Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
sábado, 16 de janeiro de 2021
Merval Pereira - De quem é a culpa?
Ricardo Noblat - Bolsonaro colhe uma derrota que poderá abreviar o seu mandato
O
Brasil só teria a ganhar com isso
Políticos de faro aguçado e olhar de águia, alguns com mandato e outros sem, detectaram nos últimos dias o crescimento do número de deputados federais e de senadores favoráveis à abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro.
Isso
poderá se dar enquanto Rodrigo Maia (DEM-RJ) ainda for presidente da Câmara – e
faltam apenas 16 dias para que deixe de ser. Ou então se o deputado Baleia
Rossi (MDB-SP), candidato de Maia e da oposição ao governo, sucedê-lo no cargo.
Bolsonaro,
como qualquer presidente da República até mesmo na época da ditadura militar,
coleciona derrotas. O Presidente pode muito, não tudo. Mas ele só faz perder
desde que decidiu tratar a Covid-19 como se não passasse de uma reles
gripezinha.
Não
procedeu assim somente por ignorância, embora no seu caso a ignorância seja
abissal, também por cálculo. Acreditou que o vírus seria detido matematicamente
depois de infectar 70% dos brasileiros. Acima de tudo, o importante era salvar
a economia.
Que morressem, portanto, os que tivessem de morrer – e Bolsonaro jamais imaginou que morreria tanta gente que não fosse apenas velha e sofresse de outras doenças. O kit de drogas ineficazes recomendado por ele era para dar tempo ao tempo.
Sergio Fausto* - Na defesa da democracia, quem cala consente
Bolsonaro
bate na mesma tecla de Trump, a mais golpista e antidemocrática
Enquanto
assistia, horrorizado, ao ataque das tropas de choque de Donald Trump ao
Congresso americano, a expressão “this is
a cautionary tale” me vinha e voltava à cabeça. Não encontrei forma
sintética para traduzi-la, mas não é difícil explicar o seu significado.
Simplificadamente, cautionary
tale é uma história (no passado grafaríamos estória) que
alerta o leitor ou ouvinte sobre o risco de incorrer em grave perigo se tomar
ou mantiver irrefletidamente certas iniciativas.
As
imagens das milícias da extrema direita americana assaltando o Capitólio valem
mais do que mil palavras: as forças tradicionais de direita que se aventuram a
pular na garupa de líderes populistas autoritários, imaginando que cedo ou
tarde lhes arrebatarão as rédeas, terminam pisoteadas pelo fanatismo de seus
seguidores. É o que experimentaram os sabujos de Trump, que à última hora
constaram o que já era obvio há muito tempo: o presidente dos Estados Unidos
não hesitaria em jogar o país no abismo da violência e da tirania para reter o
poder e/ou salvar a própria pele.
Uma
coisa é ler sobre como as forças tradicionais de direita na Itália e na
Alemanha dos anos 20 e 30 do século passado se aliaram ao nazi-fascismo para
depois se tornarem, também elas, vítimas dos horrores do totalitarismo. Outra
bem diferente é ver a história sendo de algum modo reeditada – ela nunca se
repete – em cores e ao vivo, numa profusão de imagens aterradoras. Os
milicianos que vandalizaram o Congresso não queriam apenas a cabeça de Nancy
Pelosi, a presidente democrata da Câmara, mas também a do vice-presidente
Mike Pence, que alguns ameaçavam enforcar, como mostram vídeos e mensagens
de Twitter.
Felizmente, as instituições americanas resistiram ao mais duro teste a que já foram submetidas, embora não se saiba ainda quais serão as consequências de longo prazo da trágica passagem de Trump pela Casa Branca.
Oscar Vilhena Vieira* - Vandalismo constitucional
Proteger
a integridade das eleições será o maior desafio dos que prezam pela democracia
Eleições
livres e justas e a alternância no poder são elementos fundamentais à vida
democrática. A maioria dos governantes
populistas, no entanto, resiste a deixar o poder após uma derrota eleitoral
ou mesmo ao término de seus mandatos, como nos alerta Yascha Mounk, autor de “O
Povo contra a Democracia”.
