sábado, 3 de agosto de 2019

Elena Landau*: Deixem o liberalismo fora disso

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro nunca foi nem nunca será um liberal. Seu governo também não

Por mais absurdo que pareça, a polarização que marcou as eleições do ano passado fez de Bolsonaro símbolo da candidatura liberal em oposição a Fernando Haddad, que reafirmava o modelo estatizante. Era a opção para encerrar o ciclo PT.

Muitos, em total autoengano, optaram por ignorar seu passado intervencionista e embarcaram nessa fantasia. Os 200 dias de governo não trouxeram nenhuma surpresa. Bolsonaro tem sido fiel aos seus princípios. A toda hora desdenha dos que sofreram na ditadura, como revelam os comentários sobre a jornalista Miriam Leitão e agora em relação ao pai do presidente da OAB. Seu apreço por torturadores e ditadores é notório. É um governo marcado pela intolerância. A tentativa de deslegitimar dados do Inpe sobre desmatamento reflete a dominância do achismo sobre a ciência, que, infelizmente, rege boa parte das ações públicas dele e de seus mais próximos colaboradores.

A insistência em nomear o filho, sem nenhuma capacitação para o cargo, embaixador nos EUA é mais uma mostra do viés autoritário. Ele nem enrubesceu ao dizer: “Quero beneficiar meu filho”. Ameaçou “privatizar” a Ancine, uma agência reguladora, porque ela não impede a produção de filmes, segundo ele, impróprios. É o início de uma política cultural de Estado, típica de ditaduras. A negação de evidências empíricas na formulação de políticas públicas, que interferem desde a segurança no trânsito até a preservação ambiental, revela um retrocesso assustador e um Estado que parece pré-iluminista. Isso nada tem que ver com uma postura conservadora, é só obscurantismo mesmo.

Não adianta apelar para a agenda econômica para descobrir um presidente liberal, como queriam alguns eleitores, que ainda hoje se agarram nessa esperança para manter seu apoio a este governo. Bolsonaro sempre votou contra reformas que buscavam diminuir o peso do Estado, do Plano Real à privatização. O confronto com o Congresso e a intervenção de última hora a favor dos policiais puseram a reforma da Previdência em risco. Foram necessárias a habilidade e a persistência de Rodrigo Maia para salvar o governo de si próprio.

Miguel Reale Júnior*: BolsoNero

- O Estado de S.Paulo

Estamos, talvez, diante de um simplório plano de dominação, para o qual se deve estar alerta

O grande desafio político consistiu, a partir do último quartel do século 20, na superação das fragilidades da democracia representativa numa sociedade de massas inertes e manipuláveis, na qual a relação entre a sociedade civil e a política fica limitada ao processo eleitoral.

A crise da democracia representativa cresceu vertiginosamente com o compartilhamento em rede: pessoas que se juntam em torno de preconceitos e subjetividades, um rol imenso de desconhecidos que retroalimentam suas idiossincrasias, seus ressentimentos e crenças inabaláveis.

Mas há outro lado, o das forças atuantes da sociedade civil. Profissionais e voluntários vêm a constituir polos de produção de opiniões e sugestões, fruto da experiência e do estudo. São muitas manifestações (espontâneas ou programadas) por associações, órgãos de classe, organizações não governamentais, voltadas para influir no processo decisório, trazendo valiosa contribuição, própria de um consistente pluralismo social.

Reconhecendo-se a valia desse pluralismo, criaram-se ao longo do tempo muitos órgãos de cunho consultivo para assessorar a administração pública. Houve, sem dúvida, exageros, com focos de mera reivindicação leviana ou assembleísmo; certo é, porém, que a participação da sociedade oxigena, instrui e amplia a ação estatal, em suma, democratiza.

De fato, para a legitimidade da democracia de massas num mundo em rede é essencial a atuação e a presença efetiva da sociedade, fazendo mais pessoas participarem, racionalmente, da criação do destino coletivo.

Pois Bolsonaro fez exatamente o contrário no primeiro dia de governo, afirmando que governaria em ligação direta com o povo, sem nem mesmo partidos políticos, num neopopulismo virtual. Ilegalmente decretou o fim dos conselhos. Semana passada, suprimiu a participação de médicos no Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad).

João Domingos: Um freio em Bolsonaro

- O Estado de S. Paulo

Supremo não precisaria ter julgado medida provisória das terras indígenas

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, pela unanimidade dos 10 ministros presentes à sessão de quinta-feira, manteve a demarcação de terras indígenas com a Funai, foi uma forma de a Corte mostrar ao presidente Jair Bolsonaro que ele precisa cumprir o que determinam a Constituição e as leis.

A rigor, o Supremo nem precisaria ter julgado se Bolsonaro poderia ou não ter editado a medida provisória que transferiu da Funai para o Ministério da Agricultura a demarcação das terras indígenas. No dia 25 de junho, depois de ouvir líderes partidários, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), devolveu ao Palácio do Planalto a parte da MP que tratava da demarcação.

