Como vive a parte do nosso povo que está no lado cruel das estatísticas, que sequer possui a certidão de nascimento? O Correio foi atrás e constatou: a situação é pior do que se imaginava. Apesar de o país ter avançado na economia e na distribuição de renda, pelo menos 50 milhões de pessoas não têm endereço formal, acesso à justiça, a agências bancárias ou mesmo a carteira de trabalho.
49,3% dos brasileiros que hoje têm mais de 25 anos de idade não completaram sequer o ensino básico
3,3 milhões de pessoas moram em casas sem energia elétrica e, portanto, nem mesmo vêem TV
31,1% das residências urbanas estão em ruas sem asfalto. Outra boa parte delas está em vias sem nome
50,8% dos domicílios não têm acesso à água limpa (tratada e encanada) e a redes subterrâneas de esgoto
Nem endereço eles têm no país do atraso
Apesar do avanço econômico do país, milhões de brasileiros vivem sem acesso a direitos básicos, como endereço e certidão de nascimento
Vicente Nunes, Victor Martins, Luiz Ribeiro e Deco Bancillon
O futuro ainda não chegou para o agricultor Tico Gomes da Silva. Desde criança, acalenta o sonho de ter um registro que possa comprovar a sua existência. Ele estima que hoje tenha “uns 70 anos”, mas não há nada de concreto que possa confirmar quando nasceu. Seu Tico, que vive no povoado de Palmital, no município mineiro de Lontra, não tem nenhum documento, nem certidão de nascimento. Oficialmente, não existe como cidadão. A realidade do agricultor é mais comum do que muitos imaginam. Nas periferias das grandes cidades e nos rincões mais distantes, milhões de brasileiros fazem parte de um país que ninguém vê – ou finge não ver.
Os números desse Brasil que insiste em manter os dois pés no atraso são alarmantes. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), referentes ao Censo 2010, mostram que 54,7 milhões de pessoas (a soma dos habitantes de Espanha e Portugal) não têm endereço e 3,3 milhões nunca tiveram acesso à energia elétrica. Mais da metade da população não sabe o que é esgoto e água encanada. Pelo menos 30% dos domicílios estão em ruas sem asfalto e 2,1 mil cidades não têm sequer uma agência bancária. Mas não é só. A série que o Correio começa a publicar hoje revela que boa parte dos cidadãos não tem acesso à Justiça, não sabe o que é carteira de trabalho assinada, ainda anda dezenas de quilômetros a pé por falta de transporte, não estuda ou estudou e a saúde depende apenas das ervas que a natureza oferece.
Não há dúvidas de que o país avançou nos últimos 20 anos. O processo de desconcentração de renda que se viu nesse período, por causa do controle da inflação, vem sendo exaltado mundo afora e a nova classe média, um contingente de 40 milhões de pessoas, é disputada por políticos para saber quem deu mais a ela. Mas para os que ainda continuam excluídos é inconcebível não ter o direito de saber quem é ou mora em ruas sem nome, sem número. Essa ausência de endereço impossibilita receber e pagar imposto e contas, ter acesso a benefícios sociais, desfrutar da cidadania. São pessoas que só ouvem falar desse Brasil que ganhou respeito internacional, mas que veem o próprio país como se fosse uma terra estrangeira e distante a ser conquistada.
Que o diga Geni, Rodrigues dos Santos, 31 anos, moradora do povoado de Santa Maria, localizado no município de Flores de Goiás. Com cinco filhos para criar e muita dificuldade até para botar comida dentro de casa, ela é taxativa: “Infelizmente, estamos condenados à própria sorte. Falam tanto que o Brasil melhorou, que há uma classe média podendo comprar tudo o que quer e precisa, mas não sei o que é isso. Nem televisão eu tenho”, diz. Para Maria de Fátima Alves, 53, que vive em um assentamento de sem-terras em Simolândia, Goiás, é impossível falar em melhora das condições de vida se, para não morrer à míngua, é preciso sempre estar pedindo por socorro a alguém que está por perto, seja para comer, seja para tratar uma doença séria.
