sexta-feira, 2 de abril de 2021

Vera Magalhães - Imunize-se quem puder (pagar)

- O Globo

De todas as estruturas que Jair Bolsonaro implodiu no Brasil nesses dois anos e três meses, talvez a mais relevante, dado o momento dramático que o país atravessa, seja o Plano Nacional de Imunização (PNI).

A lista é extensa, e a competição, acirrada. Liquidar o Censo, avacalhar o Enem, asfixiar a Cultura, estigmatizar as universidades, propiciar sucessivos recordes de desmatamento é um legado de destruição sem precedentes, pelo qual gerações de brasileiros pagarão com pobreza, manutenção das desigualdades, atraso educacional e cívico e exclusão do bonde global do século 21.

Mas a desmoralização do PNI, um edifício construído ao longo de quase 50 anos, é diretamente responsável pelo recorde de mortes na atual pandemia, o que a torna ainda mais criminosa.

Paradoxalmente, o PNI é obra do governo Geisel. Se Bolsonaro tivesse a mínima ideia da História do Brasil, e não cultuasse a ditadura militar apenas por ser um autoritário, fã de tortura e supressão de liberdades, usaria esse fato para promover o PNI neste momento e para louvar o trabalho dos militares em criar os pilares do SUS.

Mas ele não sabe nada de nada. E, além disso, pratica desinformação com o mesmo fervor com que se dedica a escangalhar tudo o que seus antecessores fizeram.

Bernardo Mello Franco – Consciência tardia

- O Globo

Seis presidenciáveis divulgaram um manifesto “pela consciência democrática”. O texto não cita Jair Bolsonaro, mas afirma que a democracia está “ameaçada” em seu governo. “Cabe a cada um de nós defendê-la e lutar por seus princípios e valores”, conclama.

A carta exalta o movimento das Diretas, que “uniu diferentes forças políticas no mesmo palanque”. “O autoritarismo pode emergir das sombras, sempre que as sociedades se descuidam”, alerta. Curiosamente, os signatários se descuidaram quando o país elegeu um candidato que exaltava a ditadura e ameaçava “fuzilar” adversários.

Dos seis autores do manifesto, cinco pediram voto para Bolsonaro em 2018. Em São Paulo, João Doria chegou a mudar o próprio nome: passou a se vender como “Bolsodoria”. Seu padrinho político, Geraldo Alckmin, definiu a metamorfose como atitude de “traidor”.

Pedro Doria - O mundo do novo presidente

- O Globo / O Estado de S. Paulo

O mundo em 2026 será muito, muito diferente do mundo hoje. Na quarta-feira à noite, seis presidenciáveis publicaram um manifesto pela democracia. Começamos cedo a falar das eleições de 2022, mas isso tem motivo de ser. Não é normal ficar discutindo as possibilidades de um golpe de Estado. Temos, porém, um presidente que nos empurra para esse debate. Refletir sobre que comando o Brasil terá a partir de 1º de janeiro de 2023 é fundamental. Pois: ele descerá a rampa do Planalto num mundo muito diferente daquele em que começará seu mandato.

A McKinsey, uma das principais consultorias do mundo, soltou em fevereiro um relatório sobre o trabalho no mundo após a pandemia. A conclusão é óbvia: tendências que já existiam em 2019, como trabalho cada vez mais remoto, aumento do comércio eletrônico e automação de inúmeras atividades se aceleraram. Mas é importante entender o que isso quer dizer com um pouco mais de detalhe.

Em economias desenvolvidas, entre um quinto e um quarto da força de trabalho trabalhará remotamente pelo menos três dias por semana. Quando não os cinco. Isso quer dizer que, nos cálculos dos executivos de grandes empresas ouvidos, o espaço de escritório pós-pandemia deverá diminuir 30%.

Ricardo Noblat - O governante que não se importa com vidas para nada serve

- Blog do Noblat / Veja

Compulsão pela morte

Diz a Constituição no artigo 5º: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida”. A ser assim, a prioridade do governante não pode ser outra, tanto mais em meio a uma pandemia.

Criado em 2004, no primeiro governo do presidente Lula, o programa Farmácia Popular distribui medicamentos básicos gratuitamente para hipertensão, diabetes e asma. Remédios para controle de rinite, mal de Parkinson, osteoporose e glaucoma, além de anticoncepcionais, são vendidos com desconto de até 90%.

O que fez Bolsonaro? No ano passado, o primeiro da pandemia, reduziu o orçamento do programa. 20,1 milhões de pessoas foram beneficiadas, 1,2 milhão a menos do que em 2019. A cobertura de 2020 foi a menor desde 2014. A quantidade de farmácias caiu para 30.988 unidades em 2020, o menor patamar desde 2013.

Hélio Schwartsman - E se dessem um golpe em Bolsonaro?

- Folha de S. Paulo

Se, para apear o homem, nossos generais tivessem de pôr tanques na rua, aí até eu seria contra

Hoje eu proponho um experimento mental. Imaginemos que os militares brasileiros deem um golpe, mas para tirar Jair Bolsonaro da Presidência. Como você, dileto leitor, reagiria? Se você for bolsonarista, ficaria chateado, mas não é em sua opinião, e sim na dos outros 70%, que estou interessado hoje.

Há golpes e golpes. Se, para apear o homem, nossos generais tivessem de pôr tanques na rua e promover uma ruptura da ordem constitucional, aí até eu, que sou consequencialista e considero a neutralização de Bolsonaro uma prioridade, seria contra.

É que, pelo consequencialismo que me parece mais viável, o “rule consequentialism”, devemos acatar as regras que, no longo prazo, contribuam para produzir mais bem do que mal. E a regra que manda evitar a violência para resolver disputas políticas se enquadra nessa categoria.

Bruno Boghossian – Pirueta público-privada

- Folha de S. Paulo

Na prática, a iniciativa privada pode decidir quem vai passar na frente de grupos prioritários

O lobby particular é a instituição mais eficiente do poder público. Em menos de 30 dias, empresários convenceram o Congresso a trabalhar contra uma lei que criou regras para a compra de vacinas. O texto foi aprovado no início de março com apoio de quase todos os partidos, mas a cúpula da Câmara quer facilitar a vida da iniciativa privada.

A lei que vale hoje autoriza uma empresa a comprar as doses, mas determina a doação delas ao SUS enquanto os grupos prioritários não estiverem imunizados. Depois dessa fase, metade do material deve ir para os postos de saúde. Deputados querem acabar com essa obrigação.

Ruy Castro - Tapa na cara do ministro

- Folha de S. Paulo

Pazuello assinou os óbitos de nossos pais e avós; a Queiroga caberão os de nossos filhos e netos

Na quarta-feira (31), Jair Bolsonaro aplicou a primeira bofetada no rosto de seu novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. O estalo se fez ouvir nacionalmente, à saída do Planalto, onde, pouco antes, ao lado dos presidentes da Câmara e do Senado, o ministro condenara as aglomerações que multiplicam a transmissão da Covid. Bolsonaro, sem máscara e sem escrúpulo, desautorizou-o —mandou as pessoas para a rua e, bem ao estilo miliciano, ameaçou cortar-lhes os auxílios se não fizerem isso.

O cândido dr. Queiroga que prepare as faces para os próximos tapas a elas reservados. Bolsonaro não hesita em desmoralizar qualquer ministro civil ou fardado que o contrarie minimamente. Neste momento, por exemplo, o grande problema é o lockdown. Queiroga, como médico, sabe que lockdowns temporários e localizados salvariam milhares de vidas. Mas, como não suporta nem ouvir a palavra, Bolsonaro espera que ele os condene com toda ênfase. Em vez disso, Queiroga gagueja que a população deveria cuidar ela própria de não se aglomerar. É pouco e vai lhe custar caro às bochechas.

Reinaldo Azevedo – Manifesto e fuga dos Mortos

- Folha de S. Paulo

Entrada de Lula no jogo leva a uma articulação virtuosa, que vai da direita democrática à centro-esquerda

entrada de Luiz Inácio Lula da Silva na disputa eleitoral tem provocado, até agora, apenas desdobramentos virtuosos. Espero que se cumpram as regras do devido processo legal e que juízes não decidam tomar o lugar dos eleitores. Dois desses efeitos foram antecipados por este colunista neste espaço: a necessidade de o tal “centro” se organizar e a emergência de Ciro Gomes (PDT) como uma alternativa de um arco ideológico que vai da direita democrática à centro-esquerda. Vamos ver.

