O Estado de S. Paulo
O ‘inesperado’ bate às portas de todas as
sociedades, nesta época de aceleração, apetites desmesurados, intenções ocultas
e desespero nacionalista
Quando se pensava que ingressávamos numa
fase mais amena, com a pandemia arrefecendo, eis que o mundo é sacudido por
processos traumáticos, a indicar que ainda há muito que caminhar.
Podemos sempre “esperar o inesperado”,
escreveu Thomas Friedman. Na vida, na economia, na política e nas relações
internacionais. Uma guerra, portanto, como a que envolve Rússia e Ucrânia,
precisa ser vista a frio, por mais repulsiva que seja.
Guerras caminham na contramão da
civilização, mas fazem parte da história humana, que sempre se afirmou
escorrendo sangue e sujeira por todos os poros. Hoje em dia, atingimos níveis
elevados de civilidade, mas os guerreiros estão em campo. Não é somente Putin,
com seu desejo incontido de poder e revanche, mas outros tantos, de maior ou
menor relevância. A Otan não é uma aliança para defender os “valores
ocidentais”, mas uma máquina de guerra, que compõe um quadro em que o alegado
propósito defensivista fomenta reações agressivas. Todos cobiçam a Ucrânia por
seu valor estratégico.
Não temos confrontos totais, mas guerras
localizadas, escaramuças militares, arrogâncias nacionalistas, propensões à
violência e à conquista, formando uma espiral que faz o mundo tremer a cada
dia. Não há, como antes, uma guerra fria produzindo equilíbrios e contenções. O
sistema internacional não tem um eixo claro: ele é multipolar, mas imperfeito,
carente de padrões e centros de regulação.
Não há heróis e bandidos claramente
definidos. Putin é um autoritário assumido, disposto a formar um império eurasiático,
indiferente a vítimas e estragos. Zelensky, que governava a Ucrânia sem maior
destaque, ganhou estatura e constrói uma imagem: fala o que é conveniente para
os EUA e para a Alemanha, está sabendo criar empatia com os ucranianos. Joga o
jogo, nem tudo nele é resistência patriótica. E há os norte-americanos, os
europeus, os chineses, com suas diferenças e seus interesses. Todos querem
ganhar, ou não perder. Disputas por hegemonia assopram o fogo.
Toda guerra é drama e tragédia, mortes, destruição, perdas. Não é diferente com a atual, cujas determinações poderiam ter sido processadas de outro modo. A guerra de Putin acentua as dificuldades da globalização. Força os Estados a cuidarem mais de si mesmos, a se voltarem para dentro, a se protegerem. O comércio internacional mergulha na incerteza. Os governos precisam incrementar suas habilidades de gestão, sua capacidade de coesão, suas políticas e suas interações internacionais.