado. Não há no mundo corte constitucional
renomada que decida em turmas. A Constituição diz que os ministros são 11, e 11
deveriam ser os ministros que decidiriam. Gilmar Mendes não gosta que se
busquem paralelos na Corte Suprema dos Estados Unidos, mas lá só há turmas
quando os juízes fazem ginástica no último andar do prédio.
A
providência é tão cristalina que Gilmar Mendes não gostou, mas votou a favor da
mudança, decidida por unanimidade.
A
provável chegada de Kassio Nunes ao Tribunal, com seu currículo e seu percurso,
obrigará Fux e seus colegas a trabalhar para recolocar a composição nos
trilhos. Limitando o poder das turmas, a bola volta ao centro do campo, e as
decisões que envolvem maganos com foro privilegiado vão para o plenário. A
menos que se faça uma pirueta, muita coisa poderá acontecer em função dessa
mudança, e mudará a qualidade da proteção de réus condenados por malfeitorias e
roubalheiras. Aquilo que poderia ser resolvido com três conversas, precisará de
pelo menos seis.
Vinicius Torres Freire - Pense em Maria, 109, que o vírus levou
Epidemia vai se arrastar e já pode ter matado quase 1 em 100 idosos de São Paulo
Duas
mulheres de 109 anos morreram de Covid na
cidade de São Paulo. A doença levou 46
paulistanos de cem anos ou mais.
A
gente sabe que esta é uma peste ainda mais cruel com os idosos. As pessoas de
mais de 65 anos são cerca de 75% dos mortos pela doença tanto aqui na
cidade como no
estado de São Paulo. Mas a gente vai bulir nas estatísticas por
outros motivos e vê lá então que duas paulistanas de 109 anos morreram de
Covid. É outra história.
Dá
o que pensar: nessas mulheres, no paulistano de 104 anos que o vírus levou,
nessa morte muitas vezes dolorosa e sempre solitária, de nenhuma despedida.
Penso na minha avó Maria, que morreu aos 101, antes desta praga, que esteve
muito bem até pouco antes de partir, quando então ainda cozinhava e teria ido à
feira sozinha, se deixassem.
Ele
viveu faz mais de 4 mil anos no que é hoje o Vietnã. Arqueólogos descobriram
que esse homem sofria de um mal que o deixou paralisado da cintura para baixo
desde antes da adolescência. Quase não podia mexer os braços, se tanto, ou se
alimentar sozinho, mas sobreviveu pelo menos uma década depois do ataque da
doença.
Míriam Leitão - Perdas humanas e custo econômico
Por
Alvaro Gribel (interino)
O
Brasil chega a 150 mil mortes na pandemia combinando o pior dos cenários:
elevado custo econômico e um número assustador de perdas humanas. Na média de
mortes por milhão, o país é o pior entre as 10 maiores populações. Ultrapassou
os Estados Unidos. Na economia, também não há o que comemorar. O custo fiscal
foi mais elevado porque o governo não soube fazer o que era mais barato:
comunicar de forma eficiente e orientar a população. Vários estudos têm
comprovado que há uma relação direta entre a redução das mortes e a recuperação
do consumo.
O
FMI divulgou um relatório importante na última semana confirmando que os países
que melhor controlaram o vírus estão tendo maiores ganhos econômicos. Se a
perda no curto prazo foi mais forte, pelas políticas de isolamento social, no
médio prazo isso está sendo compensado pela volta da confiança. O Fundo lembra
que há o isolamento orientado pelo governo e o isolamento voluntário, quando as
famílias ficam trancadas em casa pelo medo do vírus. De um jeito ou de outro o
isolamento acontece, e é melhor que seja de forma organizada. Isso quer dizer
que nunca houve trade off entre saúde e economia, as duas coisas sempre andaram
juntas, de forma complementar.