Na
medida em que o líder populista se define como único e autêntico representante
da vontade popular, um eventual resultado desfavorável nas urnas sempre poderá
ser atribuindo a falhas no processo eleitoral. Trata-se, portanto, de uma estratégia
preventiva de populistas autoritários para buscar se manter indefinidamente no
poder.
Como outros populistas, desprezou as ameaças da pandemia, promoveu aglomerações, combateu a ciência e o uso da máscara, contribuindo, assim, para a morte de quase 400 mil compatriotas. Tudo isso sob olhar cúmplice de grande parte dos republicanos, de empresas de tecnologia e de outros setores potentes da economia que agora, constrangidos, dele buscam se afastar.
Adriana Fernandes - Por que se calam?
Na
elite do nosso empresariado, não tem dia D nem hora H. É S, de silêncio
Desde
o início da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro e apoiadores,
sempre quando confrontados sobre a negação da realidade da covid-19, saem com o discurso de que
“economia é vida” e que o Brasil precisa voltar à
normalidade mesmo diante de um cenário de contaminação e mortes.
Em
maio, no pico inicial da doença, Bolsonaro atravessou a Praça dos Três Poderes
na direção do Supremo Tribunal
Federal acompanhado de um grupo de empresários para
fazer pressão para que as medidas restritivas nos Estados fossem amenizadas.
Os empresários que estavam junto com o presidente naquele dia pregavam a volta dos negócios o mais rápido possível e a flexibilização do lockdown nas cidades porque, na visão deles, comprometia a recuperação econômica. A pandemia continuou e estímulos bilionários do governo federal garantiram os negócios (não houve, porém, a contrapartida de um planejamento sério para a boa prática de distanciamento social). A atividade econômica começou a se recuperar.
João Gabriel de Lima - Um quebra-cabeça chamado Brasil
Cabe
ao próximo presidente triunfar onde os últimos fracassaram: apontar um rumo
Uma
lista de “pequenas alegrias da vida adulta” – tomo de empréstimo o título da
música de Emicida –
circula nas redes sociais. Ela traz coisas boas que só existem no Brasil:
sorvete de tapioca, mergulho vespertino em Ipanema, bateria de escola de samba,
frango com batata frita. Se ser carioca é um estilo de vida, e não uma
designação de origem, poucos cariocas são mais cariocas que o jornalista
escocês Andrew
Downie, o autor da lista. Fã de carnaval e futebol, ele é
biógrafo do doutor Sócrates e torce fervorosamente pelo Hibernian – time que
sempre chega perto do título escocês, mas não vence o campeonato desde 1952.
Saindo do terreno da memória afetiva, e indo para o universo da economia e das políticas públicas, temos várias razões para sentir orgulho do Brasil. Muitos Estados têm programas de excelência em Educação, como Espírito Santo, Pernambuco e o sempre citado Ceará. O Congresso criou um auxílio emergencial a toque de caixa durante a pandemia – programa que temos a obrigação ética de substituir urgentemente – e reduziu a pobreza em 2020. Domamos a inflação, somos referência em agricultura e a movida de startups em São Paulo é a mais vibrante da América Latina. Essa lista de façanhas surgiu, com facilidade, numa conversa com um dos maiores especialistas em Brasil, o economista José Roberto Mendonça de Barros, colunista do Estadão e personagem do minipodcast da semana.
Demétrio Magnoli* - Aliança faustiana
Progressistas
que celebram cancelamento da conta de Trump buscam pacto com plutocratas da
internet
“Não me diga que ele foi banido por violar as
regras do Twitter”, tuitou o opositor russo Alexey Navalny sobre Trump, “eu
recebo aqui ameaças de morte todos os dias, há anos, e o Twitter não bane
ninguém (não que eu peça isso)”. Twitter, Facebook e congêneres são veículos de
crimes contra a humanidade. Em Mianmar, serviram à campanha de limpeza
étnica dos militares contra a minoria rohingya e, na Índia, à operação
oficial de anulação
da cidadania dos muçulmanos de Assam. Os progressistas que celebram o cancelamento
da conta de Trump buscam uma aliança faustiana com os plutocratas da
internet.