Argumentou que Bolsonaro não poderia assinar tal medida, pois dias antes o Congresso decidira, ao votar a medida provisória que fez a reforma administrativa e deu uma nova cara à Esplanada dos Ministérios, que demarcação de terras indígenas era com a Funai. E que a Funai deveria ficar no Ministério da Justiça, assim como o Coaf deveria sair da Justiça e voltar para o Ministério da Fazenda, agora transformado no Ministério da Economia.

Legalmente, portanto, a parte da medida provisória que se refere à demarcação das terras indígenas não existia mais. É prerrogativa do presidente do Senado devolver medida provisória que considera inconstitucional ou contrária ao que determina a Constituição. Do governo de José Sarney (1985/1990) para cá há vários casos de devolução. Em 2015, embora aliado de Dilma Rousseff, o então presidente do Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), devolveu uma MP que tratava da desoneração da folha de pagamento das empresas.

Adriana Fernandes: Criaturas do pântano

- O Estado de S.Paulo

Se governança da Caixa não for reforçada, pode virar a caixa-preta de Bolsonaro

Em seu discurso histórico de posse no cargo, o ministro da Economia, Paulo Guedes, apontou com veemência o desvirtuamento das instituições públicas para o atendimento de interesses particulares.

O que chamou mais a atenção na época foi a crítica feita por Guedes ao uso do crédito dos bancos públicos, numa associação de “piratas privados, democratas corruptos e criaturas do pântano político”.

Aplausos não faltaram ao ministro, principalmente, dos apoiadores de primeira hora do presidente Jair Bolsonaro, que adotaram o discurso de que essa velha política seria sepultada pelo novo governo.

O ministro costuma citar como inimigos da chamada sociedade aberta, no caso brasileiro, os que capturam o Estado para alcançar seus objetivos.

É por tudo isso que a operação tartaruga para a concessão de empréstimos para os governadores e prefeitos que não são aliados, patrocinada pelo comando da Caixa Econômica Federal e revelada ontem pelo Estadão/Broadcast, vai na contramão do que o ministro pregou ao longo da sua vida de economista.

Como mostrou a reportagem, o banco público reduziu a concessão de novos empréstimos para o Nordeste neste ano. O levantamento foi feito com base nos números do próprio banco e do sistema do Tesouro Nacional. Em 2019, até a última terça-feira, o banco autorizou novos empréstimos no valor de R$ 4 bilhões para governadores e prefeitos de todo o País.

Demétrio Magnoli: O espelho não mente

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro, como antes dele o PT, abomina o pluralismo e o suprimiria, se pudesse

Jair Bolsonaro e o PT desnudaram-se, quase simultaneamente, em fiéis autorretratos. No Brasil, o presidente asqueroso festejou uma ditadura do passado, comemorando o assassinato de Estado de Fernando Santa Cruz, pai do presidente da OAB. Horas antes, em Caracas, na reunião do Foro de São Paulo, representantes do partido de Lula festejaram uma ditadura do presente que já tem, em Fernando Albán e no capitão Rafael Acosta, seus próprios Santa Cruz. Tão diferentes, tão iguais: quando se olham no espelho, cada um vê, refletida, a imagem do outro.

“O presidente da OAB declarou guerra à gestão Bolsonaro, protegendo criminosos contra o governo. Assim como os terroristas comunistas haviam declarado guerra aos governos militares. E não há guerra sem que haja efeitos colaterais.” Na carta raivosa de um bolsonarista, emergem os signos de uma lógica compartilhada: a política como guerra permanente, o impulso do extermínio físico do “inimigo”.

Troque as senhas ocas de um discurso ritual —“terroristas comunistas” por “agentes do imperialismo”, “governos militares” por “poder bolivariano”— e, mágica!, agora quem fala é Mônica Valente, a representante oficial petista no ato de solidariedade a Nicolás Maduro. Quando Bolsonaro ergue um brinde aos torturadores do DOI-Codi, como ignorar o brinde petista aos seviciadores do Sebin? Almas gêmeas: Bolsonaro inveja a tortura que, por um acidente da história, não infligiu; o PT inveja a tortura que, por um acaso da geografia, não aplicou.

A guerra pode ser interpretada como continuação da política (Clausewitz), mas o inverso só é verdadeiro nas ditaduras. Nas democracias, o pluralismo assenta-se na crença de que ninguém —nenhuma corrente política— possui o monopólio da verdade ou da virtude. Daí, as convicções democráticas de que a oposição cumpre papel positivo, apontando alternativas às ações do governo, e de que a crítica veiculada pela imprensa ajuda a limitar o exercício excessivo do poder pelas autoridades. Bolsonaro, como antes dele o PT, abomina o pluralismo —e o suprimiria, se pudesse.