Seis pré-candidatos à Presidência divulgaram na quarta (31) à noite um manifesto essencialmente correto em defesa da democracia. Em ordem alfabética: Ciro Gomes (PDT), Eduardo Leite (PSDB), João Amoêdo (Novo), João Doria (PSDB), Luiz Henrique Mandetta (DEM) e Luciano Huck (sem partido). O ex-presidente Lula não foi convidado. Faz sentido. Sergio Moro foi. Não faz sentido.

Felizmente para os demais signatários, os interesses empresariais do ex-juiz —a gente é obrigado a escrever coisas estranhas no Brasil...— o impedem de assinar manifestos, mesmo aqueles em defesa da democracia, o que não deixa de ser estranho. Mas o liberam para fazer proselitismo sobre extravagâncias judiciais, o que é mais estranho ainda. No dia em que um defensor de excludente de ilicitude e processos de exceção merecer a alcunha de democrata, haverá algo de errado com os democratas. Mas não será ele a envenenar meu texto.

As dificuldades da aliança contra Bolsonaro em 2022 – Opinião / O Globo

Depois que a polarização nas eleições de 2018 resultou na vitória de Jair Bolsonaro sobre o petista Fernando Haddad, a busca por um candidato viável de centro para 2022 tornou-se meta prioritária em partidos de oposição. O “Manifesto pela Consciência Democrática” divulgado quarta-feira, exatos 57 anos depois do golpe militar de 64, pode ser entendido como um primeiro passo na direção de uma aliança formal, ainda que cercada de dúvidas e incertezas.

Assinado por Ciro Gomes (PDT), Eduardo Leite (PSDB), João Amoedo (Novo), João Doria (PSDB), Luciano Huck e Luiz Henrique Mandetta (DEM), o manifesto reúne nomes com potencial para disputar o Planalto. Cita o exemplo do movimento das Diretas Já, de 1983 e 84, quando forças de oposição ao regime, à esquerda e à direita, se uniram para patrocinar a redemocratização. Alerta que “o autoritarismo pode emergir das sombras sempre que as sociedades se descuidam e silenciam dos valores democráticos”. Como diagnóstico, é indiscutível.

O duro, como tudo em política, é pôr em prática a ideia de um candidato alternativo a Bolsonaro e ao recém-reabilitado Luiz Inácio Lula da Silva. Um primeiro desafio para o embrião da frente está na dispersão da preferência do eleitorado entre os nomes que poderiam encabeçar uma aliança contra a polarização, aqueles que assinaram o manifesto mais Sergio Moro, que não o subscreveu alegando razões contratuais com o escritório de advocacia em que trabalha nos Estados Unidos.

Ignorem o presidente – Opinião / O Estado de S. Paulo

Nem se deve perder tempo corrigindo as bobagens de Bolsonaro acerca do estado de sítio e do direito de ir e vir

O Brasil chegou ao ponto em que é urgente deixar de dar ouvidos ao que diz o presidente da República. Jair Bolsonaro se tornou em si mesmo um ruído que desnorteia os brasileiros sobre como devem se comportar diante da pandemia de covid-19, que no momento mata mais de 3 mil pessoas por dia no País (ver abaixo o editorial O quadro da pandemia).

Nenhum esforço de comunicação no sentido de orientar corretamente os cidadãos a respeito das medidas de prevenção será bem-sucedido enquanto o chefe de governo continuar contrariando as mensagens das próprias autoridades federais mobilizadas contra o vírus, reunidas no chamado Comitê de Coordenação Nacional para o Enfrentamento da Pandemia de Covid-19.