Navalny erra apenas ao definir como censura o gesto do Twitter. Censura é, sempre, um ato estatal contra a liberdade de expressão. O princípio da liberdade de expressão abrange também o direito de empresas privadas de se dissociar de discursos que consideram intoleráveis. Mas que ninguém se engane: no caso das plataformas globais de mídias sociais, os banimentos seletivos não derivam de padrões éticos mas de cálculos de negócio.
Marcus Pestana* - As repercussões globais dos acontecimentos nos EUA
Como
citou, certa vez, o senador americano Daniel Patrick Moynihan, “Todo mundo tem
direito às suas próprias opiniões, mas não a seus próprios fatos”. Donald
Trump, seus “engenheiros do caos” e suas verdades alternativas creem que é
possível impor uma narrativa descolada da realidade a partir da repetição
exaustiva da mentira e da manipulação dos algoritmos nas redes sociais, e assim,
mudar as regras do jogo político e a face da sociedade.
A insistência exaustiva sobre fraudes nas eleições foi disseminada bem antes. Diante dos resultados, sucessivos recursos judiciais alimentaram o clima golpista desejado. Paralelo a isso, se deu a pressão sobre as eleições dos delegados ao Colégio Eleitoral. Já na reta final, Donald Trump pressionou o secretário de estado da Geórgia, o republicano Brad Raffensperger, a “encontrar votos” que lhe dessem a vitória. Não satisfeito, Trump infernizou a vida de seu vice e presidente do Senado, o republicano Mike Pence, para que não sancionasse a vitória de Biden.
Dora Kramer - Atentos e fortes
Olho
vivo e faro fino do mundo institucional impedirão Bolsonaro de atear fogo à
eleição
Dois
fantasmas assombram a eleição presidencial de 2022: a reedição por mais quatro
anos de um governo ruim com tentações autoritárias e a derrota desse mesmo
governo com as consequências arquitetadas e anunciadas pelo candidato
presidente de atear fogo às vestes da legitimidade do pleito, alegando fraude
no sistema eletrônico de votação.
Um
moinho de vento, mero pretexto para armar confusão, mas contra o qual é preciso
o país estar atento, forte, de olho vivo e com todos os botões de faro fino
acionados. Aqueles mesmos atributos que boa parte dos analistas da cena
política deixamos de lado em nome de uma suposta complexidade de um jogo que
não deveria nem poderia ser vencido pela simplificação da realidade brasileira,
mas foi.
Está feito, mas pode ser desfeito. A boa notícia é que o presidente Jair Bolsonaro não é tão esperto quanto pensa. Fosse, não teria mostrado as armas com tanta antecedência nem exposto sua estratégia com clareza tal a ponto de dar tempo e criar espaço para reação.
Alon Feuerwerker - E o interesse nacional?
O
banimento de Trump exige um debate sobre princípios e convicções
O debate público sofre quando é inteiramente capturado pela fratura política, e daí a independência do pensamento entra em bloqueio. Uma consequência é o efeito manada, as pessoas são arrastadas pela turba e frequentemente acabam indo contra o próprio interesse. Acontece agora, no episódio do cartão vermelho das big techs para o presidente americano Donald Trump.
Alguns
até pararam para pensar “o que eu ganho se as big techs, sob a batuta — ou com
medo — da Casa Branca e do Capitólio, tiverem o poder de eliminar qualquer um
do espaço de formação da opinião pública?”. Entretanto são poucos os
sinceramente preocupados. A esmagadora maioria do campo antitrumpista, lá e
aqui, vibrou.
Mas
e nós? Se o Brasil fosse um jogador potente na corrida global da alta
tecnologia, ainda vá lá. Poderíamos ser sócios minoritários da inédita
concentração de poder pelos monopólios tecnológicos sediados nos Estados
Unidos. Nesse jogo, porém, nós temos força apenas relativa. Interessa ao Brasil
que decisões de tamanha gravidade sejam tomadas nos Estados Unidos sem que
ninguém mais no mundo, além da Casa Branca e do Capitólio, possa influir?
