terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Opinião do dia – Norberto Bobbio*

Aqui preciso que a concepção negativa em Marx é ainda mais evidente se comparada com aquela extremamente positiva de seu grande predecessor e antagonista, Hegel. Quanto à relação entre sociedade civil e estado, a posição de Marx é antitética à de Hegel: para Hegel, o estado é “racional em si e para si”, o “deus-terreno”, o sujeito da história universal: em suma, o momento final do Espírito Objetivo; como tal, é a superação das contradições que se manifestam na sociedade civil. Para Marx, ao contrário, o estado é tão só o reflexo destas contradições, não sua superação, mas sua perpetuação. Não só para Hegel, resto, mas para a maior parte dos filósofos clássicos, o estado representa um momento positivo na formação do homem civil, O fim do estado é ora a justiça (Platão), ora o bem comum (Aristóteles), ora a felicidade dos súditos (Leibniz), ora a liberdade (Kant), ora a máxima expressão do ethos de um povo (Hegel). O estado, de praxe, é considerado como a saída do homem do estado de barbárie ou do estado de natureza caracterizado pela guerra de todos contra todos, como domínio da razão sobre a paixão, da reflexão sobre o instinto.

*Norberto Bobbio (1909-2004). “A Teoria das formas de governo”, p. 182, 1ª edição. Edipro, 2017 (tradução de Luiz Sérgio Henriques).

Josias de Souza - Huck encara sucessão de 2022 como ‘maratona’

Blog do Josias | Uol

Candidato não declarado ao Planalto, o apresentador Luciano Huck, da TV Globo, compara seu projeto presidencial com uma corrida de longa distância. "Ele diz: 'Tenho que ter cuidado, porque isso é uma maratona", conta Roberto Freire, presidente do Cidadania, partido que ambiciona a filiação de Huck.

Numa maratona, o corredor precisa combinar força física e equilíbrio mental. Quem se deixa levar pela ansiedade, apressando demais o passo na largada, arrisca-se a perder o fôlego antes de cruzar a linha de chegada. "Ele está certo. Faltam três anos para a eleição. Não tem razão para se precipitar", aprova Freire.

No caso de Huck, a ausência de pressa não se confunde com inação. Ao contrário, ele segue uma estratégia metódica. Na prática, realiza uma campanha invisível. Percorre o país, reúne-se com lideranças comunitárias locais, apoia movimentos apartidários de formação política e articula-se com um seleto grupo de políticos e formuladores de políticas públicas.

Nos últimos meses, Huck conversou com políticos de quatro partidos: Cidadania, PSDB, DEM e Podemos. Em privado, alguns dos interlocutores declaram-se impressionados com a desenvoltura do personagem. Os mais impactados avaliam que o astro de TV reúne potencial para se firmar como novidade em meio à polarização que opõe Jair Bolsonaro e Lula.

• Alternativa à polarização
No inicio de novembro, Huck reuniu-se em Brasília com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM. Já havia conversado com o presidente da legenda, Antônio Carlos Magalhães Neto, prefeito de Salvador. Ao trocar ideias com os correligionários, Maia disse apostar que a sociedade vai se cansar da disputa entre polos extremos.

O DEM sonha com a candidatura de Maia, mantém um pé na canoa do governador paulista João Doria (PSDB) e tem três filiados na equipe ministerial de Bolsonaro. Mas o presidente da Câmara avalia que, se a economia não deslanchar, o eleitor pode encontrar em Huck a novidade que procurava ao optar por Bolsonaro na sucessão de 2018.

Roberto Freire faz a mesma aposta: "A sociedade vai fugir da polarização. Não dá mais para votar num candidato apenas para evitar o outro. Isso é um desastre para o país. É preciso construir uma alternativa que expresse o desejo de votar em algo mais construtivo. O Huck reúne as condições para representar esse desejo".