Esse comitê realizou na quarta-feira passada sua primeira reunião formal. A lista de participantes mostra a importância que se pretende dar a essa iniciativa. Estavam presentes o presidente Bolsonaro, os presidentes da Câmara, Arthur Lira, e do Senado, Rodrigo Pacheco, os ministros da Saúde, Marcelo Queiroga, das Comunicações, Fábio Faria, da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, e da Secretaria de Governo, Flávia Arruda, além de representantes do Ministério da Justiça, do Judiciário e do Ministério Público.

Pois bem. Ao final desse encontro, o deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco falaram com os jornalistas como se fossem os líderes de fato da iniciativa – o presidente Bolsonaro, a quem cabe formalmente a direção do grupo, já não estava no local.

Eliane Cantanhêde - “Mau militar”

- O Estado de S. Paulo

Só um péssimo estrategista abriria um novo front de batalha, justamente com os militares

A passividade e a submissão dos militares, ou de militares, ao presidente Jair Bolsonaro são incompreensíveis, mas o grande mistério está na origem dessa simbiose: como oficiais-generais, que passam por treinamentos e cursos tão sofisticados, aderiram com tanto gosto a um capitão da reserva que foi acusado de ter planos terroristas e que o ex-presidente Ernesto Geisel definia como “mau militar”? 

A versão de que foi “para derrotar o PT” até explica, mas não justifica. Pode fazer algum sentido entre civis que nunca ouviram falar de Bolsonaro, mas, para generais, brigadeiros e almirantes que sabem muito bem quem ele é, o que fez no Exército e não fez no Congresso? 

O mistério aumentou quando, num discurso, Bolsonaro se dirigiu ao ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas: “O que nós conversamos morrerá entre nós”. E arrematou: “Obrigado. O sr. é um dos responsáveis por eu estar aqui”. Foi no terceiro dia de governo e na posse do general Fernando Azevedo e Silva no Ministério da Defesa, a mais prestigiada e a única em que o presidente discursou. 

Fernando Gabeira - Vacinados contra o golpe

- O Estado de S. Paulo

Sociedade está reduzida a protestos virtuais. Mas cedo ou tarde julgaremos Bolsonaro

Enquanto os líderes mundiais lançavam um comunicado considerando a pandemia o maior problema da humanidade desde a 2.ª Guerra, aqui, no Brasil, Bolsonaro quis dar um golpe para evitar o combate eficaz contra o coronavírus. Esta é a leitura que faço dos episódios da semana.

Bolsonaro pressionou o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, não apenas para demitir o comandante do Exército, mas para ter condições de neutralizar pela força as medidas restritivas que os governadores impuseram em seus Estados para salvar vidas.

Com a demissão do ministro, os comandantes das três Armas renunciaram em protesto contra Bolsonaro. E ficou evidente ali que o Exército não se lançaria na aventura de Bolsonaro, que, em nome da economia, tinha o potencial de matar mais ainda uma população já devastada pelo coronavírus.

A divergência entre a visão do Exército e a de Bolsonaro sobre a pandemia ficou evidente na véspera da demissão do ministro Fernando Azevedo, que ao sair se limitou a dizer que manteve a instituição militar como força do Estado, e não de um governo.

Em entrevista ao Correio Brasiliense, o general Paulo Sérgio, diretor do Departamento de Pessoal do Exército, mostrou como a instituição atravessou a pandemia, obedecendo os mais estritos protocolos de segurança. Previdente, como, aliás, o são todos os governos do mundo, o Exército já se preparava para uma terceira onda. O saldo do combate, na proteção de 700 mil pessoas sob sua influência, foi muito positivo. Basta comparar o índice de mortalidade na Força, que foi de 0,13%, com o do Brasil, 2,5%.

Dora Kramer - Guerra imaginária

- Revista Veja

A cada vez que o presidente tenta marcar autoridade, cava mais descrédito e desprestígio

Nada do que Jair Bolsonaro faz dá certo, a não ser a ideia de inocular no país o vírus da crise permanente, do medo da ruptura institucional. Uma sensação que se espalha, se entranha nas mentes e se transforma no espírito do tempo deste sofrido Brasil ocupante do primeiro lugar no macabro certame mundial do avanço de contaminações e mortes pela Covid-19.

