Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
quarta-feira, 5 de agosto de 2020
Antonio Gramsci* - Sobre o conceito de partido político
Merval Pereira - A orelha de Bolsonaro
- O Globo
A obsessão do presidente Jair Bolsonaro por
informações dos serviços de inteligência faz com que se espalhe pela
administração federal uma tendência à bisbilhotice que nos aproxima
perigosamente de um estado policial.
Nada explica, a não ser esse ambiente, a existência
de uma lista de funcionários públicos considerados “antifascistas”, isto é,
opositores do governo, elaborada por uma tal de Secretaria de Operações
Integradas (Seopi). Na maioria professores e policiais.
Além de implicitamente admitirem que são fascistas,
os que organizaram a lista consideram que servidores públicos têm um dever de
lealdade ao governo a que servem. Não é à toa que a Controladoria Geral da
República editou recentemente uma norma técnica que proíbe servidores de usarem
as redes sociais para críticas a medidas do governo.
Comentários que possam gerar “repercussão negativa
à imagem e credibilidade à instituição” merecerão punição administrativa. Isso
quer dizer que, além de estarem sujeitos a uma censura nas redes sociais que
utilizam em nome pessoal, os funcionários públicos também não se sentirão
seguros para utilizarem os canais internos de reclamação.
Esse clima de espionagem foi ampliado por um
decreto editado na sexta-feira ampliando não apenas os quadros da Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), mas o escopo de sua atuação com a criação de
um Centro de Inteligência Nacional que reunirá os órgãos do Sistema Brasileiro
de Inteligência (Sisbin).
Esses movimentos todos respondem à exigência do
presidente Bolsonaro naquela fatídica reunião ministerial do dia 22 de abril de
ter um sistema de informações que não o deixe desprotegido. Vai daí, ao que
tudo indica, o ímpeto com que o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, se
jogou na guerra contra a Operação Lava-Jato, pretendendo centralizar em seu
gabinete todas as informações que foram coletadas nos últimos cinco anos de
investigações e denúncias.
O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco
Aurélio Mello definiu bem a situação: compartilhamento tem que ter objeto
específico, senão vira devassa. O jurista Joaquim Falcão, em live promovida
pelo jornal Valor Econômico, chamou a atenção para o fato de que o governo
Bolsonaro pretende neutralizar órgãos que têm autonomia funcional garantida
pela Constituição, como o Ministério Público e a Polícia Federal que, por
sinal, foi o primeiro a sofrer uma interferência direta do presidente da
República que está sob investigação do Supremo.
Não tendo podido nomear o amigo de sua família,
delegado Alexandre Ramagem, para a chefia da Polícia Federal, Bolsonaro trocou
seu comando, provocando a saída de Sérgio Moro do ministério da Justiça, e
agora ampliou as atribuições da Abin, aumentando o poder de Ramagem nesse
universo, e na unificação dos serviços de informações do governo.
Esses movimentos só comprovam o acerto do STF ao
barrar a transferência de dados das companhias telefônicas na integralidade
para que o IBGE pudesse fazer pesquisas para o censo neste ano de pandemia. A
relatora, ministra Rosa Weber, disse que a medida provisória “não apresenta
mecanismo técnico ou administrativo apto a proteger os dados pessoais de
acessos não autorizados, vazamentos acidentais ou utilização indevida”.
Foi seguida por 10 dos 11 ministros do STF. O
ministro Lewandowski chamou a atenção para o fato de que a maior ameaça ao
regime democrático hoje é a crescente possibilidade de que governos
autoritários, de qualquer tendência ideológica, tenham acesso a dados pessoais
dos cidadãos. Escrevi aqui a favor desse compartilhamento, mas vejo hoje que
fui ingênuo. Não estava em análise ali a idoneidade e seriedade do IBGE como
instituição, mas um governo que não é confiável.
Há na Sicília uma caverna que o pintor Caravaggio
denominou de Orelha de Dionisio, não apenas por seu formato, mas principalmente
pela lenda que diz que o tirano Dionisio I de Siracusa usava a caverna como
prisão política dos dissidentes e, devido à acústica perfeita, ficava sabendo
dos planos dos opositores.
Roberto DaMatta - Quem somos?
- O Globo
Pandemia desnuda os que se imaginam superiores
A
obviedade da pergunta fala da sua surpreendente e intrigante força. Já vivemos
guerras mundiais, mas, nesses conflitos, o inimigo tem uma visibilidade
uniformizada que obriga a saber quem somos. Somos, é claro, os bons, os
agredidos e os visionários; enquanto “ele” — o adversário que nos obriga a ter
uma bandeira — desnuda aquilo que nos falta ou que possuímos em demasia.
O
ranço de castigo da pandemia engendra uma batalha bíblica. A máscara é seu
emblema e escudo material contra um inimigo que mata impiedosamente, mas, como
não tem consciência, projeto ou plano, esses traços que definem o que somos,
lutamos no nevoeiro.
É
claro que, como sempre ocorreu com os escravos, os pobres sofrem muito mais.
Mas a desgraça é que qualquer um pode “pegar” ou “ter” o vírus. Dele, como
diziam os antigos, ninguém escapa: nem o rei, nem a rainha nem o Papa. Quem não
pega paga o preço de ver a olho nu uma estrutura social desenhada para a
injustiça e a indiferença, essas mães de uma desigualdade estrutural e, bem
pior, estruturada.
O
inimigo humano, ou humanizado como um animal selvagem, é previsível. Para ele,
somos um oponente ou um alimento. O vírus, porém, ataca como a velhice ou a bem
conhecida burrice, alérgica ao bom senso. A Covid-19 envenena o ar e interdita
o abraço.
No
Brasil, a pandemia desnuda quem se imagina especial, nobre ou superior. Essa
gente que está em todo lugar e tem a liberdade de não obedecer a nenhuma regra
ou de servir a qualquer governo. “Eu fumo há 70 anos, e meu cardiologista
morreu aos 60! Acho um abuso um sinal vermelho e, quando vejo um pedestre
atravessando a rua, acelero meu carro, principalmente se for um velho caquético
ou uma negra com o filho nos braços.” Civilização, dizem, é saber o seu lugar!
Alguns
devem ser esculhambados, outros são intocáveis (pertencem a Deus, como o João;
ou ao diabo, como Madame Satã). Se você ainda não aprendeu essa distinção, você
está perdido...
Num
Brasil pré-globalizado, um telefonema do Rio para Niterói tinha que ser
solicitado, todo mundo andava de gravata, e os pretos eram impedidos de
frequentar certos lugares porque sabiam quem eram. Até a praia podia ser
contaminada por mulatos farofeiros, e não por morenos queimados como nós.
Neste
reino da desigualdade, era raro não saber quem éramos. Tínhamos pai e mãe e
nome de família! Conhecíamos “todo mundo” — um eufemismo para os donos do poder
que até hoje existem e mostram sem cerimônias suas patas. Vivíamos (?) numa
sociedade onde todos sabiam quem eram. Não duvidávamos das nossas identidades
sociais abarrotadas de prerrogativas, privilégios, subordinação e,
consequentemente, de hipocrisia. Nesse sistema, os indesejáveis, como foi o
caso de Lima Barreto (tido como mulato pernóstico), eram banidos dos jornais.
Numa
sociedade de ideário aristocrático, na qual abundam gênios e príncipes, reis,
queridinhos e patrões, os círculos mentais estão bem demarcados. A crítica
honesta é rara; a franqueza, colega da honestidade que desmascara, é
indesejável.
Dominados
pelas gradações encarnadas em cargos, pessoas e relações, nosso “normal” é a
desigualdade estampada numa ética da pobreza e da caridade pessoal, que
reafirma a superioridade generosa de quem dá e a piedosa inferioridade de quem
recebe e claramente inibe a filantropia institucionalizada e impessoal. A
pandemia revela um sistema desenhado para produzir devedores. Convivemos mal
com cidadãos (a palavra é ofensiva), preferindo dependentes.