Trump não foi apenas banido das redes. Sites e aplicativos ligados ao campo político que ele representa passaram a ser excluídos do acesso ao hardware indispensável às operações. E a gravidade da coisa foi tanta que levou líderes como Angela Merkel, insuspeita de simpatia ao trumpismo, a demonstrar insatisfação.
Murillo de Aragão - Política e redes sociais
Banir
Trump pareceu sensato, mas essa não é uma questão trivial
Ao
incitar os protestos no Capitólio, sede do Congresso dos Estados Unidos, em
Washington, na quarta-feira 6, contra a confirmação de sua derrota nas urnas, o
presidente Donald Trump se tornou uma espécie de líder de seita radical e se
afastou do mundo político que o elegeu em 2016. Entre outras consequências, a
sua conduta causou uma ruptura dentro do seu partido — o Republicano —, bem
como reforçou a rejeição a si próprio em boa parte do establishment americano,
onde ele já teve importantes aliados. E, ainda, impulsionou um pedido de
impeachment, que pode afastá-lo da vida política.
Por causa dos acontecimentos, o presidente dos Estados Unidos foi banido das redes sociais. Considerando o histórico de seu comportamento e sobretudo a sua incrível habilidade para criar polêmicas, bani-lo das redes pareceu sensato e adequado. Afinal, se Trump as utiliza para pregar a desordem institucional, ele estaria cometendo um crime, e as redes sociais poderiam ser acusadas de cumplicidade se ficassem omissas. Mas esta não é uma questão trivial.
Entrevista | Octavio Amorim Neto: “Militarização distorce processo político”
Por
Malu Delgado | Valor Econômico
SÃO PAULO - Quais são as consequências, para a democracia, quando as Forças Armadas estão no centro da arena política, como no caso brasileiro? A pergunta mobiliza há dois anos o cientista político Octavio Amorim Neto, professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Em novembro passado, ele publicou um artigo intitulado De volta ao centro da Arena: causas e consequências do papel político dos militares sob Bolsonaro, no “Journal of Democracy”, publicação que é referência mundial sobre o tema. Em parceria com Igor Acácio, Amorim Neto reflete sobre as dificuldades atuais. E não é só o Brasil. Também a América Latina vivencia esse fenômeno, enfatiza.
Em
entrevista ao Valor, por videoconferência, Amorim Neto ressalta o problema
de termos em órgãos de comando os militares, “organização opaca e radicalmente
verticalizada, baseada na hierarquia e na obediência”. Ao formar um ministério
com quase 40% de militares e espalhar profissionais das Forças Armadas em mais
de seis mil postos do governo, Jair Bolsonaro revela que sabe exatamente o que
faz, pois consegue dissuadir o Congresso e a oposição de qualquer tentativa de
impedimento. A incerteza sobre o grau de adesão da cúpula militar a um eventual
golpe de Bolsonaro numa eventual tentativa de reeleição em 2022 é um ativo que
o presidente explora para se manter forte no poder. A seguir, trechos da
entrevista:
Valor: A América Latina já é vista por acadêmicos como a “terra das democracias militarizadas”. Quais indícios temos sobre isso?
Octavio
Amorim Neto: A pandemia de covid-19 reforçou essa tendência, mas os
problemas já estavam ficando patentes antes de 2020. O melhor exemplo é o
México, que teve longo período de regime autoritário, com o PRI. O país se
democratizou na década de 90, e militares tinham papel muito pequeno no
governo. No começo do século 21, por conta do narcotráfico, vem uma reversão de
um processo histórico de quase meio século, com a entrada de militares na arena
política. Veio a eleição de [Andrés Manuel] López Obrador e a presença de
militares aumentou mais ainda. O caso mexicano, junto com o brasileiro, são os
dois mais chocantes de militarização recente. Houve, também, o golpe na
Bolívia, por conta da última tentativa de reeleição do Evo Morales. Equador
Peru e Colômbia sempre tiveram presença muito forte das Forças Armadas, seja
para combater o crime ou para lidar com desastres naturais, ou reprimir
protestos, como o que vimos no Chile, um país que era tido como democracia
exemplar. Mas no Chile os militares viram as péssimas consequências e saíram.
