A experiência desses dias de tragédia na Região Serrana do Rio de Janeiro está servindo também para que os envolvidos nos trabalhos voluntários de socorro se defrontem com suas próprias fragilidades. Do relato de dificuldades e desencontros entre os voluntários e os serviços do Estado, e entre os próprios voluntários entre si, fica uma certeza: assim como as ações governamentais, também o voluntariado precisa ser aprofundado, organizado e centralizado.
Há o exemplo da dificuldade que a ONG Viva Rio teve em Teresópolis para trabalhar na vacinação da população, quando tinha especialistas que já haviam atuado no Haiti, prontos para entrarem em ação, e a burocracia da prefeitura atrasou a ajuda.
Há o exemplo de Areal, em que a mobilização pessoal do prefeito, com um tosco carro de som, ajudou a população a minimizar as consequências da tragédia, inclusive poupando vidas humanas.
E há o caso da Cruz Vermelha, que pediu ao BNDES para não mandar as doações recolhidas no banco sem já estarem separadas, mas não explicou como separar, e mesmo assim, só o fazer daqui a algumas semanas, pois já receberam muitas doações que ainda precisam ser despachadas.
Há uma sensação de que todo o chamado terceiro setor (das ONGs até as igrejas, passando pela Cruz Vermelha) precisaria montar uma só rede de socorro humanitário, ou no máximo duas ou três.
Não podem continuar a atuar isoladamente como hoje, e muito menos alimentar uma fogueira de vaidades, com todos querendo aparecer, embora se digam avessos à politicagem.
Ou seja, acontece uma tragédia como essa, precisam trabalhar em rede.
Antes da tragédia, precisariam fazer um planejamento estratégico e montar um modo comum de atuação: estudar e definir o papel de cada um tão logo toque a sirene de alerta em algum lugar do país.
Não pode acontecer, como agora, todos acorrerem para o lugar da tragédia sem saber o que está sendo necessário, provocando situações em que muita doação chega em excesso, enquanto faltam produtos de primeira necessidade para uma situação específica.
Alimentos perecíveis, por exemplo, são difíceis de armazenar; se não forem distribuídos na hora, são perdidos.
Há necessidades que são óbvias, mas não percebidas no primeiro momento. Botas de borracha para enfrentar a lama, por exemplo, eram um produto de primeira necessidade escasso. Assim como luvas.
Houve casos nas regiões das enchentes em que o que era preciso eram roupas de baixo para homens e mulheres, e não colchonetes, por exemplo.
Falta desde uma linha de montagem para receber e processar doações, até logística para transportar e distribuir.
O ideal seria ter uma rede social na qual cada ONG tivesse responsabilidade, previamente definida e posteriormente avaliada e cobrada, em relação a uma etapa dessa cadeia de assistência humanitária, que fosse desde a coleta da doação (em espécie ou em dinheiro) até a entrega ao desalojado ou desabrigado.
Em suma, o terceiro setor deveria atuar como uma empresa.
Hoje, atua exatamente como o governo, mas se julga mais honesto e eficaz do que ele, porém, mesmo sem querer, acaba repetindo os mesmos vícios: desorganizados; descoordenados; ineficientes e ineficazes.
Na raiz, as vaidades pessoais ou institucionais, uma ONG querendo ser melhor do que a outra. O ideal seria ter uma rede nacional, com marca genérica, sem grife individual.
É um sonho impossível?
Ora, as ONGs não montam associações para ir a Brasília pedir verbas para o setor?
Anos atrás, quando se criou uma CPI das ONGs, o chamado terceiro setor se uniu de forma impressionante. Raramente se viu uma força pressionar tanto, do governo ao Congresso, de forma tão unida, coordenada, discretíssima e, o principal, eficiente - aliás, o resultado é simples: algo mudou por causa dessa CPI?
Por que não poderiam fazer o mesmo esforço de articulação e coordenação para prestação de ajuda humanitária?
Uma coisa é certa, como alertam todos os especialistas: essa tragédia da serra fluminense se repetirá em outras localidades do Brasil, esperamos que com menos vítimas, mas não há por que se repetirem os mesmos erros - os próprios socorristas (governamentais e não governamentais) precisam de socorro.
O leitor Valmi Pessanha Pacheco, lendo na coluna a referência a supostos "níveis de governo", lembra que não existe hierarquia ou mesmo subordinação entre eles.
Alguns outros autores, inclusive até membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, também expressam supostas "instâncias de governo", diz ele.
Talvez fosse mais adequado denominar "esferas de governo", sugere, já que o artigo 18 da Constituição Federal de 1988 determina que "A organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição".
Outra curiosidade brasileira destacada por ele na Constituição: dos 250 artigos do seu corpo principal, dos 95 artigos dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, alguns deles introduzidos pelas 56 Emendas Constitucionais (até 2007) e das 6 Revisões Constitucionais (todas de 1994), os verbetes "direito/direitos" estão inseridos 105 vezes, enquanto os verbetes "dever/deveres/obrigação/obrigações", apenas 25 vezes.
FONTE: O GLOBO