Cabe a pergunta: num Brasil que engendra multidões de mandões, patrões, gênios da raça, salvadores da pátria, homens de Deus e leis que variam de acordo com quem comete o crime, será mesmo preciso usar máscaras? Ou estamos todos mascarados porque sabemos bem quem somos?
Ricardo Noblat - Ministro da Justiça topa depor em segredo sobre servidores monitorados
- Blog do Noblat | Veja
Mendonça nada aprendeu com Tancredo Neves
André Mendonça, ministro da Justiça, não precisaria ter nascido
em Minas Gerais para aprender com o ex-presidente Tancredo Neves o que ele
dizia sobre segredos e conversas sigilosas. Uma vez, ao ouvir de um
interlocutor que tinha um segredo, mas que só lhe contaria se ele prometesse
guardar, Tancredo respondeu:
– Então não me conte. Se você, que é o
dono do segredo, não consegue guardá-lo, imagine eu.
Outra vez, já candidato a presidente da República em 1984,
cercado por jornalistas interessados em conversar com ele mesmo que fosse de
maneira reservada e sob o compromisso de nada publicarem, Tancredo concordou,
mas fez antes uma ressalva:
– E então, vamos conversar? Mas não em
sigilo. Esta é a maneira mais rápida, eficiente e segura de se propagar por
todo o país quem disse, o quê e onde.
É verdade que
pelo menos uma vez, Tancredo convocou jornalistas em Brasília e advertiu-os de
antemão: “Se o que lhes direi for publicado, nunca mais direi nada”. E contou
que o então presidente João Figueiredo faria uma reforma ministerial para
fortalecer a candidatura de Paulo Maluf à sua sucessão.
Em seguida, Tancredo disse quais
ministros seriam demitidos, e deu o nome dos seus substitutos. Não havia redes
sociais à época. No dia seguinte, sem citarem Tancredo, os jornais publicaram o
que ouviram dele. Furioso com o vazamento da informação, Figueiredo desistiu da
reforma. Era o que Tancredo queria.
Convidado a depor à Comissão Mista
de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso sobre
o monitoramento de servidores públicos federais da área de segurança que
se declararam antifascistas, o ministro Mendonça, primeiro, recusou. O assunto,
segundo ele, era extremamente sigiloso.
Pressionado, concordou em depor, e é o
que fará na próxima sexta-feira à tarde em sessão virtual promovida por seu
ministério. De suas casas, deputados e senadores poderão interrogá-lo à
vontade. É claro, sob a condição de nada falarem depois sobre o que o Mendonça
disse ou preferiu ocultar.
Façam suas apostas. Quantas horas depois começarão a circular nas redes sociais as confidências de Mendonça?
O
bloco Unidos Contra a Lava Jato saúda o povo e pede passagem
Mais fortes são os interesses que cada um representa
O que une o
senador Flávio Bolsonaro (Republicano), Lula (PT), o ex-governador Geraldo
Alckmin (PSDB), o deputado Rodrigo Maia (DEM) e o ministro Dias Toffoli,
presidente do Supremo Tribunal Federal? Resposta: seu desapreço pela Operação
Lava Jato.
No caso de
alguns deles, desapreço é pouco – oposição visceral. Por múltiplas razões,
algumas as mesmas, outras só parecidas. Cada um deles não é apenas cada um.
Flávio, por exemplo, é ele, seu pai e os irmãos. Lula, o PT e parte da
esquerda.
Maia é o Congresso
quase todo. Pelo menos a maioria dos deputados e uma grande fatia dos
senadores. Alckmin é o PSDB, cujas estrelas mais reluzentes se apagaram.
Toffoli representa uma parcela expressiva dos tribunais superiores, mas não
somente eles.
Flávio, o pai e os irmãos se elegeram pegando carona na Lava
Jato e exaltando seu principal líder, o juiz Sergio Moro. Agora diz que
integrantes da Lava Jato têm “interesse político ou financeiro”, como revela em
entrevista publicada, hoje, pelo jornal O GLOBO.
Finalmente, o senador admite que Fabrício Queiroz, seu parceiro
em negócios sujos, pagou várias de suas contas pessoais. E cobra do ministro
Paulo Guedes, da Economia, mais dinheiro para financiar programas sociais e
construir obras de infraestrutura.
