- O Estado de S.Paulo
Urge conter e mudar a dinâmica política que levou Bolsonaro ao poder e ele radicaliza
Os argentinos já viram este filme antes: o amargo regresso a um colapso econômico. Por que esse enredo se repete há pelo menos quatro décadas, abortando ciclos de crescimento relativamente curtos e reiterando a trajetória de declínio econômico daquela que há cem anos era, de longe, a nação mais rica e com a melhor educação pública de toda a América Latina? A resposta está num padrão de (des)governança que se estabeleceu no país vizinho ao longo da segunda metade do século 20.
Digo isso com desgosto. E com preocupação, porque vejo aqui sinais crescentes da enfermidade política que ali se desenvolveu. A doença consiste na politização das instituições do Estado e na polarização da sociedade em campos opostos e inconciliáveis. Na Argentina, com altos e baixos, ela evoluiu ininterruptamente a partir do primeiro governo de Juan Domingo Perón, deposto e exilado por um golpe militar em 1955.
É clichê tratar Getúlio Vargas e Perón como gêmeos siameses. Apesar de semelhanças, eles foram diferentes. Ambos lideraram e simbolizaram a incorporação de massas de trabalhadores urbanos na arena política e na esfera da cidadania regulada por um Estado tutelar. Mas Perón e o peronismo se estenderam muito além de Vargas e do varguismo. Não apenas no sentido óbvio de que o presidente argentino sobreviveu a seu homólogo brasileiro em mais de 20 anos, mas, principalmente, em termos da intensidade e duração dos efeitos políticos que provocaram.
O populismo peronista foi muito mais longe na mobilização política e sindical das massas a partir do Estado, na redistribuição da renda e na intervenção no campo da cultura (seja para exemplarmente franquear aos trabalhadores acesso a bens simbólicos, como o aristocrático Teatro Colón, seja para purgar as universidades públicas de professores não alinhados). Perón pôs o Estado a serviço da consolidação e tutela do movimento que o sustentaria como líder máximo. Foi deposto a balas e tiros de canhão e proscrito da vida política de seu país por quase 20 anos.
Em Vargas, o líder populista convivia com o político tradicional e o estadista republicano de inspiração positivista, preocupado com a administração “científica” e modernizadora do Estado. O varguismo não teve vida longa depois do suicídio de seu líder. O peronismo, nas suas mais diferentes versões, vive até hoje.
O primeiro período de Perón no poder e o golpe militar de 1955 produziram um racha profundo e duradouro na política, na sociedade e na cultura da Argentina. O embate entre peronistas e antiperonistas se fez à custa da independência e impessoalidade das instituições do Estado. A politização penetrou a burocracia civil, a magistratura, as Forças Armadas, a estrutura sindical corporativa, o empresariado e mesmo a Igreja Católica.