Aos 89 anos, discípula do filósofo marxista György Lukács que passou por três totalitarismos vê ascensão de 'novas tiranias' na Europa, com Orbán, Erdogan e Salvini
Sarah Halifa-Legrand, do Le Nouvel Observateur | O Globo, 15/12/2018
BUDAPESTE - Nesta semana, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán anunciou uma nova medida que aumenta o seu controle do Judiciário do país. É mais um passo para levar adiante sua autoproclamada “democracia iliberal”, que a filósofa húngara Ágnes Heller, aos 89 anos, chama de “uma nova tirania”. Discípula do filósofo marxista György Lukács, essa grande intelectual tornou-se especialista em regimes autoritários.
Criança, viveu sob a ditadura do Almirante Horty. Depois escapou por pouco do Holocausto, fugiu do regime comunista e exilou-se na Austrália em 1977. Em 1986, mudou-se para a New School de Nova York, onde assumiu a cátedra de Hannah Arendt. De volta à sua terra natal, essa fervorosa defensora da democracia liberal agora não dá tréguas ao “novo tirano” de Budapeste.
• A senhora viveu sob o jugo de diversos regimes autoritários. Diria que a Hungria está retomando o mesmo caminho?
Nem todas as tiranias se parecem. Orbán não instaurou um regime autoritário, mas uma nova forma de tirania que se espalha hoje pelo mundo, onde um tirano é eleito, depois reeleito e novamente reeleito. Como Orbán, Putin, Erdogan. O próprio Orbán descreve essa nova tirania como uma democracia iliberal. Democracia, pois o regime é fruto de uma votação majoritária. “Iliberal”, porque não há mais direitos humanos, nem pluralismo. É um governo totalmente centralizado: nada mais pode acontecer na Hungria sem que ele assim tenha querido.
Nesse tipo de regime assistimos a uma “refeudalização” progressiva. O poder transforma em renda o que dependia anteriormente do lucro redistribuído pelo capitalismo, e cria sua própria oligarquia. Falar sobre esses regimes como se falava do nazismo ou do stalinismo é não perceber o que está acontecendo, nem compreender os seus perigos.
Vejam Matteo Salvini, na Itália. É um pequeno “Duce”, mas não vai marchar sobre Roma, nem tomará o poder pela força. Ele fará exatamente como fez Orbán. Chegar ao poder pelo voto majoritário, e lá permanecer, por meio de reeleição após reeleição. Todos esses novos tiranos se escondem atrás do argumento poderoso do voto majoritário, apresentado como uma garantia da natureza democrática de seu regime. Mas não se trata disso! Esses regimes não se parecem em nada com aquilo que chamamos de democracia. Pois, desde a primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, a democracia moderna é sinônimo de democracia liberal.
• Como tantos países puderam cair nessa nova forma de tirania?
Isso aconteceu progressivamente, com a passagem da sociedade de classe para a sociedade de massas. Hannah Arendt havia explicado como as classes sociais foram destruídas na União Soviética. Numa sociedade totalitária, isso ocorre de modo mais rápido; na sociedade tradicional, o processo é mais lento. Mas atualmente, entramos em toda parte na era das sociedades de massa. Esse processo é acompanhado pelo desaparecimento progressivo dos partidos políticos tradicionais, que representavam os interesses das classes.
Esse novo tipo de tirania baseia-se na existência de uma sociedade de massa, contrariamente à ditadura tradicional, que se apoiava nas sociedades de classe. Nas sociedades de classe, o voto servia aos interesses de classe. Caso não representassem esses interesses, os tiranos deveriam tomar o poder pela força. Porém, nas sociedades de massa, a maioria é formada pelas ideologias, e não pelos interesses de classe. A sociedade de massa não determina que o governo seja tirânico. Mas torna mais fácil a eleição dos tiranos. Na Europa do Leste, isso fica ainda mais fácil, pois não existe uma tradição democrática. Na Hungria, de fato, nunca houve realmente uma democracia liberal propriamente dita.
• A senhora quer dizer que aquilo que pensávamos ser uma democracia liberal depois de 1989 na verdade não o era?
Sim. Após 1989, é verdade que tivemos enfim aquilo que se pode chamar de democracia liberal no governo e no parlamento. Nós, os intelectuais, podíamos falar o que quiséssemos. Era genial. Mas nós não entendemos que isso não bastava para atingir uma democracia real. Esta nunca conseguiu se enraizar no seio da população húngara. Os húngaros nunca tinham sido acostumados a tomar em mãos seu próprio destino, exceto em duas breves oportunidades, durante as revoluções de 1848 e de 1956.