Tudo,
naturalmente, em benefício do pai, em campanha escancarada e permanente para
obter um novo mandato em 2022 – mas essa é outra história. Flávio jura que a
produtividade no Ministério da Justiça aumentou depois da saída de Moro.
Sua birra com a
Lava Jato, que jamais havia manifestado, na verdade tem a ver com Moro,
unicamente com Moro, ou preferencialmente com Moro. O ex-juiz e ex-ministro
aspira suceder papai Bolsonaro, e isso é demais para o Zero UM.
Pulemos Lula e o
PT. São conhecidos seus motivos para querer demolir a Lava Jato. Os de Alckmin
e do PSDB, idem. A Lava Jato passou como uma motoniveladora sobre Alckmin, o
senador José Serra, o deputado Aécio Neves, e quem mais do PSDB?
Sobrou João
Doria, governador de São Paulo, que se dependesse de Bolsonaro teria sido
igualmente triturado para não lhe fazer sombra à direita. Com que roupa, mas
com que roupa Doria irá pedir votos para presidente? A imagem do PSDB foi para
o esgoto.
É fato que os
procuradores da Lava Jato de Curitiba tentaram investigar o presidente da
Câmara dos Deputados sem dizer que o faziam. Mas não é por isso que Maia quer
assistir ao enterro da Lava Jato. É porque a maioria dos seus liderados também
quer.
Maia sonha em
seguir presidindo a Câmara. O regimento interno não permite. Como não permite
David Alcolumbre (DEM-AP) reeleger-se presidente do Senado. Flávio defende a
reeleição de Alcolumbre porque ele tem colaborado com o governo.
Não defende a de
Maia porque “ele tem embarricado” muitos projetos do governo. Mas, como
ensinava o deputado Ulysses Guimarães, se há maioria no Congresso faz-se
qualquer coisa, “menos homem virar mulher ou mulher virar homem”.
Ou até isso, hoje, poderia ser feito. O que importa é que ainda não se deve descartar a hipótese de Maia e Alcolumbre ser reeleitos. E, para tal, eles precisam agradar os eleitores, muitos alvos da Lava Jato e que culpam Moro pelo seu infortúnio.
Quem imaginou que uma frente tão ampla acabaria formada para desmontar a que já foi considerada a maior e mais bem-sucedida operação de combate à roubalheira no mundo? É o que se vê. Flávio, Lula, Alckmin, Maia, Toffoli, unidos jamais serão vencidos.
Rosângela Bittar - Um país entre o AC e o DC
- O Estado de S.Paulo
O Centrão é um dos pilares do plano de reeleição do presidente Jair Bolsonaro
O governo
vai mal em todas as áreas “e pior ainda nas outras”, resume o ditado. Apesar
disso, e no sentido inverso à emergência da tragédia epidêmica, o presidente Jair Bolsonaro mantém
estabilizados os seus índices de popularidade: não cai abaixo de 20, não sobe
muito além dos 30.
São piso e teto, que não consegue dilatar, e transformam seu governo em campanha eleitoral permanente. Uma campanha que, desde 2018, nunca cessou de fato. Agora, mesmo, um dia voa ao Piauí, desafiando o PT do governo estadual; noutro vai a Bagé, terra do general Medici, símbolo da ditadura militar de que se propõe herdeiro. Tudo com um mesmo sentido.
Com a ajuda emergencial de R$ 600 presa à lapela, confundindo-se
com a magnanimidade da iniciativa, Bolsonaro espera que o eleitorado esqueça a
má figura que fez e insiste em fazer com relação à pandemia.
Precisa de cenas de popularidade explícita que, inclusive, sejam à
prova, graças às prerrogativas do cargo e da caneta, de manobras judiciais que
possam ameaçar a estabilidade do seu palanque. As previsões são sinistras.
Já o segundo pilar, a administração, deixa aos ministros, que
devem lhe oferecer outras bandeiras e motivações para que continue cavalgando
no lombo do jegue ou nos braços dos mais exaltados.
Pede a eles
que governem. No momento, governar é formular o programa Renda Brasil, para
colar a Bolsonaro o apelo emocional do Bolsa Família e outros itens de
propaganda, como o Pró-Brasil, preparado às pressas para reunir obras velhas ou
novas a serem tocadas, ou não.
Certamente
foi para viabilizar isto que o presidente mudou de opinião e autorizou o
aumento de impostos, resultado sem fantasia da ressurreição da CPMF e extinção das deduções com
médicos e escola (olhem aí, de novo, a negação da Ciência e da Saúde).
Ao Centrão, terceiro pilar do plano reeleitoral, cabem a
governabilidade e a sustentação político-partidária de sua candidatura. É bem
verdade que venceu o primeiro mandato sem este recurso, mas não estava tão
desgastado como hoje. Por isso, e por haver apostado em um único líder desse
grupo tão eclético, é que os assessores políticos correm para evitar que a onda
minguante atinja o bloco antes de ter de entrar em cena.
A primeira metade do mandato foi perdida pela guerra contra um
invisível inimigo ideológico. A segunda metade será perdida na luta para ganhar
um segundo mandato. Este será, com certeza, perdido, pois perdeu a
credibilidade para se confiar no contrário.
A sua entrega ao Centrão foi uma aposta na reeleição. Daí haver
ocorrido ao cientista político Antônio Lavareda que o governo Bolsonaro divide
seu tempo em AC (antes do Centrão) e DC (depois do Centrão). Com a carga de
ironia da invocação do tempo bíblico.
Por mais que pareça alheio à engenharia que confia mantê-lo no
topo até a realidade do voto na urna, Bolsonaro a vislumbrou quando se viu
caindo em direção ao piso, já com 25% de ótimo e bom. Saiu de fininho,
abandonou o estilo truculento e o confronto para se recuperar e avaliar melhor,
inclusive, a oposição, que o surpreendeu. Não esperava tão cedo a ação da
Justiça nem os movimentos de rua dos seus adversários.
Ainda não chegou ao seu máximo, os 34% que teve no primeiro turno
de 2018. Mas está mais perto desta marca do que dos 25% do seu teto baixo.
Os mesmos cálculos que alimentam Bolsonaro alimentam também seus opositores. As pesquisas que registram o teto e o piso do otimismo do presidente indicam também a existência real de 70% de insatisfeitos. Um contingente para virar qualquer jogo. Donald Trump estava absoluto até outro dia. Com Joe Biden na campanha, chegou àquele ponto em que o medo da derrota inspira o apelo à anulação, ao adiamento, à fraude futura. Por que não se repetir o mesmo no Brasil?
Vera Magalhães - Passando a boiada
- O Estado de S.Paulo
Bolsonaro e seus soldados estão fazendo de bico fechado aquilo que alardearam com gravadores ligados na reunião dos círculos do inferno
Não se pode dizer que quem permaneceu no governo depois da dantesca reunião ministerial de 22 de abril não seguiu as ordens do chefe.
Escancarar a questão das armas, dar acesso a Jair Bolsonaro a relatórios de inteligência, criar um serviço de arapongagem paralelo e “passar a boiada” na desregulamentação ambiental prescindindo do Congresso. Foi tudo dito, sem medir as palavras. Está tudo sendo feito.
André Mendonça ganhou
o lugar de Sérgio Moro pela
sua lealdade ao presidente e agora terá de explicar ao Supremo Tribunal Federal e
ao Congresso se e com que intenção mandou produzir dossiês sobre
funcionários públicos, acadêmicos e sabe-se lá mais que supostos “adversários”
do presidente.
Parlamentares
como Alessandro Molon (PSB)
e Randolfe Rodrigues (Rede)
também acionam o STF e apresentam projetos de decreto legislativo para que
Bolsonaro explique um decreto que mexe na estrutura da Abin e cria um Comitê de
Inteligência Nacional destinado a planejar, coordenar e implementar ações de
“enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da
sociedade”. Vago e amplo o suficiente para virar um SNI bolsonaresco.
O silêncio de Bolsonaro e seus malabarismos com emas e caixas de cloroquina deram a alguns incautos a impressão de que ele teria se moderado. O capitão e seus soldados, no entanto, estão apenas fazendo de bico fechado aquilo que alardearam com gravadores ligados na reunião dos círculos do inferno.
CONGRESSO
Sem Maia,
plano de reeleição de Alcolumbre perde força
Rodrigo Maia (DEM-RJ) pode
esperar a insistência de Davi Alcolumbre, seu correligionário e
presidente do Congresso, para que embarquem juntos na tentativa de aprovar uma
Proposta de Emenda à Constituição para que possam se reeleger em fevereiro do
ano que vem. Maia repetiu que não quer novo mandato (o quarto consecutivo) na
segunda-feira no Roda Viva. Mas, diante de um pedido de Alcolumbre e diante de
um apelo de que seria o único nome de “consenso” em partidos agora
fragmentados, não faria esse “sacrifício”? Dividir o blocão pode ter sido uma
jogada de mestre para não deixar nenhum nome ganhar musculatura.
NO PALANQUE
Eleição
municipal será 'teste' do poder de voto do auxílio emergencial
Ninguém no Congresso ou mesmo no governo tem ilusões de que será
possível simplesmente interromper o auxílio emergencial quando se encerrar a
sua prorrogação, neste mês. Já se discutem novos valores e novas regras para a
concessão de um valor decrescente, que ajude as famílias num momento em que a
pandemia ainda come solta e a economia está longe de se recuperar.
Mas a principal razão a ditar a sobrevida da transferência de
renda é político-eleitoral. Vitaminado após o “banho de povo” da ida ao
Nordeste, Jair Bolsonaro não vai desmamar de uma vez esse novo eleitor
potencial.
Quer testar o efeito do auxílio nas eleições municipais e seu potencial de beneficiar candidatos aliados do Planalto, para projetar o efeito que uma turbinada na transferência direta de recursos, seja pelo tal Renda Brasil ou como venha a se chamar o programa, pode ter em 2022, quando precisará de todo combustível que puder estocar para se reeleger.
Bruno Boghossian – ‘O meu particular’
- Folha de S. Paulo
Bolsonaro pode monitorar adversários e ampliar os poderes de vigilância de órgãos de informação
Salvar a própria família e blindar aliados foi só um capítulo da história. Depois de interferir em órgãos de investigação para evitar problemas para seu grupo, o governo Jair Bolsonaro avançou sobre a estrutura oficial de inteligência do país em busca de benefícios políticos.
Com desembaraço, o presidente e seus auxiliares parecem dispostos a explorar esse aparato de informações para servir aos interesses específicos do Palácio do Planalto. Nas últimas semanas, o governo usou essas ferramentas para monitorar adversários e ampliar os poderes de vigilância desses órgãos.
O dossiê sigiloso sobre integrantes de organizações críticas a Bolsonaro, elaborado dentro do Ministério da Justiça, é uma amostra grátis desse trabalho. Em junho, o governo decidiu listar servidores da área de segurança que eram identificados como participantes de um “movimento antifascista” e enviou seus nomes para órgãos de investigação, como revelou o repórter Rubens Valente.
Ninguém quis explicar por que a estrutura estatal foi utilizada para produzir algo que pode ser classificado como um catálogo de perseguição. O ministro André Mendonça tentou se esquivar da responsabilidade. Se ele não sabia da confecção do documento, perdeu as condições de permanecer no posto. Se sabia, deve responder fora do cargo.
Bolsonaro demonstra apetite por um aparelho de informações que funcione a seu favor. Na semana passada, ele editou um decreto que mudou a estrutura da Abin e criou um Centro de Inteligência Nacional para executar ações “voltadas ao enfrentamento de ameaças à segurança e à estabilidade do Estado e da sociedade”. A descrição é vaga o suficiente para dar superpoderes ao órgão.