Merval Pereira - Um século antecipado

- O Globo

Nesses 11 meses de governo, Bolsonaro já quis se livrar de Moro, mas verificou que seria uma perda considerável para seu apoio popular

O que já circulava como rumor nos grupos políticos mais próximos do presidente Jair Bolsonaro, ontem virou realidade. Em entrevista ao Estadão, o articulador político do Palácio do Planalto, o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos, disse que uma chapa de reeleição com o ministro Sérgio Moro de vice “seria imbatível” na disputa de 2022. “Ganhava no primeiro turno, disparado”, avaliou.

Não é a primeira vez, antes de completar um ano de mandato, que Bolsonaro, que garantira na campanha ser contra a reeleição, aparece nas especulações de seu entorno, e nas suas próprias, como candidato. Mas, como costuma dizer o presidente da Câmara Rodrigo Maia, daqui a até 2002, em política, falta “um século”.

O tempo da política nada tem a ver com o calendário gregoriano, assim como o tempo da economia costumeiramente depende da situação política, e vice-versa. No momento, o governo Bolsonaro vive esse dilema. A perspectiva política é sombria em grande parte dos países, em especial aqui na América do Sul, e por isso o presidente orientou seu ministro da Economia Paulo Guedes a suspender temporariamente as reformas.

Carlos Andreazza - Paulo Guedes está irritado

- O Globo

Talvez já não se sinta um superministro

As revoltas recentes na América Latina, sobretudo no Chile, têm servido como desculpa para justificar tanto o ímpeto autocrático do bolsonarismo — o recrudescimento, por exemplo, do discurso que legitima algo como um novo AI-5 caso evento parecido ocorresse no Brasil — quanto as dificuldades do governo Bolsonaro, especialmente em matéria econômica.

Diga-se que ninguém se valeu mais deste recurso — da muleta do quebra-quebra chileno —do que Paulo Guedes.

As rebeliões no continente, aliás, iluminaram o que havia muito estava nu: que o ministro jamais poderia ser agente educador-moderador do presidente-imperador, e pelo fato de que o Posto Ipiranga sempre esteve muito mais próximo da mentalidade bolsonarista, com sua vocação para o conflito e a ruptura, que do lugar de equilíbrio institucional fetichizado por empresariado e mercado financeiro.

As rebeliões no continente — à luz do que manifestam nossos governantes — deveriam nos lembrar de que não há uma tradição democrática no Brasil, e que os limites definidos pela democracia tendem mais a incomodar que confortar. Guedes está irritado. Reage não se opondo — não raro oferecendo tortuosos argumentos — aos que surfam a tentação de atribuir os percalços da agenda reformista liberal ao que seriam excessos da democracia. Seria mais fácil com menos — já nos ensinou Carlos Bolsonaro.

Nas palavras de Guedes, somente na semana passada, as convulsões na América Latina tentaram autorizar uma aberração inconstitucional — excludente de ilicitude em operação de Garantia da Lei e da Ordem — e aliviar a carga de uma constatação: a de que seu programa de reformas estruturais parou. Por ordem do presidente: parou.

Edmar Bacha* - Liberalismo tropical

- O Globo

Não há como arguir que a abertura comercial deva ser feita apenas depois da redução do custo Brasil

Em reunião com representantes da indústria química, o ministro Paulo Guedes disse que “não vamos soltar a indústria estrangeira em cima da indústria nacional antes de nós simplificarmos impostos... É uma abertura gradual... e vai ser feita em cima de energia barata, de custos de logísticas mais baratos”.

Em artigo no GLOBO (27/11), Rubens Penha Cysne adverte que “determinadas reformas podem sempre ser contraproducentes se implantadas na ausência de outras que naturalmente as complementem. Por exemplo, abertura econômica sem que se complete minimamente o dever de casa da infraestrutura e do sistema tributário”.

O que surpreende é que tanto Guedes como Cysne defendem a abertura, porque sabem que ela é essencial para o Brasil se tornar um país rico. Não obstante, no atual governo ela vai ficando para as calendas, para quando tivermos uma infraestrutura supimpa e um sistema tributário de primeiro mundo.