*Pedro S. Malan - Corredor estreito, tempo curto
Podemos
estar escrevendo a crônica de um fim de linha preanunciado
“A
função intelectual exercita-se sempre por antecipação (sobre
o
que poderia acontecer) ou
com
atraso (sobre o que ocorreu);
raramente
sobre o que está
acontecendo,
por razões de ritmo, pois os eventos são sempre
mais
rápidos e prementes do que
as
reflexões sobre os mesmos”
Umberto
Eco
As
palavras de Eco retêm especial relevância e atualidade à luz do que está a
acontecer no mundo e no Brasil da pandemia. Estamos em meio ao mais severo
choque global dos últimos 75 anos. Os impactos, diretos e indiretos, da
covid-19 estarão conosco muito além deste dramático ano de 2020, e não ficarão
restritos a questões de saúde pública.
A
pandemia criou problemas econômicos e sociais, derivados de choques negativos
simultâneos da oferta e da demanda que se reforçaram mutuamente em infernal
círculo vicioso. Perderam-se dezenas de milhões de empregos, é inédita a
contração da atividade econômica, elevaram-se em escala global os níveis de
pobreza, vulnerabilidade e desigualdade.
“Quando
chegaremos ao pós-covid?” é a pergunta que se ouve com frequência. Não é,
lamentavelmente, pergunta muito apropriada. Não há “novo normal” no horizonte.
O curso da História nada tem de normal, sempre esteve pleno de peripécias,
instabilidades e surpresas. Quando medicamentos eficazes tiverem surgido,
vacinas aprovadas e aplicadas em bilhões de pessoas – mesmo então, e muito
além, estaremos a falar do “mundo pós-covid” para designar o que se tenha
seguido a 2020. Ano em que, além da pandemia, e por causa dela, se exacerbaram
tendências preexistentes.
Em
particular no que diz respeito ao crescente descontentamento com a
globalização, que a crise de 2008-2009 fez eclodir de forma contundente.
Descontentamento com os efeitos dos avanços tecnológicos sobre o mercado de
trabalho e o consequente agravamento da percepção de excessiva desigualdade na
distribuição de oportunidades. Essa tendência é duradoura e continuará a exigir
respostas econômicas e políticas dos governos e, paradoxalmente, inescapável
cooperação internacional. O mundo já é outro no pós-2020 – e o Brasil também.
Rolf Kuntz* - Um gigante sem fôlego e sem rumo
Sem plano sequer para alongar a retomada, o País parece condenado a crescer menos que 3%
O Brasil, vejam só, deixou de ser o país do futuro. Que futuro pode ter um país emergente incapaz de crescer 3% ao ano? Esqueçam Stefan Zweig. Pensem num ministro da Educação preocupado com a vida sexual dos estudantes, num ministro do Meio Ambiente avesso à proteção das florestas, num ministro da Economia empenhado em recriar uma aberração tributária, a CPMF. Considerem um presidente negacionista, propagandista da cloroquina e centrado em interesses pessoais e familiares, com destaque para a reeleição. Quem se importa, em Brasília, com o miserável crescimento projetado para o médio e o longo prazos, nada além de 2,5% ao ano?
Bolas
de cristal muito consultadas preveem mediocridade, ou algo pior que isso, no
médio e no longo prazos. Por enquanto, há algum dinamismo. Passado o grande
choque, os negócios voltaram a mover-se, como em todo o mundo. Em 2021 o
produto interno bruto (PIB) crescerá 3,5%, segundo a mediana das projeções do
mercado. A expansão ficará em 2,8%, de acordo com estimativa recente do Fundo
Monetário Internacional (FMI). A partir daí o cenário fica menos claro, mais
inquietante e, principalmente, mais estimulante para uma avaliação das
condições do Brasil.
Sérgio C. Buarque - Decrescimento? O que é isso?
Durante o lockdown da China, no início deste ano, fotografias da Nasa mostravam a purificação do ar nas grandes cidades chinesas poupadas da emissão de poluentes, evidenciando a relação direta entre o nível de atividade econômica e a degradação do meio ambiente. Apesar da bela e inspiradora foto, o mundo torcia pela recuperação da economia chinesa, pelos negócios que gera e pelos milhões de empregos que dependem do crescimento econômico da China. Dados os atuais níveis de produção e consumo, a estrutura produtiva e o padrão tecnológico dominante, o aumento do PIB provoca uma elevação proporcional da pressão sobre o meio ambiente. A desejada recuperação da economia chinesa vai continuar degradando a natureza e emitindo gases de efeito estufa, embora o governo chinês esteja fazendo um esforço sério de recuperação e moderação das pressões antrópicas no país.