Na famosa reunião ministerial de 22 de abril, Bolsonaro reclamou do aparato de informações do governo depois de citar “pessoas aqui de Brasília” que se reuniam “de madrugada, pra lá, pra cá”. Ele disse contar com um sistema próprio: “O meu particular funciona”. Aos poucos, a estrutura oficial pode se tornar particular.
Hélio Schwartsman - A curva e o aprendizado
- Folha de S. Paulo
É preciso achatar a curva
para ganharmos tempo
Uma
das razões para tentar achatar a curva de
contágios da Covid-19 é que ganhamos tempo. E é o tempo que nos
permite, entre outras coisas, desenvolver vacinas, remédios e aprender mais
sobre a doença e como tratá-la.
Imunizantes
e drogas com ação específica contra o Sars-CoV-2 permanecem no campo das
promessas. O processo de aprendizado dos médicos, por outro lado, não só já
está em ação como parece ter entregado resultados.
Uma meta-análise de Armstrong e colaboradores publicada em "Anaesthesia", que avaliou 24 estudos envolvendo 10.150 pacientes, mostrou que a mortalidade por Covid-19 em UTIs da Ásia, Europa e América do Norte caiu de mais de 50% no final de março para 41,6% no final de maio. Ainda é uma taxa alta se comparada à de outras pneumonias virais (22%), mas é uma redução significativa num espaço de apenas dois meses.
A melhor explicação para o fenômeno é justamente a curva de aprendizado. Nesse período, os profissionais de saúde melhoraram o manejo do paciente grave e a prevenção de complicações. A intubação precoce cedeu espaço à ventilação não invasiva com pronação. Não surgiu nenhum medicamento milagroso, mas médicos descobriram que drogas velhas como heparina, antibióticos e corticoides, dadas na hora certa ao paciente certo, fazem diferença.
O interessante é que essa sabedoria se espalhou por redes informais entre os intensivistas muito antes de que essas abordagens fossem referendadas por estudos. A maioria, aliás, ainda não foi.
Gostamos de pensar o método científico como uma série de testes específicos a que submetemos teorias para delas extrair a "Verdade". Aspectos formais à la Popper são de fato fundamentais. Só eles nos permitem distinguir tratamentos efetivos de sangrias e bruxedos. Mas, no mundo real, a ciência avança de forma bem mais caótica, imprevisível e sujeita a erros, que às vezes até se perpetuam.
Ruy Castro* Para ser bolsonarista, basta ser
- Folha de S. Paulo
Dispensa-se de pensar, mas exige-se vista grossa à traição das promessas de campanha
A vantagem de ser bolsonarista é a de que não é preciso pensar.
Basta ser. Ser bolsonarista é apoiar um discurso que encolhe a cada dia de
acordo com as conveniências de seu chefe. Como elas não param de surgir, o dito
discurso ameaça chegar à abstração pura, impossível até de ser entendido, o que
não fará diferença para seus adeptos. Se Bolsonaro decretar que seus seguidores
devem usar a cueca por cima das calças, eles obedecerão —o que facilitará
identificá-los e avaliar o seu peso real na população.
Ungido por essa aura de infalibilidade que eles lhe conferiram,
Bolsonaro tem traído uma a uma as promessas de campanha que hipnotizaram
seus eleitores.
O discurso anticorrupção, por exemplo, esfarela-se nas jogadas
para silenciar a Lava Jato, cuja defesa foi decisiva para elegê-lo. Só o
abandono dessa bandeira já devia bastar para intrigá-los —mas, como estes abdicaram
de pensar, Bolsonaro segue alegremente no esvaziamento dos órgãos de
investigação, no que é aplaudido em silêncio pelo PT. Pelo visto, essa súbita e
divertida identificação entre Bolsonaro e Lula não abala seus fãs.
Tal esvaziamento, comandado pelo funcionário que Bolsonaro
designou para a tarefa, o procurador-geral Augusto Aras, é necessário para proteger seus
novos aliados: os políticos de quem passou a depender para protegê-lo contra a
ameaça de impeachment. O pagamento desse apoio não se limita aos seus
eleitores, mas atinge todo o país, com a entrega de ministérios, conselhos e
estatais à "velha política" que ele dizia combater.
Outro mistério que passa ao largo de seus seguidores é que, ao
promover o desmatamento da Amazônia, o extermínio dos
povos indígenas pela ocupação de suas terras e a sistemática destruição de
áreas protegidas, Bolsonaro está beneficiando uma categoria bem específica de
negocistas. Isso ele não prometeu em campanha.
*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues
Vinicius Torres Freire – Guedes contra os ricos de classe média
- Folha de S. Paulo
Reforma tributária do governo reduz FGTS, aumenta IR e custos de serviços para o 10% mais rico
A reforma tributária Bolsonaro-Guedes quer tirar R$ 32 bilhões por ano dos trabalhadores com carteira assinada, porque pretende diminuir a contribuição patronal para o FGTS. Quer acabar com as deduções com despesas médicas e educação no Imposto de Renda ou limitá-las —se acabasse com tudo, seriam outros R$ 20 bilhões anuais.
O imposto que substituiria o PIS/Cofins, a CBS, deve aumentar a carga tributária, em particular pesando mais sobre serviços consumidos pelos mais ricos, que se chamam de classe média (que pagam escolas e outros cursos, profissionais de saúde, terapeutas em geral, advogados, arquitetos etc.). Uma nova CPMF vai encarecer tudo para todo mundo e vai reduzir ainda mais o rendimento das aplicações financeiras. Lucros e dividendos seriam mais tributados, pegando de jeito profissionais liberais.
Em resumo, o 10% mais rico do país, que tanto votou em Jair Bolsonaro, não parece ciente de que está para levar uma tunga do seu eleito. Esse 10% mais rico se chama de “classe média”, pois mede seu padrão de consumo com a escala de países como Estados Unidos e aqueles da Europa ocidental. A maioria de fato não é “rica”, nesse critério, mas está no topo da pirâmide da pobreza brasileira.
O governo quer reduzir a contribuição patronal para o FGTS de 8% para 6% —seria um corte de R$ 32 bilhões na arrecadação anual do fundo (segundo dados de 2019).
Em 2019, a Receita Federal estimou que os 12,9 milhões de declarantes do IR pelo modelo completo deixaram de pagar R$ 4,6 bilhões de imposto por causa da dedução com instrução e outros R$ 15,5 bilhões com a dedução de despesas de saúde. Nas contas dos economistas Fábio Goto e Manoel Pires, a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (que o governo quer no lugar do PIS/Cofins) aumentaria a carga tributária (publicaram essa análise no Observatório de Política Fiscal do Instituto Brasileiro de Economia, Ibre, da FGV).
Essas contas são meras primeiras aproximações. Não é assim que se calcula efeito de imposto. A redução do custo do FGTS pode de fato ajudar a criar algum emprego, diminuindo a perda de receita total do fundo (mas não o pagamento para cada trabalhador). Acabar com as deduções de saúde e educação pode ser um tiro pela culatra (os contribuintes podem recuperar as perdas declarando pelo modelo simplificado), para dar outro exemplo. Mas vai ter tunga, caso o plano Bolsonaro-Guedes vá adiante.
Em alguns casos, não se trata de má ideia, a depender do destino desses dinheiros. O problema é que a reforma tributária do governo vai sendo chutada, vazada, rumorejada ou apresentada à matroca. Desde o ano passado, é um monte de balões de ensaios, de “vamos ver se cola”, de tentativas reiteradas de dar um jeitinho de passar uma CPMF. Etc.
Isso não presta.
Bolsonaro está para chegar à metade do seu mandato (está em 40%) e seu governo não tem um plano organizado de reforma tributária (sim, eu sei, é uma crítica retórica, não existe governo em quase parte alguma).
Não é possível entender uma reforma de impostos sem conhecer suas partes, como se deixa de arrecadar, como se passar a recolher imposto etc. O óbvio. Não é possível fazer contas ou saber quem paga a conta. Nada. É uma mixórdia, parece conversa de quem faz rolo (como Bolsonaro dizia de seu amigão Fabrício Queiroz), de quem gosta de conto do vigário, de negócio da China.