Rubens Valente: Jair desmentiu Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Agenda das 964 audiências e conversas mantidas pelo presidente desmontam a promessa de 'governo para todos'

"Governarei para todos”, disse o presidente na diplomação em 10 de dezembro de 2018, no TSE. “Construirei uma sociedade sem discriminação ou divisão”, repetiu na posse, em 1º de janeiro.

Quem percorrer os 964 compromissos da agenda de Jair Bolsonaro em audiências, almoços e jantares da posse na Presidência até esta sexta-feira (2) embarcará numa viagem lisérgica por cultos evangélicos, jogos de futebol, expoentes da bancada da bala, o cantor Amado Batista e o locutor de rodeios Cuiabano Lima. E empresários, muitos e riquíssimos empresários e seus poderosos grupos de pressão.

Também perceberá para quem Bolsonaro governa. Ele recebeu altos executivos das multinacionais Exxon e Shell, mas nenhum representante dos petroleiros brasileiros contrário à venda dos ativos da Petrobras. Falou várias vezes com ruralistas, mas com nenhum porta-voz legítimo dos sem-terra, quilombolas ou indígenas (fez só uma live com um grupo de índios sem representatividade, levados ao Planalto por ruralistas).

Alvaro Costa e Silva: Moby Dick

- Folha de S. Paulo

Seria o capitão Ahab um líder político enlouquecido que vive atiçando as massas?

Herman Melville —200 anos do seu nascimento transcorridos na quinta (1º)— compôs, em “Moby Dick”, uma das mais inesquecíveis aberturas da literatura universal: “Call me Ishmael”. Na tradução de Berenice Xavier, “Chamai-me Ismael”; na de Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza, “Trate-me por Ishmael”. (Se eu pudesse, escolheria “Me chame Ismael”.) É também uma primeira frase das mais parodiadas. Em seu romance “O Jardim do Diabo”, Luis Fernando Verissimo honrou a tradição: “Me chame de Ismael e eu não atenderei”.

O parágrafo inicial —como o livro inteiro— é grandioso. Não apenas no uso da linguagem. Trata-se de um convite à curiosidade e inteligência do leitor. Embarcar num navio, a fim de visitar “a parte aquosa do mundo”, impede que o narrador vá às ruas para “arrancar os chapéus de todas as pessoas” e se torna um substituto “para a arma e para as balas” —como se fugisse do Brasil atual.

Hélio Schwartsman: Deltan deve ir para a cadeia?

- Folha de S. Paulo

É bom para a sociedade que o conteúdo das conversas hackeadas tenha se tornado público

Não há muita dúvida que é bom para a sociedade que o conteúdo das conversas hackeadas do pessoal da Lava Jato tenha se tornado público. Pudemos entender melhor como funcionam as entranhas da Justiça e ampliar nosso conhecimento sobre a natureza humana.

As consequências políticas da divulgação são inevitáveis. Sergio Moro e Deltan Dallagnol saem menores do episódio. Poderão ter dificuldades em dar seguimento ao que planejavam para suas carreiras. O caráter messiânico da Lava Jato também sai arranhado, o que não é mau desde que não se sacrifique toda a operação. Parece-me complicado, entretanto, usar as interceptações, que são um caso claro de prova ilícita, para condenar juridicamente quem quer que seja.

A questão das provas ilícitas é complicada, e a doutrina não é unânime, mas, de um modo geral, entende-se que elas não apenas não podem ser usadas no processo penal como ainda contaminam outras provas com que entrem em contato. Há, contudo, exceções. Elas podem, por exemplo, inocentar um réu.

Merval Pereira: Dallagnol no alvo

- O Globo

Ministros estão convencidos da veracidade dos diálogos, inclusive por relatos de abusos que estariam acontecendo

A ideia de retirar da Operação Lava-Jato o coordenador dos procuradores de Curitiba, Deltan Dallagnol, abortada até o momento, surgiu logo na manhã de quinta-feira, quando os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli, atual presidente, e Gilmar Mendes leram novos diálogos atribuídos aos procuradores.

Tratavam de investigação sobre os ministros e suas mulheres. No dia anterior, os dois haviam recebido um resumo das conversas a serem publicadas pela “Folha de S. Paulo”, e não quiseram se manifestar. Mas quando leram a íntegra da reportagem, combinaram que alguma coisa deveria ser feita.

Toffoli pretendia soltar uma nota oficial, primeiro exigindo o afastamento de Dallagnol, versão que abandonou por outra, mais genérica, defendendo as prerrogativas do Supremo. Um procurador de primeira instância não pode investigar um ministro do STF.

Gilmar reagiu a seu estilo. Chamou os procuradores de gangsters numa entrevista ao chegar à sede do Supremo, “o rabo abanando o cachorro”, como gosta dizer. Por ele, uma nota de repúdio teria que ser dada, mas colegas convenceram os dois de que o melhor seria não fazer comentários, inclusive para não dar mais publicidade aos fatos e para proteger suas mulheres.