Essa postura não tem respaldo nem na teoria nem na prática. Tomemos a questão da deficiência da infraestrutura, parte integrante do “custo Brasil”, que faria os preços dos produtos brasileiros se tornarem maiores dos que os de nossos parceiros comerciais. Se isso fosse verdade, e houvesse abertura, raciocinando por absurdo, o Brasil pouco exportaria, e haveria uma avalanche de importações.

José Casado - Jair Bolsonaro triplica a aposta

- O Globo

Presidente usa os índios num jogo institucional de alto risco

Jair Bolsonaro resolveu flertar com a possibilidade um choque com o Supremo e o Congresso. Simultaneamente. Insiste em testar os limites institucionais usando, como instrumento, a desmontagem do sistema jurídico de proteção aos direitos da população indígena.

É sua terceira tentativa, em 11 meses, de reescrever na prática o trecho da Constituição que reconhece aos índios “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

No primeiro dia de governo, Bolsonaro transferiu ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos a gestão dos direitos indígenas. Repassou a Funai e a demarcação de terras para a Agricultura. Fez isso numa Medida Provisória (nº 870).

Bernardo Mello Franco - Um símbolo da desigualdade

- O Globo

Em 2004, uma foto aérea transformou Paraisópolis em símbolo da desigualdade brasileira. Quinze anos depois, a favela passa a ser marcada pela violência policial

De um lado do muro, um edifício de luxo, com duas quadras de tênis e uma piscina por andar. Do outro, dezenas de barracos com tijolos aparentes, espremidos pela geografia caótica das favelas.

Em 2004, a foto de Tuca Vieira transformou Paraisópolis num símbolo da desigualdade brasileira. Quinze anos depois, a favela paulistana passa a ser associada à violência policial na periferia.

Uma operação da PM na madrugada de domingo terminou com nove jovens mortos. As vítimas tinham entre 14 e 23 anos. Estavam num baile funk, interrompido com bombas de gás e balas de borracha.

Os exames de necropsia ainda vão verificar se os jovens morreram pisoteados, como sustenta a versão oficial. Mesmo assim, já se sabe que a tragédia foi provocada por uma ação desastrada, que mostrou despreparo e truculência da polícia.

O baile reunia cerca de 5 mil pessoas. A pretexto de prender dois suspeitos, os PMs provocaram pânico e encurralaram a multidão. Quem tentou fugir do tumulto foi agredido com golpes de cassetete. Moradores filmaram o espancamento de jovens caídos.

Míriam Leitão - Por ironia, inimigo dos EUA somos nós

- O Globo

O ataque de Trump ao Brasil é um choque de realidade para o governo Bolsonaro. Países têm interesses, e não amigos ideológicos

O setor do agronegócio dos Estados Unidos é o que mais está sentindo o efeito da guerra comercial criada pelo presidente Trump contra a China. Por isso, ontem, ele inventou um inimigo externo, tática que sempre usa para camuflar seus erros. Desta vez, o inimigo somos nós. E conosco, por ironia, está a Argentina. Os dois países estariam, na delirante explicação de Trump, desvalorizando a moeda deliberadamente para aumentar suas exportações. E de novo mira no aço e no alumínio que já enfrentaram barreiras no governo dele.

Esse é o estilo Trump. Ele cria uma crise contra outros países, dá aos produtores americanos a impressão de que está agindo, e depois faz da retirada do problema, que ele mesmo criou, a sua vitória. Caberá à diplomacia brasileira defender os interesses do Brasil. Ela poderá constatar neste caso o que tem sido dito por todos os analistas que entendem de diplomacia e de comércio exterior, sobre a natureza das relações internacionais.

O que Trump mostrou ontem ao governo Bolsonaro é que países têm interesses e não amigos ideológicos. A resposta de Bolsonaro de que ligaria para ele porque são amigos é patética, tanto que no final do dia já tinha recuado. É preciso ter uma resposta formulada de maneira estratégica. Trump tudo faz de caso pensado e numa entrevista, depois dos ataques matinais no Twitter, voltou a falar contra o Brasil, argumentando que a desvalorização cambial estaria sendo “muito injusta para os nossos industriais e muito injusta para os nossos fazendeiros”.