A impressão de estarmos à beira de um colapso democrático se sobrepõe aos dados objetivos fornecidos pelos fatos, e estes nos dizem que nada do que Jair Bolsonaro faz dá certo.

É um presidente em rota da falência múltipla das condições de governar que a cada gesto se enfraquece mais e mais, não entrega as encomendas prometidas ao eleitorado em 2018. Não obstante, consegue disseminar a percepção difusa de perigo numa nação em que a realidade vem mostrando ser mais forte e resistente do que ele.

As instituições, as formais e as sociais, não o impedem de seguir no mandato, é verdade, mas lhe impõem derrotas contínuas que se traduzem numa desidratação evidente de poder. Obrigam-no a recuos constantes a ponto de lhe restarem poucos expoentes do grupo inicial de alucinados (chamá-los de ideológicos é conferir-lhes deferência) e de já ter feito 24 mexidas na composição original de 22 ministérios, muitas contra a sua vontade. Das trocas voluntárias, várias mostraram-se flagrantemente equivocadas e produziram mais problemas que soluções.

“O capitão ressentido quer subjugar o alto-comando das Armadas e inocular no país o vírus do medo da ruptura”

Murillo de Aragão - A inevitabilidade do Centrão

- Revista Veja

O grupo funciona como uma máquina voltada para o poder

Com a indicação da deputada federal Flávia Arruda (PL-DF) para o cargo de ministra-chefe da Secretaria de Governo, pasta que cuida da interlocução com o Congresso, o Centrão volta a ocupar posto relevante no Palácio do Planalto. Flávia Arruda terá sob seu controle a pressão arterial não apenas da base política em suas demandas junto ao governo, como também do fluxo de atendimento dessas demandas. É uma posição estratégica. A escolha da deputada comprova o poder do Centrão. Tal fato impõe algumas reflexões. Considerando o modelo político brasileiro, o Centrão sempre estará, ainda que parcialmente, participando da gestão do poder no Brasil? Com o atual ambiente político, a resposta é sim. Mesmo que em 2022 ganhe um candidato de esquerda, a presença de setores do Centrão no futuro governo é quase garantida.

“O Centrão esteve em todos os governos desde FHC, passando por Lula, Dilma e Temer”

Raul Jungmann* - Continência à Constituição

- Capital Político

O dia 30 de março de 2021 deverá ter diversos registros históricos. Porém, creio, o maior de todos é que, nesse dia, as Forças Armadas por atos e palavras disseram ficar com a Constituição, seus deveres de instituição de Estado e com a democracia.

Pressionados e constrangidos a endossar ações políticas do Presidente da República, afastando-se da linha dos seus deveres constitucionais, decidiram pelos atos dos seus comandantes, e respaldados pelos respectivos Altos Comandos, manter-se alinhadas com a Nação, para cuja defesa existem, e não com o governo da hora, seja ele qual for.

Premido pelo crescente isolamento, perda de popularidade, descontrole da pandemia e dúvidas crescentes à sua capacidade de governar, o presidente entendeu necessário subir a pressão sobre os militares, em especial o Exército. O tiro saiu pela culatra.

José de Souza Martins*- O desencontro entre o poder e Bolsonaro

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

O presidente tem claras dificuldades para lidar com relacionamentos mediados por instituições e regras formais, com aquilo que ele desdenha, mas que é decisivo na democracia

Uma certa frequência, nos jornais, de artigos que remetem a política ao tema da formação da personalidade do presidente da República indica preocupação com o desencontro entre o poder e o poderoso.

O problemático desencaixe entre a pessoa no poder e a instituição que o define suscita mais diagnósticos do que interpretações. É um modo de compreender os fatores extra políticos da política quando ela sai do padrão que lhe é próprio. O que é um fator de alarme com a distorção do processo político, o poder confundido com o mando pessoal. Sugere a quem envereda por essa linha de análise que podemos estar em face de um desvio comportamental e não apenas em face de um projeto político anômalo.

Se o agente dominante da primeira socialização do presidente foi o pai que o induziu a optar pela carreira militar, como é ressaltado nas análises, teve no quartel a segunda socialização, desdobramento da primeira. Nos dois momentos há indicações de insuficiências de socialização para as solicitações plurais dos vários âmbitos da sociedade, pois é neles que a maioria de nós vive.

Aliás, a consciência social e política do que era a socialização limitante dos grupos de confinamento formativo já estava presente nas interdições da condição de eleitor na Constituição de 1891.

O quartel é o que o sociólogo canadense Erving Goffman (1922-1982) define como instituição total, isto é, amuralhada e restritiva à sociabilidade dos internos, fechada à diversificação social.

Fernando Abrucio* - Bolsonaro representa a vitória dos piores contra os melhores

- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Que país legaremos aos nossos filhos e netos com esse modelo de despreparados movidos por um darwinismo social?

O governo Bolsonaro representa a vitória dos piores quadros contra as melhores cabeças do país. Claro que há exceções, mas a regra é a do triunfo da ruindade, à semelhança do despreparo técnico e político do presidente. Numa situação como essa, sem paralelo na história brasileira, é preciso mais do que uma carta ressaltando o rotundo fracasso no combate à covid-19. É fundamental que a sociedade e a elite do país pressionem para mudar diversas políticas públicas, em suas concepções e seus dirigentes despreparados, antes que a tragédia se aprofunde mais, com efeitos perversos para todos.

A famosa “Carta do PIB e seus economistas”, como foi chamada na semana passada, isolou completamente o governo, que se arrisca a ficar com o apoio apenas dos fiéis do bolsonarismo. O grupo com maior faro de poder no país, o Centrão, já percebeu que, mantida a linha atual de combate à pandemia, quem apoiar Bolsonaro terá dificuldades nas eleições estaduais e parlamentares de 2022. Muitos criticaram o movimento da elite social e dos congressistas, que só abriram os olhos agora, quando a catastrófica política sanitária colocou o Brasil numa situação próxima à barbárie. Trata-se de uma crítica pertinente, mas não é o maior problema dessa movimentação política.

Rogério F. Werneck - Era só o que faltava

- O Globo / O Estado de S. Paulo

Crise militar traz novo e grave fator de risco a exacerbar o clima de elevada incerteza

Bolsonaro vem colhendo o que plantou: uma crise desnecessariamente agravada e alongada, em decorrência de uma sucessão de equívocos perfeitamente evitáveis, cometidos tanto no combate à pandemia como na condução da política econômica.

Tendo alongado a crise, o Planalto constata agora, a 18 meses da disputa presidencial de 2022, que já não terá tempo para enfrentar com um mínimo de tranquilidade o desafio da reeleição. Aflito como está, Bolsonaro mostra-se mais propenso do que nunca a se deixar levar pelo desatino.

O Planalto iniciou a semana às voltas com uma conjunção de problemas graves, que já superava em larga medida sua limitada capacidade de processamento: uma pandemia fora de controle, caminhando para quatro mil mortes por dia, a urgência de desarmar a armadilha orçamentária em que se deixou meter e, ainda, a inevitabilidade de ceder às pressões do Congresso por mudanças no Ministério e mais espaço no governo.

Já enredado em dificuldades tão sérias, o presidente não teve melhor ideia do que deflagrar uma crise militar como não se via no país há mais de quatro décadas.

Flávia Oliveira - Vacina não é privilégio

- O Globo

O Brasil chegou ao fim do mais letal mês em um ano de pandemia, e o presidente da Câmara dos Deputados se dirigiu à nação para defender a furada de fila da vacinação por grandes empresas privadas. Ato assombroso, no dia — aniversário de 57 anos do golpe militar, por sinal — em que o país contou quase quatro mil mortos por Covid-19. Desnecessário, uma vez que os laboratórios têm insistido em informar que só negociam com governos centrais, e somente eles. Antiético, porque o chefe da Casa do Povo não deveria legislar pelo privilégio privado, especialmente numa nação desigual como o Brasil, onde a pandemia é particularmente letal para pobres, pretos, indígenas, favelados. Estúpido do ponto de vista sanitário, porque imunização de uma parte não protege o todo.