Ficou combinado que o decano Celso de Mello pediria apalavra na primeira sessão da reabertura dos trabalhos e faria uma declaração de protesto. Em vez disso, preferiram ações práticas. O ministro Luiz Fux proibiu que as provas fossem destruídas e requisitou cópias de todos os diálogos, áudios e vídeos apreendidos pela Polícia Federal.

O ministro Alexandre de Moraes, relator de uma controversa investigação sobre fake news no âmbito do Supremo, determinada por Dias Toffoli muito antes do hackeamento das conversas entre Moro e Dallagnol, também requisitou todas as provas à Polícia Federal.

Alon Feuerwerker*: A resistência a Bolsonaro está destreinada para o reset ideológico

- Blog do Noblat / Veja

A resistência a Bolsonaro está destreinada para o reset ideológico que ele propõe

Todo início de governo forte (FHC 1995, Lula 2003, Bolsonaro 2019) apresenta dificuldades redobradas para a oposição. Governos novos e fortes no Brasil tendem a conseguir rapidamente maioria esmagadora no parlamento. Desde que saibam – e possam – usar os mecanismos tradicionais de cooptação. Aqui as maiorias não se consolidam na eleição, mas nos primeiros meses de atividade no Congresso. Governo que faz a leitura certa do jogo não tem problemas.

Ficar por aí falando mal da oposição de agora, por exemplo por vir sendo largamente derrotada na reforma da previdência, embute uma dose de oportunismo político. Não que oportunismos sejam proibidos na política, mas fica aqui o registro necessário. O andamento da previdência até que vem sendo razoável, graças também ao desejo do presidente da Câmara de mostrar alguma autonomia. E no Legislativo a oposição vem mostrando flexibilidade tática, com resultados.

O problema da oposição não está no parlamento, onde o chamado centrão oferece margem de manobra pontual ao antigovernismo. Está num terreno antes dominado pela esquerda e pela “social-democracia” à brasileira nos últimos pelo menos quarenta anos, se não mais. A luta ideológica, a guerra entre narrativas, a batalha das ideias, a disputa pela visão de futuro. Que necessariamente depende de como se vê o passado. Bolsonaro propõe um reset nisso aí.

Ao longo das últimas quatro décadas o debate político-ideológico estava organizado mais ou menos assim. O golpe de 1964 tinha sido ruim, por suprimir a democracia. As diretas já e Tancredo-Sarney, bem como a Constituinte, foram bons, por fazer retornar a democracia. Os militares não darem palpite na política era bom. Bons também eram os movimentos sociais e as organizações da chamada “sociedade civil”, por injetarem participação social no poder.

O colapso dessa narrativa se revelou finalmente e pôde ser medido em números quando fracassou em grande estilo a política petista de “frente ampla democrática” no segundo turno presidencial. Se não tivesse sido abandonada na reta final da campanha, provavelmente Jair Bolsonaro teria colocado não dez, mas uns vinte pontos de vantagem sobre Fernando Haddad. Era o que diziam as boas pesquisas quinze dias antes da decisão.

Esse colapso tem raízes objetivas, incluído aí o desaparecimento do que em tempos imemoriais se chamou “burguesia nacional”. Um segmento terminado de finalizar pela LavaJato. E subjetivas, incluído o pânico instalado nos mecanismos de reprodução social ideológica pela possibilidade de perenização do PT no poder. Bolsonaro sintetiza de um jeito algo primitivo, quando diz “ter salvo o Brasil do comunismo”. No fundo, o antibolsonarismo de salão concorda.

Marcus Pestana: Desenvolvimento econômico e intervenção estatal (Parte II)

- O Tempo (MG)

Fica claro que o papel do Estado é uma questão em aberto e que não há receitas prontas e exatas. A realidade sepultou os sonhos daqueles que advogavam um Estado máximo, onde o planejamento centralizado substituísse os mecanismos de mercado.

A questão passa a ser a calibragem ideal entre o livre jogo das forças de mercado e a intervenção regulatória e de política econômica do aparato governamental. Mas as crises cíclicas, os desequilíbrios e as desigualdades impõem algum grau de intervenção e arbitragem do Estado. Esta não é uma questão abstrata e depende das circunstâncias históricas concretas.

O Brasil faz parte do bloco dos países de industrialização tardia. Até a década de 1930, tínhamos a dinâmica de acumulação capitalista liderada pelo setor agroexportador herdado de nossas raízes coloniais e escravistas.

A industrialização por substituição de importações se deu com alta participação e indução estatal. Até a organização do mercado de trabalho partiu do Estado com a CLT. No período getulista, no Plano de Metas de JK e no Segundo PND de Geisel, mecanismos de incentivos e proteção cambiais, creditícios, fiscais foram usados a esmo de forma heterodoxa em nome do objetivo central da industrialização do país. Sem falar na intervenção direta do Estado-empresário em setores como petróleo, mineração, siderurgia, energia e telecomunicações. O resultado foi um país de razoável nível de complexidade industrial, um agronegócio moderno e competitivo e os maiores índices mundiais de crescimento entre o pós-guerra e 1980.

