O presidente Lula tem uma visão utilitarista de sua base partidária que faz jus a seu histórico de sindicalista pragmático, mas volta e meia deixa vir à tona um viés esquerdista que já foi sua marca em tempos remotos, que ficaram para trás e que hoje volta e meia cismam de retornar à sua ação política. Mas são atitudes mais personalistas do que ideológicas. Há quem considere, ao contrário de sua própria palavra, que Lula, até a terceira derrota na tentativa de se eleger presidente, mantinha uma visão de esquerda, que abandonou para tentar ganhar a eleição em 2002.
Se pegarmos os verbetes "comunista", "comunismo" e "esquerda" do "Dicionário Lula, um presidente exposto por suas próprias palavras", o formidável livro de Ali Kamel, veremos a barafunda de conceitos que Lula faz, mas sempre tendendo para o conservadorismo.
Ao mesmo tempo que se orgulha de ter criado "o partido político mais importante de esquerda da América Latina", numa entrevista a emissoras de rádio, em 2003 ele relembra que, ao ser perguntado se era comunista, respondeu : "Não, sou torneiro mecânico".
Em outra ocasião, no mesmo ano, em visita ao retiro de Itaici da CNBB, ele lembrou que não queria ir para o sindicato quando tinha 21 anos porque achava que lá "só tinha comunista".
E, no discurso de uma entrega de prêmios em 2006, Lula definiu sua posição sobre "ser de esquerda" que ficou famosa:
"Se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela está com problema. Se conhecer uma pessoa muito nova de direita, também está com problema".
Para Lula, isso acontecia devido "à evolução da espécie humana. Quem é mais de direita vai ficando mais de centro, quem é mais de esquerda vai ficando social-democrata, menos à esquerda, e as coisas vão confluindo de acordo com a quantidade de cabelos brancos que você vai tendo e a responsabilidade que você vai tendo, não tem outro jeito".
Como que para expurgar o sentimento de culpa que deve sentir por acordos políticos tão espúrios quanto os que se sente obrigado a chancelar diariamente, de vez em quando Lula faz como ontem, ao festejar o fato de que a eleição presidencial do próximo ano não terá nenhum "troglodita da direita" como candidato.
Ele passou espertamente por cima do maior representante dessa categoria, o hoje senador Fernando Collor, transformado em seu aliado estratégico tanto com relação ao PAC quanto na questão do pré-sal, indicado que foi para presidir a fundamental Comissão de Infraestrutura, e atacou o tucano Geraldo Alckmin como representante da "direita selvagem", logo ele, apelidado de "picolé de chuchu" por sua atuação neutra.
Na verdade, boa parte dos "trogloditas de direita" fazem parte da base governista, alçados por Lula a aliados incondicionais. O fato de não haver um candidato viável representando a direita é apenas mais uma das muitas distorções da democracia brasileira, e o comentário de Lula só revigora a sensação de que ainda estamos longe de atingirmos uma representatividade partidária real.
Um dado aceito como verdade na recente política brasileira é que, se o PMDB não consegue eleger um presidente da República, nenhum presidente da República consegue governar sem o apoio do PMDB, um partido que já foi o principal representante da esquerda brasileira e hoje patina no fisiologismo explícito, representando a parte "direitista" desse fenômeno, que tem no PT sua contraparte esquerdista.
Da mesma forma, nenhum político brasileiro se declara "de direita", mas a direita política está sempre presente nos governos formados a partir de 1985, quando Tancredo Neves se elegeu presidente da República numa aliança política antes impensável com os dissidentes do PDS, partido que dava sustentação à ditadura militar.
Boa parte desses políticos, abrigados depois no Partido da Frente Liberal (PFL), fizeram a aliança com o PSDB que levou Fernando Henrique ao poder em 1994, a bordo do Plano Real.
E uma dissidência do PFL, atual DEM, acabou apoiando Lula em 2002, capitaneada pelo senador José Sarney, que se transformou no principal apoio político de Lula no Senado e dentro do PMDB.
O presidente Lula, para eleger-se em 2002, procurou um empresário para compor sua chapa, como maneira de tranquilizar os que ainda o viam como uma ameaça. E, mais uma vez recorrendo ao "Dicionário Lula", podemos ver uma explicação bastante direta do presidente Lula sobre como age politicamente:
"(...) Meu comportamento político sempre foi prático. Nunca gostei de ser rotulado. (...) No movimento sindical, era chamado de agente da CIA pelos comunistas e de comunista pela direita. Isso me deixava tranquilo, pois como não era nem um nem outro, ficava livre para escolher o caminho que entendia melhor para os trabalhadores".
Portanto, quando ele identifica Alckmin com a direita raivosa, coisa que nunca foi, e finge esquecer as alianças que tem com partidos dessa mesma direita, Lula está apenas fazendo política. Deu certo na eleição de 2006, quando conseguiu pespegar no PSDB a pecha de "entreguista", com críticas às privatizações que Alckmin não soube responder.
Provavelmente não dará certo na próxima eleição, embora o governo já esteja preparando o ambiente para identificar-se com um sentimento nacionalista em relação à descoberta dos campos de petróleo do pré-sal, tachando todos que sejam contra a mudança do marco regulatório de "entreguistas".
A crise econômica internacional alargou o espaço estatizante dos governos, e Lula está se aproveitando para ampliar seu próprio espaço político, e o de seus aliados.
Mas nem Serra nem Aécio são tão fáceis de serem classificados de entreguistas, e o PSDB abdicou de lutar pelo modelo de concessão que implantou na exploração do petróleo justamente para não ser acusado de estar contra os "interesses nacionais".