A situação desses esquecidos só não é pior porque muitos deles estão agarrados em paliativos, como o programa Bolsa Família. Para um país que chegou ao posto de sexta economia e se gaba de conviver com o quase pleno emprego, essa dependência para a sobrevivência é preocupante. “O melhor processo de inclusão social se dá por meio do controle da inflação e do crescimento sustentado, ao longo de anos”, diz José Márcio Camargo, economista-chefe da Opus Investimentos. O Brasil, acrescenta ele, é um país em construção. Nas duas últimas décadas, por meio de reformas econômicas e políticas, corrigiu-se uma série de desarranjos que ainda vão custar caro a muitas gerações.
Enterrados no passado
A evolução mais rápida do país dependerá da velocidade de reformas estruturais que o governo insiste em relegar ao descaso, como a tributária e a trabalhista, e de obras de infraestrutura que deem maior competitividade à economia. Para os que clamam por urgência, que se sentem injustiçados por ainda não estarem provando uma fatia do bolo da riqueza que, enfim, está sendo distribuído, promessas já não bastam. “O Brasil tem uma disparidade muito grande entre os municípios, o que pune parcela importante da população”, observa o diretor de Estudos e Políticas Sociais do Instituto de Política Econômica Aplicada (Ipea), Rafael Guerreiro Osório.
Essa população enterrada no passado, alerta Osório, precisa ser reposicionada socialmente para que o Brasil possa sonhar em ser uma nação mais justa. “Temos uma grande dívida social, já pagamos uma parte dela, mas é preciso mais. As pessoas têm pressa”, avisa. A professora Clara Ferreira (nome fictício, pois ela teme represálias), 42 anos, sabe muito bem disso. Funcionária de uma escola no povoado de Santa Maria, em Flores de Goiás, não esconde a angústia diante da falta de estrutura para educar aqueles que vão tocar esse país mais à frente.
“Aqui, tudo é improvisado, inclusive as salas de aula. A gente trabalha da forma que dá”, explica a professora do ensino médio. A escola a que ela se refere funciona no Centro Comunitário de Santa Maria. Ele foi cedido pelos moradores ao Estado, porque não havia um prédio para abrigar os estudantes. Em um espaço de pouco mais de 60 metros, três turmas estão separadas por divisórias de plástico de dois metros de altura e um centímetro de espessura. O galpão tem teto de zinco e, nos dias quentes, torna-se insuportável a permanência dentro dele. “O problema é que, nos períodos de chuva, também as aulas são suspensas, pois é impossível ouvir qualquer coisa com o barulho da água batendo no telhado”, explica a professora.
Não é só. Parte dos professores que trabalham na escola de Santa Maria não tem formação adequada e a preparação das aulas é precária. “Por isso, é muito comum os alunos desistirem do estudo. É difícil aprender nessas condições”, diz Clara. “Enquanto isso não mudar, infelizmente, vamos ter esse Brasil do atraso, condenando milhões de pessoas à pobreza, ao analfabetismo, ao subemprego, implorando pela ajuda do Estado. Não é esse o país que queremos para nós e nossos filhos”, sentencia.
Destino é a violência
A maior parcela dos brasileiros que ainda não usufruíram dos avanços conquistados pelo Brasil nos últimos 20 anos tem um problema crônico: ou são analfabetos ou estudaram muito pouco. Os dados do Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que quase a metade da população do país (49,3%) com mais de 25 anos não completou sequer o ensino fundamental. Ou seja, pessoas que poderiam tirar proveito do bom momento do mercado de trabalho, ampliando a renda, acabam empurradas para o subemprego e mesmo para a marginalidade, porque não têm preparo para exercer funções básicas.
“Não há como falarmos em um país menos desigual sem um bom sistema de educação. Esse é o ponto de partida para uma nação que busca dar o melhor a seus cidadãos”, diz Marcos Troyjo, professor de economia da Universidade Columbia, em Nova York. Mais do que minar a competitividade da economia e limitar o crescimento do país, a falta de educação estimula a violência. Não à toa, o Brasil está no topo das estatísticas mundiais quando o assunto é homicídio.
Geni Rodrigues Santos, 31 anos, teme pelo futuro de seus cinco filhos. “Não temos dinheiro para nada. Vivo me perguntando o que meus filhos pensam disso e o que pensam sobre o que serão quando crescer”, lamenta. (VM)
Fonte: Correio Braziliense