Os padrões produtivos e tecnológicos não
são constantes e estão mesmo atravessando, neste século, mudanças profundas
que, no geral, tendem a reduzir o impacto ambiental, ou pelo menos, conter a
marcha desesperada para o abismo. Ainda muito insuficiente, é verdade, mas está
em curso uma transição energética para novas fontes renováveis, inclusive na
China, emergindo novas alternativas de uma economia verde e atividades de baixo
carbono, acelerando inovações tecnológicas que amortecem as pressões antrópicas,
e aumentando a participação na estrutura produtiva do setor Serviços de baixo
impacto ambiental. Tudo isso reflete o aumento da consciência ambiental no
mundo e o debate técnico e político alimentado por diferentes proposições e
negociações.
Desde a década de 90, quando as Nações
Unidas lançaram a proposta de desenvolvimento sustentável e, mais recentemente,
com as pesquisas e o debate em torno das mudanças climáticas, vem crescendo a
preocupação mundial com a degradação do meio ambiente e, ao mesmo tempo, com a
pobreza e a exclusão social no planeta[1].
O conceito de desenvolvimento sustentável parte da compreensão de que o modelo
econômico atual está destruindo a natureza e de que são necessárias
reorientações profundas na produção, no consumo, na tecnologia. A proposta se
sustenta na correlação e busca do equilíbrio dos pilares equidade social, conservação ambiental e crescimento econômico, mesmo
sabendo que existem tensões entre eles e que, por último, dependem de escolhas
políticas.
Entrevista | Elly Schlein, Vice-Governadora da Emília Romanha (Itália): Extrema direita em xeque
Lucas Ferraz, especial
para O Globo (10/10/2020)
ROMA — Elly Schlein, 35 anos e sem partido por opção, é vista como uma esperança de renovação para a centro-esquerda italiana. De pai americano e mãe italiana, nascida em Lugano, na Suíça, Elly estudou direito em Bolonha e foi eleita para o Parlamento Europeu pelo Partido Democrático em 2014, rompendo com a sigla no ano seguinte. Antes, foi voluntária nos EUA nas duas campanhas presidenciais de Barack Obama. Bissexual declarada, após a experiência como parlamentar em Bruxelas enveredou na política nacional. Mais votada nominalmente na eleição para a Assembleia da Emília Romanha, foi depois convidada para ser a vice-governadora na chapa do mesmo PD com o qual rompera. Ela se destacou na campanha ao registrar um encontro — por acaso, disse – com Matteo Salvini e questioná-lo sobre a omissão da Liga nas votações no Parlamento Europeu sobre a imigração.
O vídeo, que viralizou,
mostra um Salvini que enrola e escapa sem respondê-la. Schlein falou com o
GLOBO num bar da Praça Venezia, no centro de Roma. Ela — que disse ter ficado
admirada com a história de Marielle Franco, conhecendo sua trajetória após o
assassinato — estava na cidade para alguns compromissos, entre eles uma
manifestação pelos direitos dos imigrantes.
A senhora tem dito que a
esquerda precisa de um choque. Que tipo de choque?
A esquerda perdeu terreno
porque não foi capaz de propor um modelo que governasse as grandes
transformações que estamos vivendo, a desigualdade econômica e social, as
mudanças demográficas, territoriais e de gênero. A esquerda não repensou o
Estado de bem-estar num sentido universal. De outra parte, não fomos capazes de
propor uma alternativa que promovesse uma renovação da economia observando a
questão ecológica e as novas tecnologias. A transição ecológica é extremamente
complexa numa sociedade que vem de anos de industrialização, e a esquerda não
foi capaz de exprimir essa alternativa. Precisa de um choque cultural,
geracional, de método. Vimos uma política fechada nos palácios, autocentrada,
distante das pessoas. Um governo sem visão de integração tecnológica deixa todo
o processo com os grandes grupos de tecnologia, que acumulam riqueza, governam
a nossa vida, roubam os nossos dados e mantêm o conhecimento em poucas mãos. Se
amanhã desaparecerem da Itália todos os imigrantes, a minha geração não terá
aposentadoria. Mas a política não tem coragem de dizer isso por medo da reação
da direita. Já somos um país multicultural. A resposta ao tema da imigração
levantada pela direita não pode ser o silêncio, como frequentemente acontece.