Bolsonaro transgride separação de Poderes, diz Celso de Mello

- Entrevista com Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal

‘Presidente minimiza perigosamente importância da Constituição’, diz decano

Ministro critica governo Bolsonaro no caso da demarcação de terras indígenas e diz que voto sobre Lula ainda não está pronto

Rafael Moraes Moura / O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA – Depois de dar o voto mais contundente no julgamento em que o Supremo Tribunal Federal contrariou o Palácio do Planalto e manteve a demarcação de terras indígenas com a Funai, o decano da Corte, ministro Celso de Mello, disse ao Estado que o presidente Jair Bolsonaro “minimiza perigosamente” a importância da Constituição e “degrada a autoridade do Parlamento brasileiro”, ao reeditar o trecho de uma medida provisória que foi rejeitada pelo Congresso no mesmo ano. “Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade suprema da Constituição da República”, afirmou.

Ao longo dos últimos meses, o decano se tornou o principal porta-voz do Supremo em defesa das liberdades individuais e de contraponto às posições do governo. Alvo de um pedido de impeachment após votar para enquadrar a homofobia como crime de racismo, Celso de Mello disse que a Corte não se intimida com manifestações nas ruas ou ameaças de parlamentares. “Pedidos de impeachment sem causa legítima não podem ter e jamais terão qualquer efeito inibitório sobre o exercício independente pelo Supremo Tribunal Federal de suas funções”, disse.

É do decano o voto considerado decisivo no julgamento da Segunda Turma do Supremo em que a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva acusa o ex-juiz e atual ministro da Justiça, Sérgio Moro, de agir com parcialidade ao condenar o petista no caso do triplex do Guarujá (SP). O ministro defendeu celeridade na análise do habeas corpus do ex-presidente, mas disse que sua convicção sobre o tema não está formada. Celso de Mello falou ao Estado após a sessão plenária de quinta-feira, 1º.

• Por unanimidade, o Supremo impôs nova derrota ao Palácio do Planalto e manteve a demarcação de terras indígenas com a Funai. Foi um recado ao presidente Jair Bolsonaro?

É fundamental o respeito por aquilo que se contém na Constituição da República. Esse respeito é a evidência, é a demonstração do grau de civilidade de um povo. No momento em que as autoridades maiores do País, como o presidente da República, descumprem a Constituição, não obstante haja nela uma clara e expressa vedação quanto à reedição de medida provisória rejeitada expressamente pelo Congresso Nacional, isso é realmente inaceitável. Porque ofende profundamente um postulado nuclear do nosso sistema constitucional, que é o princípio da separação de Poderes. Ninguém, absolutamente ninguém, está acima da autoridade suprema da Constituição da República.

• Faltou um melhor assessoramento jurídico para o presidente Jair Bolsonaro nesse caso?

Isso eu não sei, eu realmente não posso dizer.

• O senhor deu um voto contundente, apontando “perigosa transgressão” ao princípio da separação dos Poderes. O Supremo também contrariou o Planalto ao proibir o governo de extinguir conselhos criados por lei e foi criticado pelo presidente Jair Bolsonaro por enquadrar a homofobia e a transfobia como racismo.

Aqui (na demarcação de terras indígenas) a clareza do texto constitucional não permite qualquer dúvida, é só ler o que diz o artigo 62, parágrafo 10 da Constituição da República (o texto diz que é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo). No momento em que o presidente da República, qualquer que ele seja, descumpre essa regra, transgride o princípio da separação de Poderes, ele minimiza perigosamente a importância que é fundamental da Constituição da República e degrada a autoridade do Parlamento brasileiro. A finalidade maior da Constituição é estabelecer um modelo de institucionalidade que deva ser observado e que deva ser respeitado por todos, pois, no momento em que se transgride a autoridade da Constituição da República, vulnera-se a própria legitimidade do estado democrático de direito.

A democracia corre risco de termos a ditadura pelo voto', diz ex-ministro de FHC

- Entrevista com José Carlos Dias

Para José Carlos Dias, Comissão Arns reedita união da sociedade civil em 'luta contra o ódio'

Ricardo Kotscho / Folha de Paulo

SÃO PAULO - Na mesma sala do 26º andar do Edifício Itália, no centro de São Paulo, onde defendeu 512 presos e perseguidos políticos pela ditadura militar, o advogado criminalista José Carlos Dias mostra disposição para começar tudo de novo.

Aos 80 anos, Dias lidera a Comissão Arns Contra a Violência, criada em março, agora integrada por CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

As três entidades da sociedade civil recentemente renovaram suas direções nacionais e tiveram importante papel na redemocratização durante a campanha das Diretas-Já, em 1984. O movimento será oficialmente lançado em Brasília, no próximo dia 8, na sede da OAB.

