O Estado de S. Paulo
Há evidente mal-estar nas democracias e,
com a perda do centro, os sistemas políticos e a própria vida social parecem à
deriva – e em mar aberto.
Efeitos de perda de referência política –
de descentramento – estão à mostra por toda parte, comprovando que este não é
um tempo de cabotagem, quando se pode navegar olhando para a costa e
consultando os mapas de sempre. O fenômeno, espantoso à primeira vista, atinge
realidades diferentes, mas emblemáticas, como Suécia, Itália ou Estados Unidos,
e obviamente não nos poupa. Sua generalidade requer algum tipo de explicação
para além das particularidades de cada caso. É que há um evidente mal-estar nas
democracias e, com a perda do centro, os sistemas políticos e a própria vida
social parecem à deriva – e em mar aberto.
Situação arriscada, como se sabe, e
propiciadora de excentricidades e patologias. Não por acaso, retorna o paralelo
com tragédias que aconteceram há cem anos, com a irrupção dos totalitarismos e
a desconfiança quase universal que rodeava as poucas e frágeis democracias de
então. Algumas experiências social-democráticas engatinhavam em âmbito nacional
restrito, antes de se espalharem no segundo pós-guerra, especialmente na Europa
Ocidental. E nos Estados Unidos as reformas do New Deal começavam a
redesenhar o capitalismo depois da catastrófica depressão que aparentemente
decretara o colapso daquele tipo de sociedade.
Processos, todos eles, lentos e contraditórios, à moda das revoluções passivas, mas de sinal positivo. Neles, ao fim e ao cabo, a mudança abria brechas significativas no muro do passado e as sociedades abertas se projetavam à frente, mais além do horror nazifascista e da distopia stalinista. Foi um movimento tão forte que durou por décadas a fio, parecendo domesticar os instintos animais dos mercados, até que o economicismo bruto das políticas de Reagan e Thatcher lançasse ao mar como carga inútil o compromisso alcançado. E não por coincidência os projetos iniciais do presidente Joe Biden aludiram explicitamente a Roosevelt, tentando recuperar a audácia reformista do ícone democrata por excelência.