"Para fazer mudanças mais profundas, o Brasil precisa de lideranças que reflitam a emergência de uma nova sociedade"
"Políticos, jornalistas e intelectuais ficaram ligados na TV por São Bernardo, mas tinha mais gente vendo o jogo do Palmeiras"
Por Maria Cristina Fernandes | Valor Econômico
SÃO PAULO - "Na história, quando se pensa que acontecerá o inevitável, ocorre o imprevisto." Ao longo de 238 páginas, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso ora se rende ora se debate com a ideia-chave em novo livro, "Crise e Reinvenção da Política no Brasil". É a uma sociedade "mais forte porque desorganizada" que atribui possibilidades e riscos de uma crise cujo desfecho diz ser difícil prever.
As reflexões do ex-presidente foram colhidas, de setembro de 2017 a janeiro deste ano, em conversas com Sérgio Fausto, superintendente do instituto que leva seu nome, e Miguel Darcy, diplomata e seu assessor internacional. Delas emerge a ambiguidade da conjuntura: o indivíduo se fortaleceu frente ao Estado, mas a sociedade, sem o filtro dos partidos, se tornou mais vulnerável a aventureiros despreparados para o exercício do poder. E não apenas no Brasil.
O relato de sua passagem pelo poder está para ser concluído com o lançamento, talvez só em 2019, "quando já tiver passado o interesse pela sucessão", do quarto e último volume dos "Diários da Presidência". Já nas primeiras páginas de seu novo livro estampa a autocrítica do que deixou de fazer como senador, ministro e presidente da República. Com esse habeas corpus preventivo, põe-se a criticar a passagem do PT pelo poder e a tratar do porvir, a começar de tarefas historicamente retrancadas no Brasil, inclusive em seu governo, como a de impor concessões mais amplas àqueles que ganham mais.
A "utopia viável" com a qual conclui suas reflexões passa ainda pelo combate à impunidade, que hoje diz não ser mais um valor da classe média abastada, mas da maioria da população que vê se esvaírem os recursos de políticas públicas. É o apego ao oxímoro que parece levá-lo, nesta entrevista, a concordar mais com o ministro Luís Roberto Barroso, indicado pela ex-presidente Dilma Rousseff, do que com o ministro Gilmar Mendes, seu escolhido para a Corte. FHC nega a seletividade da Lava-Jato e defende, em ordem decrescente, seus correligionários Geraldo Alckmin, Aécio Neves e Eduardo Azeredo. No dia seguinte, o Supremo tornaria réu o senador mineiro.
Relativiza tanto a entrega do Ministério da Defesa, criado em seu governo, para um militar quanto o peso das declarações do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, às vésperas da votação do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - "falou para sua tropa" -, e diz que a intervenção no Rio só se justifica se for para pôr ordem na polícia.
Atribui a prisão de Lula à cota do imprevisto da história e diz que seu sucessor jogou bem ao buscar se sacralizar como "uma ideia". Não descarta que um dia, quando o gesto não se configurar como afronta à Justiça, possa vir a visitá-lo na prisão. Foi em seu apartamento, em meio a uma agenda de sucessivas reuniões, com tucanos e o presidente de um grande banco, que Fernando Henrique deu, ao Valor, a entrevista que segue:
Valor: O senhor diz no livro que, na história, quando se pensa que ocorreria o inevitável, acontece o imprevisto. Olhando para 2018, o que lhe parece inevitável e imprevisto?
Fernando Henrique Cardoso: Inevitável é que o Brasil de qualquer maneira vai continuar e tem lá seus valores, que procuro ressaltar no livro. O imprevisto é que, nos dias de hoje, não dá para saber quem vai ganhar. E se ganhar alguém que não tenha capacidade de levar o Brasil para diante? Já passamos por experiências difíceis nessa matéria. Mas na democracia você corre riscos. Espero que a população sinta o momento que estamos vivendo, as possibilidades que temos e que eleja alguém que permita ao Brasil avançar mais. Posso torcer, querer, mas a história, enfim, tem lá seus caprichos, que não são os meus. Nem sempre.
Valor: A derrota do ex-governador Geraldo Alckmin é inevitável?
FHC: Absolutamente não. Porque, primeiro, tem experiência aqui em São Paulo, com um partido que tem uma certa expressão e, segundo, porque acredito que no processo eleitoral seja possível mostrar que precisamos ter rumo e que não dá para você apostar em quem não se sabe o que pensa ou o que fez. O novo é quem está antenado com o que está acontecendo no mundo e no país, que saiba levar adiante. É bastante possível a vitória do governador Alckmin.
Valor: A prisão do Lula é o imprevisível?
FHC: É o imprevisto. Eu nunca imaginei que um ex-presidente com o significado do Lula fosse terminar sendo preso. Não acho bom - não estou criticando os juízes, porque eles têm os autos -, estou falando do significado histórico. Temos, no Peru, vários presidentes presos e um foragido. Alguns conheço, aliás acho que todos. E isso é bom para o país? Não, não é. Agora as instituições têm que funcionar. Os movimentos são muito importantes, mas é preciso também que haja filtros, para a história tomar um rumo e ter continuidade. A Justiça tem sua independência, e isso é inegável. Tanto é assim que você pode ver que, no momento atual, o PT não critica os outros partidos. Eles tentam dizer que há uma conspiração de vocês, da mídia. É importante mostrar que as instituições estão funcionando com independência dos interesses políticos imediatos.
Valor: Mas o PT não faz isso porque quer a solidariedade dos outros partidos, não?
FHC: Não é só por isso. O PSDB e os outros partidos não moveram a ação. Quem moveu a ação foi o Ministério Público. A narrativa fica capenga se disser que foi por interesse político.
Valor: O senhor disse que um líder hoje tem que ser capaz de transitar entre a sociedade e o Estado e entre a cidadania e as instituições. Qual a capacidade de Geraldo Alckmin, Ciro Gomes, Joaquim Barbosa, Marina Silva e Fernando Haddad cumprirem esse trajeto?
FHC: Primeiro, não sei se esses vão ser realmente os candidatos, né? Da minha experiência como presidente e senador sei que o governante que não conhece o Congresso tem dificuldade de fazer aquilo funcionar. Então, é preciso ver, desses aí, quem tem experiência de Congresso. Segundo, a máquina pública tem suas peculiaridades. Se você não souber que as Forças Armadas, o Itamaraty, a Receita Federal têm uma cultura própria, é difícil governar. Os grandes órgãos do Estado simplesmente não obedecem, eles têm uma dinâmica, e você tem que entendê-la. Por outro lado, se você não é capaz de falar com a nação, também é difícil governar. E a nação não são os ricos, nem são só os pobres. No mundo contemporâneo, não basta ao líder democrático ganhar a eleição. Tem que saber lidar com o Congresso, motivar a administração e falar ao país, para ter o apoio. Pela biografia a gente pode ver o que cada um desses aí é mais ou menos capaz, mas não cabe a mim julgar. Cabe ao povo.