Ex-ministro da Justiça do governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999 e 2000, e ex-presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, nos tempos de dom Paulo Evaristo, o advogado conta o que levou à criação da Comissão Arns.

“Nós nos unimos na luta contra a violência e o ódio”, diz, e faz uma advertência: “A democracia hoje corre risco de termos a ditadura de volta pelo voto”.

Na última entrevista que concedeu à Folha, pouco antes de morrer, o escritor Antonio Callado disse: “Lutei sempre do lado certo. Perdi todas”.

Esse não é o caso de José Carlos Dias, que também lutou sempre do mesmo lado, ganhou muitas batalhas e perdeu outras, mas ainda não desistiu.

• O que levou a sociedade civil a se mobilizar novamente, com a criação da Comissão Arns Contra a Violência?

Foi a necessidade de nós reatarmos aquela união que se deu na luta pelas Diretas-Já. Naquela época, nós estávamos todos juntos no mesmo palanque. Depois, nós nos separamos e nos iludimos e hoje estamos vivenciando uma situação terrível. Nós nos unimos de novo na luta contra o ódio e a violência. Nas vésperas do segundo turno, eu disse que só o Bolsonaro era capaz de me fazer votar no PT.

• Em que momento você sentiu esse clima de intolerância?

Eu fui junto com outros agentes do direito entregar um manifesto de apoio ao Haddad e, ao sair do hotel para pegar um táxi, passou um carro com duas mulheres que começaram a me insultar, me chamaram de “comunista e filho da puta”. Não posso imaginar agora como podemos continuar divididos quando nós estamos lutando contra um inimigo comum. Até dentro da mesma família tinha pessoas se digladiando.

Afinal, o que é ser um liberal?

Governos populistas atacam liberdades individuais e instituições, mas alguns deles recorrem ao liberalismo na agenda econômica

Liberalismo, o curinga de populistas

Por Amália Safatle | Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

SÃO PAULO - O liberalismo virou uma espécie de curinga a que a política volta e meia recorre, seja para execrá-lo, seja para tentar colher frutos com sua parceria. A mais nova tentativa dos liberais de resgatar seus pilares está em "O Chamado da Tribo - Grandes Pensadores para o Nosso Tempo", do Nobel de Literatura peruano Mario Vargas Llosa, que acaba de ser lançado no Brasil pela Objetiva.

Autobiográfico, é um ensaio em que Vargas Llosa descreve seu percurso de vida na direção de ideais liberais, distanciando-se da "juventude impregnada de marxismo e existencialismo sartriano". Ao relatar a evolução dessas ideias por meio de expoentes do pensamento - desde Adam Smith, nascido em 1723, passando por José Ortega y Gasset, Friedrich August von Hayek, Karl Popper, Isaiah Berlin, Raymond Aron, até Jean-François Revel, morto em 2006 -, o escritor reforça o elo entre o liberalismo e a revalorização da democracia. Trata-se de contraponto à disputa de narrativas que hoje se vê no mundo da política.

Narrativa como a do presidente da Rússia, Vladimir Putin, que, em entrevista às vésperas do G-20, atacou o liberalismo, acusando-o dos males que assolam o mundo, das crises migratórias ao multiculturalismo que destrói valores familiares. Ou como do persistente movimento dos coletes amarelos na França, ao lembrar sempre que a globalização gerou nas democracias liberais um clube de elite do qual foram alijados. Ou da onda populista de "democracias iliberais" como Hungria, Polônia, Turquia e Itália, nas quais grassa o ataque às instituições e às liberdades individuais, colocando em xeque o que esses países chamam de democracia.

Enquanto isso, no Brasil, o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL) conta com uma equipe econômica de cunho liberal e ministros e assessores de outras áreas que marcam posição contra o "marxismo" que teria guiado gestões petistas, sobretudo a partir do segundo mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. "Da mesma forma que hoje vemos uma aliança de oportunidades, de ocasião ou de conveniência entre o liberalismo e um presidente com uma pauta conservadora de costumes, no passado vimos a aliança entre uma pauta liberal reformista e um governo social-democrata", diz o economista Gustavo Franco, um dos pais do Plano Real e ex-diretor do Banco Central no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Diante da pergunta se o atual governo pode ser considerado liberal, Franco responde que não existe até o momento nenhum elemento que o permita afirmar isso. Para o economista, o modo como a pauta liberal entrou na candidatura Jair Bolsonaro foi, sem dúvida, um casamento de conveniência que ocorreu em muitas outras chapas de 2018, mesmo a do PSDB. "O PSDB largou qualquer pudor em abraçar essa pauta nesta campanha e apresentava uma versão bem mais radical do que foi a sua prática histórica. Quase todas as outras candidaturas, exceto a do PT e a do Ciro [Gomes], abraçaram entusiasticamente essa pauta", diz o autor do programa econômico de João Amoêdo, candidato à Presidência pelo Novo.

