DEU EM O ESTADO DE S. PAULO
No último dia 9 de junho, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou projeto de lei do senador Marco Maciel (DEM-PE) que altera o Código Eleitoral, reduzindo de nove para duas as penalidades impostas aos eleitores que não comparecem às urnas nos dias de votação. Disse o senador que sua intenção é apenas tornar menos rigorosas as punições aos faltosos. Mas os favoráveis ao fim da obrigatoriedade do voto comemoram a decisão como um primeiro passo nesse caminho. Tema tão relevante não deveria passar sem uma ampla e profunda discussão na sociedade civil. Discussão que, aliás, faz parte da história do sistema eleitoral brasileiro. Os defensores do voto facultativo sempre se escudaram, e ainda hoje é assim, no argumento de que o cidadão não pode ser obrigado a votar porque ninguém pode ser obrigado a exercer a cidadania.
Será? Creio que não e cito dois exemplos.
No Rio de Janeiro do começo do século 20, a chamada campanha da vacina obrigatória enfrentou forte resistência da população. Oposição liderada por políticos positivistas sob o argumento de que o cidadão tinha total direito sobre seu corpo e, portanto, ninguém podia ser obrigado a se deixar inocular. Oswaldo Cruz, idealizador e coordenador do programa, contra-argumentaria: quem não se quer vacinar poderá ser infectado. E, ao sê-lo, transmitirá a doença a quem não deseja ser doente. Se colidir com o bem comum, aí, sim, a liberdade individual se converte em tirania. A campanha da vacina obrigatória é hoje um marco na história da saúde pública no Brasil.
Exemplo mais recente diz respeito à preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural dos brasileiro. Esta só se tornou viável depois que, com a instituição da Lei de Tombamento em 1937, concebida por Mário de Andrade e Rodrigo de Mello Franco, medidas punitivas foram adotadas contra os que destruíssem ou descaracterizassem bens tombados. Aliás, durante o malfadado governo Collor, e bem dentro do espírito neoliberal que começava a se impor no contexto brasileiro, surgiu a proposta de fazer a preservação dos bens históricos ser transformada em matéria facultativa. Ou seja, dever-se-ia deixar ao critério do proprietário de um imóvel de valor histórico preservá-lo, demoli-lo ou descaracterizá-lo.
Com a mesma candura com que naquele tempo se acreditava que a mão livre do mercado acabaria por fazer o pão chegar à mesa dos famintos (mesmo que isso demorasse um pouco e algumas gerações fossem sacrificadas), acreditava-se que a mão livre do mercado imobiliário salvaria o que fosse para ser salvo da destruição e destruiria o que fosse necessário para o crescimento do mesmo mercado. Tal política não prosperou, mas talvez tenha influído no fato de que, somente agora, no último dia 10 de junho, tenham sido estabelecidos os critérios para a aplicação das multas àqueles que causarem danos a bens tombados pela União. Até então só restava ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) o recurso às ações judiciais. Esta conquista demonstra que em tal matéria se optou pela ideia de que há uma razão de Estado pela qual o bem comum se sobrepõe ao bem individual. E é este o princípio que está na origem da própria ideia de República.
Ideia que também orientou a adoção do voto obrigatório a partir da reforma da Lei Eleitoral de 1932. Cristina Buarque, em tese defendida no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), analisou as razões por que o projeto de Código Eleitoral apresentado por Assis Brasil durante a Constituinte de 1891 só foi adotado quase 40 anos depois. Nas quatro primeiras décadas da República, o pragmatismo dos barões do café, que dominavam a economia e, com ela, a política brasileira, preferiu o "jeitinho brasileiro". No contexto da "política dos governadores", optou-se por um arremedo de democracia que, sustentada no voto aberto, possibilitava o controle total dos poderosos locais sobre o eleitorado. O voto a bico de pena, por se prestar facilmente à adulteração, completava a farsa. Só após a Revolução de 1930, com o objetivo de moralizar e tornar realmente democrático o processo eleitoral, foi adotada a fórmula proposta por Assis Brasil. De um lado, o voto secreto, protegendo a liberdade de escolha do eleitor; de outro, o voto obrigatório, garantindo, com o pleno comparecimento da população às urnas, a representação da vontade da maioria.
Em estudo sobre o tema, disponível na internet, a cientista política Luzia Herrmann demonstra que, se adotado no Brasil o voto facultativo, isso acarretaria uma queda de 30% a 35% de comparecimento do eleitorado às urnas. Votariam os mais mobilizados, os mais informados, os com interesses bem definidos. É o que tem acontecido na Venezuela, onde a reforma eleitoral de 1993 não eliminou o voto obrigatório, mas sim as penalidades para os não-votantes.
As eleições ocorrem no Brasil de dois em dois anos. Em muitos casos, quando não há segundo turno, o cidadão só tem de sair de casa uma única vez, num domingo, para se dirigir a lugar, em geral, perto de sua residência e votar. Não é sacrifício demasiado e a lei faculta o voto aos que, por serem muito jovens ou analfabetos, podem não ter certeza do que querem, ou aos que, velhos ou doentes, não tenham condições físicas de comparecer às urnas.
O voto deve ser obrigatório pela mesma razão que a educação deve ser obrigatória. Os que não votam devem ser punidos pela mesma razão que devem ser punidos os que deixam as crianças sem escola, os que liquidam o patrimônio histórico do País, os que dirigem embriagados, etc. Votar também é parte da educação de um povo: o dever de escolher seus representantes e dirigentes o obriga a refletir periodicamente sobre seu destino.
Doutora em Ciência Política pelo Iuperj, é historiadora da Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro