DEU EM O GLOBOA campanha mal começou, e já há um clima de tensão no ar, com troca de acusações e ameaças de dossiês sendo brandidas. Além de revelar um hábito político recorrente nas campanhas, o que revela também um espírito autoritário, o ressurgimento desse submundo da política é o efeito colateral do clima de vale-tudo que a postura do presidente da República suscita.
Lula se coloca à frente de seu pelotão dando a orientação da estratégia desde o início do processo, que ele antecipou em anos para poder viabilizar uma candidata literalmente inventada por ele, que vem sendo reconstruída pelo caminho com bons resultados, digase de passagem.
Ora, se o comandante declara que a prioridade de seu governo é eleger a sucessora, sem o que não considerará sua tarefa bem cumprida, e para alcançar esse objetivo não se incomoda de infringir a lei, não há limites para a atuação dos subalternos.
O empenho em fazer a sucessão parece excessivo, e o ministro do Supremo Ayres Britto, em voto favorável à punição de Lula por propaganda antecipada, classificou de “antirrepublicano” um projeto de poder que inclui eleger o sucessor: “Quem se empenha em fazer o seu sucessor, de ordinário, pensa em se tornar ele mesmo o sucessor de seu sucessor”.
Uma coisa é considerar obsoleta, ou até mesmo hipócrita, a legislação eleitoral, outra muito diferente é desrespeitá-la.
Outra mais diferente ainda é abusar do poder político para influir no resultado da eleição a favor de sua candidata.
É ridículo ser obrigado a fingir que os candidatos não são candidatos, chamálos de pré-candidatos, até que se realizem as convenções partidárias que vão oficializar o que já está decidido.
O mais lógico seria que a desincompatibilização dos cargos públicos se desse no final de junho, depois das convenções partidárias, ou que elas se realizassem no início do ano, logo depois da data fatal para que os candidatos deixassem seus cargos públicos.
Assim como o normal seria permitir que os partidos políticos usassem seu horário gratuito da maneira que fosse mais interessante para os interesses partidários.
Se um partido está apoiando um candidato, nada mais importante que anuncie a seus eleitores a escolha, e utilize o programa gratuito para defender a decisão.
Como todos têm o mesmo tempo nesses programas e inserções fora da campanha eleitoral, não haverá desequilíbrio.
Ou melhor, o desequilíbrio fica por conta do excesso de generosidade da legislação, que permite a partidos literalmente inexistentes exibir suas inexistentes plataformas eleitorais, dando-lhes um poder que não merecem.
Na chamada propaganda eleitoral gratuita, que só é gratuita para os partidos políticos, o tempo proporcional de cada legenda, equivalente à bancada na Câmara, dá poderes de barganha a siglas que não têm relevância política, transformandoas em objeto de desejo dos partidos que realmente contam.
Nossa política partidária fica assim dependente de chantagens e negociações por baixo dos panos, sem que se leve em conta minimamente afinidades programáticas.
Seria preciso disciplinar o acesso ao horário gratuito durante a campanha eleitoral, para reduzir o número de usuários e evitar que partidos-fantasmas surjam nas eleições para literalmente vender seu espaço.
E impedir que o programa gratuito, que nasceu com o objetivo de equilibrar a disputa eleitoral, se transforme em fator de desequilíbrio pelo enorme gasto que exige, com a presença de marqueteiros e seus efeitos especiais cada vez mais intensos.
O ideal seria que a legislação reduzisse o tempo dos programas e limitasse a utilização dos recursos de tecnologia, para estimular o debate de ideias entre os candidatos.
O que a legislação não pode deixar de coibir é o abuso do poder político ou econômico, especialmente por parte dos políticos que buscam a reeleição no exercício dos mandatos, mas também dos prefeitos, governadores e presidente da República que, impedidos de se recandidatarem, procuram eleger seus sucessores.
Usar inaugurações para alavancar o prestígio de seu candidato, com discursos onde fica implícita a ameaça de descontinuidade administrativa se seu candidato não for eleito, é fazer chantagem com o eleitor.
No caso do presidente da República então, o problema é maior, já que se espera dele o exemplo de cumprimento da lei.
É claro que a opinião de um presidente popular e bem avaliado pelos cidadãos terá efeito na hora da decisão do eleitor, e, se a maioria escolhe aquele candidato que o presidente popular está apontando como o melhor, é porque quer a continuidade de seu governo, ou pelo menos acredita que esse será o melhor caminho para a continuidade.
Um presidente mal visto pelos cidadãos terá uma influência negativa se quiser apoiar um candidato, e geralmente nesse caso fica a uma distância prudente da disputa para não contaminar negativamente seu preferido.
Isso não quer dizer, no entanto, que as leis em vigor possam ser desrespeitadas, na presunção de que um presidente popular tem a procuração automática dos cidadãos para fazer o que bem entender.
Ou que as pesquisas de opinião que lhe dão 70% ou 80% de boas avaliações lhe dão também a condição de estar acima do bem e do mal.
O dom da infalibilidade não está certamente entre os atributos que a popularidade dá a um presidente, e é preciso que os poderes democráticos estejam em funcionamento para conter qualquer surto de onipotência que porventura ocorra.