"Bolsonaro tem uma percepção muito forte e viu que estava vindo por baixo um 'bicho liberal', assim como tinha um 'bicho conservador' chegando também. Então ele pegou isso para contrapor ao marxismo e ao petismo", afirma Hélio Beltrão, fundador do Instituto Mises, "think tank" ultraliberal onde o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) chegou a ter aulas. "[Jair Bolsonaro] enxergou uma oportunidade política que vinha da sociedade e a capitalizou politicamente. Mesmo que, no fundo, ele não acredite no liberalismo, isso é irrelevante para a política."

O "bicho liberal" parece ser representado, sobretudo, pela população pentecostal. "O crescimento da igreja evangélica no Brasil é um dos elementos que nos permite pensar que esse liberalismo já estava aí há muitos anos, e ninguém estava notando", comenta Franco, para quem Bolsonaro usou de forma muito competente essa plataforma, que antes estava desorganizada. "Na eleição anterior, você via um discurso ultraliberal do Pastor Everaldo [PSC]. Ninguém levava a sério, era um candidato nanico, mas era o cara que falava da privatização da Petrobras. Parecia exótico, mas, ao mesmo tempo, não parecia."

Essa significativa fatia da população - estimada em 30% - que cultiva valores como esforço pessoal e prosperidade material, já tinha a sensação de que o Estado brasileiro não é capaz de entregar o que promete, frustração agudizada pelas denúncias de corrupção e desperdício de dinheiro público, segundo Franco. "O episódio do petrolão vem se juntar ao antipetismo e desemboca em um sentimento liberal pró-mercado. Ou seja, cresce uma demanda por horizontalidade, por regras do jogo iguais, por individualismo."

O dado novo, para Sergio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC, é que agora existe esse bloco organizado e com raízes espraiadas na sociedade: "Os grupos evangélicos estão crescendo e vieram para ficar", afirma. Mas qual é a alma do liberalismo, afinal? Segundo Fausto, embora não seja um monólito, o liberalismo possui vertentes e matizes como toda filosofia política importante, seu fundamento básico é a ideia de que a boa política e a boa economia dependem da proteção das liberdades individuais.

"O liberalismo basicamente pressupõe que o motor do progresso humano é a ação dos indivíduos. De uma maneira simplória, esse é o fundamento que unifica as várias correntes", afirma Fausto. Ele observa que o liberalismo econômico, o político e o de costumes não são a mesma coisa, podendo estar ou não entrelaçados. A partir de diferentes combinações, distingue basicamente os três grupos atuantes no país.

O primeiro é liberal nas três vertentes: na economia, na política e nos costumes. Na política, porque é a favor da separação dos Poderes, da contenção do poder do presidente e da liberdade de imprensa. Nos costumes, porque entende que isso é uma questão de esfera privada, ou seja, o Estado não tem de inferir com quem o sujeito dorme, enquanto cabe à mulher as escolhas sobre o seu próprio corpo. "Essa é uma família de liberais puro-sangue que, no Brasil, tem uma expressão política ainda muito tímida."

O segundo grupo tem como exemplo o governo Bolsonaro, que, segundo Fausto, combina liberalismo econômico, liberalismo político pela metade e um conservadorismo nos costumes que beira o reacionarismo político moral, com o forte componente pentecostal. "Diria que chega a ser retrógrado, pois o conservador não é contra a mudança, ele a tolera desde que se preservem certas tradições que constituem os esteios da sociedade. Na política, esse grupo é liberal pela metade, quando enfatiza a ordem como valor, admitindo ferir algumas liberdades se isso for necessário para manter a ordem social."

Já o terceiro agrupamento é liberal na política, relativamente liberal do ponto de vista econômico e profundamente liberal nos costumes. Defende um Estado constitucionalmente limitado, um setor privado forte e não acredita que uma sociedade moderna e complexa possa ser viável com políticas de Estado mínimo.

Bolsonaro continua a receber lições sobre limites do Executivo: Editorial / O Globo

Reedição ilegal de MP é um caso entre outros em que o Executivo invadiu espaços institucionais
Espera-se que o presidente Jair Bolsonaro aprenda com mais esta lição como funcionam as instituições numa democracia. A aula prática agora foi dada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em sua primeira sessão pós-recesso, em que, por unanimidade dos dez ministros presentes, confirmou liminar concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso contra a reedição, na mesma legislatura, de medida provisória rejeitada.

É provável que a irritação com o veto tenha sido maior porque a MP tratava de um tema usado como bandeira por Bolsonaro na campanha, contra ONGs e a preservação do meio ambiente: a transferência da Funai para o Ministério da Agricultura da função de demarcar terras indígenas. Um despropósito. Pouco tempo depois da derrota, Bolsonaro foi às redes para, ao vivo, lamentar que a Justiça “está se metendo em tudo”. Ora, este é seu papel numa República, ao ser acionada. Depois, o presidente assumiu a responsabilidade pela MP. Mas este é o problema. E deu razão ao Supremo. Que tenha sido sincero.