Esses são grandes casos que trouxeram a atenção da academia latino-americana e
internacional.
Valor: O
senhor aponta o governo Bolsonaro como sui generis, com 39% do ministério
ocupado por militares, e 6 mil deles no governo. Quais as consequências disso?
Amorim Neto: Em primeiro lugar, Bolsonaro conseguiu criar um fator de dissuasão de tentativas de destituição. A entrada dos militares ajuda a evitar a repetição de um cenário como [Fernando] Collor e Dilma [Rousseff]. A experiência recente do Brasil com o regime militar ainda está viva na memória da classe política. O Brasil tem memória curta, mas de vez em quando esses fantasmas do passado renascem abruptamente. Os militares, desde 1989, são um dos principais atores políticos domésticos do país. Houve a ilusão, na comunidade acadêmica, de que o assunto foi resolvido no começo do século 21. Olha a surpresa que tivemos, a partir de 2018, e não apenas com a eleição de Bolsonaro. Em fevereiro de 2018 que tivemos o primeiro ministro da Defesa, militar, em quase 20 anos, o general [Joaquim Silva e] Luna, nomeado por Michel Temer. Em segundo lugar, Bolsonaro, apesar de estar nas política há três décadas, não tinha quadros. E onde presidentes buscam quadros? Em organizações e instituições em que confiam. Desde janeiro de 2019 eu denuncio as possíveis consequências negativas dessa militarização do governo. O melhor exemplo agora é o general [Eduardo] Pazuello. No regime democrático, a lealdade ao presidente da República tem que ser limitada. Um ministro de Estado não pode ser absolutamente leal ao presidente, tem que falar o que pensa. Se o presidente discorda, ele pede demissão e não acontece nada. No governo Bolsonaro, é totalmente diferente. Discordou, imediatamente vem o ataque da militância digital, e, em seguida, a demissão. Ou se subordina, como o Pazuello.
Míriam Leitão - Um joelho sobre o nosso pescoço
É
mais do que Manaus, é o Amazonas inteiro. É mais do que o Amazonas, é o Brasil
que não consegue respirar. A tragédia dos amazonenses é a de todos nós. No
pescoço do país, retirando o oxigênio, há uma pandemia e o peso de um péssimo
governo. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, o submisso, na quinta-feira à
noite, ao lado do presidente, disse que Manaus estava em colapso. Falou como se
não fosse ele o ministro. Era o reconhecimento do seu próprio fracasso, mas ele
responsabilizou a localização geográfica da cidade e a falta da cloroquina.
“Outro fator é que Manaus não teve a efetiva ação no tratamento precoce”,
disse, usando o novo nome do remédio ineficaz prescrito por Bolsonaro.
O promotor que entrou no hospital carregando o cilindro com ar, comprado por ele, e que chegou no momento exato em que seu filho iria parar de respirar. O choro dele dizendo que viu pessoas morrendo no caminho até salvar o filho. A cidadã que gravou um vídeo explicando o drama que a cidade vivia. A enfermeira que pediu “orem pelo Amazonas”. Estados se preparando para receber bebês prematuros. São pedaços de um filme de horror que pode se espalhar pelo país.
Cristina Serra - Bolsonaro merece um tribunal de Nuremberg
O
Brasil governado por criminosos não é um perigo mortal apenas para os
brasileiros
Depoimentos
de médicos e enfermeiros em redes sociais, imagens de desespero nos hospitais,
documentos, ordens para aplicar cloroquina ou "tratamento
precoce" contra o vírus, testemunhos de parentes das vítimas.
Tudo o que puder ser usado como prova de crime contra a saúde pública deve ser
guardado pelos cidadãos.