Arthur Lira (PP-AL) foi o político que, há poucas semanas, escreveu e se deixou filmar lendo para o embaixador da China uma carta de apelo por insumos e vacinas do gigante asiático. Se o país hoje se humilha a parceiros externos para acelerar a vacinação, foi por que o presidente da República e comandante-chefe do Ministério da Saúde sabotou quanto pôde a contratação de imunizantes, o uso de máscaras, as recomendações de isolamento — o combate à pandemia, portanto. O diálogo com o setor privado poderia passar por aquisição e distribuição de máscaras de boa qualidade, apoio logístico ao plano de imunização, adesão a medidas de restrição de circulação, ajuda humanitária a famílias que não conseguirão aplacar a fome com o auxílio emergencial de R$ 150 a R$ 375 por quatro meses.

Nelson Motta - Velhos, jovens e cinquentões

- O Globo

É melhor encarar os aniversários como uma comemoração por estar vivo

Meu caro amigo e fotógrafo consagrado Leo Aversa tambem se revelou excelente cronista, capaz de trazer leveza, humor e esperança com seus relatos do cotidiano. Por isso me surpreendi com ele meio chateado de fazer 50 anos e assustado com a passagem rápida do tempo. Com 76, quase me senti ofendido rsrs.

Calma, garoto, você ja fez e ainda vai fazer muito, não é verdade que aos 50 começa a decadência irreversível. Do corpo, é natural, é o desgaste da máquina, que tem que ser bem cuidada; mas da cabeça, que comanda o corpo, a tendência é melhorar com a experiência e os erros. Claro, cada pessoa é um mundo e cada idade é uma história que não se repete, o jeito é vivê-las com a maior intensidade possível, com “paciência, humildade e entrega”, como dizia um grande mestre zen.

Como ensina a mestra da moda Costanza Pascolato, “elegância é adequação” ao ambiente, à situação, ao horário, mas vale para tudo na vida, especialmente a idade, nada mais patético que coroa metido a broto. Mas a inteligência, a jovialidade, a simpatia e o humor não têm idade. Nada envelhece mais do que reclamar da vida e cultivar nostalgia por tempos que não voltam. Nada mais chato que velho ranzinza, teimoso e malcriado. É papo furado que, como o vinho, quanto mais velho, melhor. Às vezes azeda, às vezes amarga. Quantos realmente melhoram o sabor da sabedoria e do estilo com a idade?

Ruth de Aquino – Celebrando o Dia da Mentira

- Globo

No Dia da Mentira, um teste com 21 afirmações. Você é bobo ou esperto?

No 1o de abril, elaborei uma lista de mentiras capciosas para você pregar nos amigos e inimigos. Ou para você cair nelas. Faça o teste para saber se você é bobo ou esperto. Tem até domingo para responder. Em quantas destas afirmações você acredita? 

1 O vice-presidente, general Hamilton Mourão, é 100% leal a Bolsonaro.

2 O presidente da República está mais forte hoje do que quando assumiu, apesar dos 60 pedidos de impeachment.

3 As Forças Armadas brasileiras sempre se pautaram pela defesa das liberdades democráticas e dos direitos constitucionais. 

4 A ditadura militar foi um movimento, não houve golpe, e entre 1964 e 1979 não ocorreram torturas e estupros em custódia, nem desaparecimentos de corpos e prisões arbitrárias, ou execuções travestidas de suicídio. 

5 Os comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica foram demitidos pelo presidente da República. 

6 O novo comandante do Exército, general Paulo Sérgio (a favor de máscaras, distanciamento social e regras da OMS), é o nome com que Bolsonaro sempre sonhou. Jair está contente com as mudanças. 

Música | Teresa Cristina - Positivismo

 

Poesia | Fernando Pessoa - Apontamento

       

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
       Caiu pela escada excessivamente abaixo.
       Caiu das mãos da criada descuidada.
       Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. 

       Asneira? Impossível? Sei lá!
       Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
       Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

       Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
       Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
       E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. 

       Não se zanguem com ela.
       São tolerantes com ela.
       O que era eu um vaso vazio? 

       Olham os cacos absurdamente conscientes,
       Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. 

       Olham e sorriem.
       Sorriem tolerantes à criada involuntária. 

       Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
       Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
       A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
       Um caco.
       E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.