Exibição de força: Editorial / Folha de S. Paulo

Com respostas a Bolsonaro e à Lava Jato, STF reafirma poder e expõe divisões

Encerrado o recesso de julho, os ministros do Supremo Tribunal Federal aproveitaram a volta ao trabalho para fazer uma esmagadora demonstração de seu poder.

Em sua primeira sessão plenária, nesta quinta (1º), deram um duro recado ao governo Jair Bolsonaro (PSL) em meio a uma discussão sobre tentativa de mudança da competência para demarcações de terras indígenas.

Coube ao decano do tribunal, ministro Celso de Mello, transmitir a mensagem, acusando o presidente da República de transgredir o princípio da separação dos Poderes ao reeditar uma medida que já fora rejeitada pelo Congresso.

Em outro movimento, o ministro Alexandre de Moraes mandou suspender investigações da Receita Federal que atingiram mais de uma centena de contribuintes, incluindo dois integrantes do Supremo.

Falta de mandato: Editorial / O Estado de S. Paulo

O bom funcionamento das instituições deve conduzir o País à necessária pacificação social, com distensão das polarizações, dos conflitos e das animosidades. Esse processo não é uma política de governo, mas constitui verdadeira finalidade de Estado. Não há desenvolvimento econômico e social possível num ambiente social sem paz, com ânimos acirrados. Mas esse caminho não é percorrido sem percalços e dificuldades. Qualquer avanço exige estratégia e sabedoria. E ressentimentos e desconfianças, criados às vezes inadvertidamente, produzem entraves que levam décadas para serem superados. A atual crise, longa e desgastante, não pode continuar sendo cultivada, sob pena de comprometer as gerações futuras a um desgaste intolerável. Há casos de que nos podemos valer para abreviar esse processo de cura política e moral, com benefícios indiscutíveis para a comunidade.

Na história recente, por exemplo, ficou famoso o Pacto da Moncloa, firmado na Espanha em outubro de 1977 por partidos políticos, sindicatos e empresários. O pacto, que consistiu em dois acordos, estabeleceu as bases para a transição democrática após a ditadura franquista. Diante de um país profundamente dividido – a Guerra Civil Espanhola, nos anos 30 do século passado, havia cindido regiões, cidades e famílias –, lideranças políticas e civis firmaram um pacto de pacificação, cuja estratégia central consistiu em deliberar paulatinamente as questões em aberto, começando por aquelas cujo consenso seria mais fácil de ser obtido.

Sérgio Augusto: Chevette, alazão e Learjet

- O Estado de S. Paulo

A última vez em que fui preso, cavalguei um cavalo e inaugurei uma boate eu estava com Miguel Paiva. O mesmo Miguel Paiva que vocês conhecem como artista gráfico, cartunista, roteirista, e criador de dois personagens mais famosos do que ele: a Radical Chic e o Gatão de Meia Idade, ambos seus alter egos, ela mais do que ele, mas isso pode ser preconceito meu.

Temos aí 46 anos de amizade e mais uns trocados de convivência. Fomos até vizinhos, nas cercanias da Fonte da Saudade, onde até hoje mora Ziraldo, que cheguei a pensar que fosse o verdadeiro pai do Miguel, tão ligados entre si os conheci.

Temos certeza de que nos conhecemos no Pasquim, quando a maior parte da redação do irreverente semanário tirou dois meses de férias compulsórias na Vila Militar, sem qualquer acusação formal. Para que o jornal continuasse existindo e circulando, Miguel ajudou a montar, com Marta Alencar, um mutirão de jornalistas do Rio e São Paulo, que a um dos dois confiavam suas solidárias colaborações, pagas, que jeito?, a leite de pato.

E foi assim que, com Miguel suando a camisa no meio de campo, o Pasquim não falhou um só número durante o confinamento de seu núcleo duro pela ditadura militar.

Incorporado em definitivo à equipe, depois da soltura do pessoal, passei a dividir com Miguel um espaço na garagem do número 32 da Rua Clarisse Índio do Brasil, na fronteira do Flamengo com Botafogo, a segunda sede do jornal. Era o melhor lugar da casa, pois suas dependências também funcionavam como estúdio fotográfico, o que vale dizer que as candidatas ao consagrador título de “Garota do Pasquim” ali desfolhavam a margarida a alguns palmos de nossas mesas de trabalho quando não sobre elas languidamente reclinadas.

Manuel Bandeira: Madrigal Melancólico

O que eu adoro em ti
Não é a tua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza

O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Não é o teu espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada a cada momento
Graça aérea como teu próprio momento
Graça que perturba e que satisfaz

O que eu adoro em ti
Não é a mãe que já perdi
E nem meu pai

O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto matinal
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.

O que adoro em ti lastima-me e consola-me:
O que eu adoro em ti é a vida!

Elba Ramalho: A natureza das coisas