Há de chegar o dia em que os responsáveis por essa tragédia brasileira irão sentar-se no banco dos réus. Se as nossas instituições parecem sedadas, quem sabe organismos multilaterais, como o Tribunal Penal Internacional (que já examina uma ação contra Bolsonaro anterior à pandemia) ou o Conselho de Direitos Humanos da ONU, atentem para a gravidade do que acontece aqui.
Hélio Schwartsman - O general Pazuello e a minha vó
No
Brasil, a autoridade sanitária repete as crenças (erradas) de minha avó
Custou-me
acreditar no que li. Pessoas estão morrendo asfixiadas em Manaus por falta de
oxigênio nos hospitais, e o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, atribuiu
o colapso do sistema de saúde manauara ao aumento da umidade e ao fato de
médicos locais não prescreverem "tratamento precoce".
O
general dificilmente poderia estar mais errado. Ecoando as recomendações de
minha avó, ele acha que o problema é as pessoas saírem na chuva e não tomarem
cloroquina. No mundo real, é o clima seco, e não o úmido, que favorece as
infecções respiratórias, e, apesar de a cloroquina já ter sido esquadrinhada
por cientistas, nenhum estudo de qualidade demonstrou que ela tenha efeito
importante contra a Covid-19.
A explicação científica mais geral para o caos em Manaus está na curva exponencial. Epidemias se caracterizam justamente por concentrar muitos casos num intervalo curto de tempo. Sem medidas de contenção, um vírus pode entrar em propagação exponencial e saturar rapidamente até os mais robustos sistemas de saúde.
O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais
Governos
ignoraram alertas científicos e demoraram a tomar medidas para conter contágio
O
pior aspecto da tragédia causada pelo novo coronavírus em Manaus é que ela era
não apenas previsível, mas foi prevista. Desde novembro, os números de
infectados e mortos por Covid-19 vêm subindo em todas as regiões, em especial
no Norte do país. Os sinais de que o colapso se aproximava eram evidentes.
Pacientes chegavam a todo momento a hospitais despreparados para o aumento da
demanda. Alguém se preocupou com isso? Não. Todos os níveis de governo
ignoraram os alertas emitidos por epidemiologistas, infectologistas e outros
cientistas para o risco das aglomerações das festas de fim de ano.
O
resultado não poderia ser outro que não o caos. A capital do Amazonas é hoje um
microcosmo do Brasil, onde incúria, negligência, amadorismo e improviso se
juntam para provocar um morticínio. Em vez de impor restrições mais duras no
período de festas, o governo do estado relaxou a prevenção, aderindo à visão
negacionista do bolsonarismo, que encheu as redes sociais de incentivos
irresponsáveis à aglomeração. Tardiamente, o governador do Amazonas, Wilson
Lima (PSC), decretou o fechamento dos serviços não essenciais, entre 26 de
dezembro e 6 de janeiro. Depois de protestos da população, ele próprio permitiu
a reabertura, transformando uma decisão técnica em política. Foi preciso que a
Justiça, a pedido do Ministério Público, determinasse o fechamento.
Em
paralelo, uma nova variante do vírus com maior facilidade de contágio se
espalhou a partir do Amazonas e preocupa o mundo todo. Aqui, é ignorada pelas
autoridades que deveriam proteger a saúde da população. O alerta sobre a
mutação partiu do Japão, onde, em 10 de janeiro, a variante foi detectada em
recém-chegados da Amazônia.
Como de praxe, a resposta do governo federal foi tíbia — e tardia. Somente no dia 11, quando o caos já estava instalado (o estado não dispõe nem sequer de oxigênio), o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, desembarcou em Manaus para apresentar um plano de contingência. Atribuiu o agravamento da pandemia a toda sorte de espantalho: a infraestrutura hospitalar precária, as chuvas e uma estapafúrdia falta de “tratamento precoce”. Ora, que significa tratamento precoce, se isso inexiste? Faltava oxigênio, e uma representante do ministério queria obrigar médicos manauaras a receitar cloroquina, droga sem eficácia nenhuma.
Poesia | Fernando Pessoa - Ode marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh’alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.
Olho de longe o paquete, com uma grande independência
de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.
Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui…
Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.