Uma sociedade mais segura é também mais inclusiva, a história mostra isso. A
política precisa encontrar a coragem para chamar as coisas pelo nome. Um dos
problemas é exatamente esse.
O que pensa a mídia – Opiniões / Editoriais
Eis que Brasília assiste a uma nova
tomada de poder. O Centrão, aquele bloco político disforme e corrosivo, avesso
a práticas republicanas, já assumiu por completo as rédeas no Planalto. Para
salvar as duas causas que julga essenciais — a proteção à família contra
investigações por malfeitos notórios e a reeleição — Bolsonaro cercou-se do
pior. Entregou-se à esbórnia craquenta do toma lá, dá cá, do compadrio
fisiológico, da desfaçatez nos arranjos espúrios. E não imagine que fez isso de
malgrado. Claro que não!
Quem o conhece de tempos imemoriáveis, sabe e não se deixa levar pelo verniz marqueteiro do Messias senhor das boas novas. Desde sempre quis o mandatário incorporar no governo convicções baixo clero acalentadas em toda a sua trajetória. Obviamente, elas nunca incluíram medidas liberalizantes, privatizações, reformas estruturais e as “baboseiras” de Estado enxuto. Não era da sua crença, natureza ou interesse pregar tantos vitupérios revolucionários. Ele ventilou como promessas durante a campanha? Claro que sim! Precisava arregimentar seguidores à causa.
Ineptos senhores do capital, sedentos por alternativas conservadoras que lhe garantissem lucro, caíram voluntariamente na lorota. Valeu a mentira. Sempre vale, em se tratando da tática prevalente no abecedário do capitão. Mas Bolsonaro tem unidade carnal com as chamadas conveniências paroquiais. Prefere levar vantagem em tudo, certo Gérson? Tome-se o exemplo da indicação desse desembargador Kássio Nunes Marques à cadeira no Supremo Tribunal — e nem vamos entrar no estupendo show de maquiagens do currículo fake do honorável indicado, que inclui cursos inexistentes, plágio de artigos e a turbinada de títulos como método de promoção (de novo? Indagariam os saudosos do episódio Decotelli, que ocupou a pasta da Educação por lapso de dias).
De que critérios se valeu o “mito”? Em suas próprias palavras, precisava ser alguém que tomasse cerveja ao seu lado nos finais de semana. Até tubaína valia. Afinal, na bolsa de valores do capitão, uma rodada de bebida no balcão do boteco substitui qualquer necessidade de qualificação técnica. O presidente também disse buscar alguém “leal as nossas causas”. E quais seriam elas? Um doce para quem adivinhar. Flávio Zero Um Bolsonaro encalacrado já levou papai-mandatário a pedir arrego ao então plenipotenciário do STF, Dias Toffoli.
Ter agora um nome de sua estrita confiança, indicado diretamente por ele, na Suprema Corte, seria mamão com açúcar. “Kássio Nunes já tomou muita tubaína comigo. A questão de amizade é importante, né? O convívio da gente”. A reveladora sinceridade do inquilino palaciano deixa uma mensagem inequívoca: para ele, no plano da Justiça, colocar amigos que atuem como defensores de seus interesses é algo fundamental. Diria: o que basta. Jair Bolsonaro confunde zelo à Constituição com proteção ao governo. Quer ministros magistrados subjugados, prestando-lhe vassalagem e gratidão pela benção da cadeira ocupada.
Poesia | João Cabral de Melo Neto - A educação pela pedra
Uma educação pela pedra: por lições;
Para aprender da pedra, frequentá-la;
Captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
Ao que flui e a fluir, a ser maleada;
A de poética, sua carnadura concreta;
A de economia, seu adensar-se compacta:
Lições da pedra (de fora para dentro,
Cartilha muda), para quem soletrá-la.
Outra
educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
E se lecionasse, não ensinaria nada;
Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
Uma pedra de nascença, entranha a alma.