Luiz Carlos Azedo - Tragédia na vida banal

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“A repressão policial às manifestações culturais da periferia não é eficaz, apenas amplia a base social do crime organizado. Se fosse, não existiria mais pancadão em São Paulo”

Notável geógrafo, o falecido professor Milton Santos era um observador arguto da vida banal nas periferias do mundo, ou seja, o dia a dia dos cidadãos afetados pela globalização, com suas desigualdades e grande exclusão. Dedicou a vida a analisar sua época, com um olhar crítico sobre o atual modelo de relações internacionais, constituído entre 1980 e 1990, e que está sendo posto em xeque tanto no centro como nas periferias do mundo.

Sua geografia desenvolveu novos conceitos sobre espaço, lugar, paisagem e região, nos quais o fator humano tem um papel central. Sempre pôs uma lupa no uso político dos territórios para compreender o desenvolvimento. Teria hoje 93 anos se fosse vivo e, com certeza, do alto da pilha dos seus 40 livros publicados e com o prestígio de doutor honoris causa em mais de 20 universidades do mundo, seria mais uma voz a subir o tom diante da tragédia deste fim de semana em Paraisópolis, a maior favela de São Paulo.

Dizia que a captura das políticas públicas pelos grandes interesses privados acaba por deixar ao relento o cotidiano da população de baixa renda, que se vê obrigada a buscar alternativas de sobrevivência numa espécie de beco sem saída social, porque esses interesses estavam mais voltados para o lucro do que para os objetivos das políticas urbanas e sociais. Segundo ele, a vida banal é desprezada pelo poder público e, no espaço urbano onde essa ausência é maior, surgem as soluções improvisadas, as transgressões e a economia informal (o gás, a gambiarra, o gatonet, a proteção a agiotagem etc.), que muitas vezes acaba capturada pelo crime organizado, que achaca, chantageia e mata, seja ele o tráfico de drogas, sejam as milícias.

Ricardo Noblat - Doria, um governante sem compaixão

- Blog do Noblat | Veja

A chacina de Paraisópolis
A falta de experiência política foi um trunfo usado por João Doria para se eleger prefeito e governador de São Paulo em menos de quatro anos. Pois ela agora se voltou contra ele depois da chacina que deixou nove mortos e 12 feridos na favela de Paraisópolis, a maior da capital paulista, onde moram cerca de 100 mil pessoas.

Somente um político amador, e também insensível, agiria como ele agiu e diria o que ele disse quando ainda jaziam insepultos os corpos dos jovens entre 14 e 23 anos que tentavam escapar com vida da fúria de policiais despreparados. Ou melhor: da fúria de policiais preparados para bater e matar se necessário ou não.

Ao invés de reagir com indignação ao que aconteceu e que poderá lhe custar a carreira, Doria disse sobre a chacina, uma espécie de mini Carandiru que manchará sua biografia para sempre:

“A letalidade foi provocado por bandidos e não pela polícia, tanto que o baile continuou. Nem deveria ter sido realizado. A polícia segue rigorosamente todos os protocolos. Não significa que seja infalível, mas a política de segurança pública não vai mudar.”

E foi em frente no mesmo tom:

Paulo Hartung* - A reforma do Estado e a refundação do Brasil

- O Estado de S.Paulo

É preciso reconstruir a nossa máquina governativa, em todos os seus estratos

A impositiva mudança de rumo na História do Brasil passa necessariamente pela refundação do Estado. Para entrarmos no trilho que nos poderá levar a um caminho de prosperidade compatível com nossas potencialidades é preciso reconstruir a máquina governativa, que, ao longo dos séculos, dá prioridade ao patrimonialismo e ao privilégio, desviando-nos do caminho da igualdade de oportunidades, da inclusão social e do desenvolvimento socioeconômico sustentável.

A dramática realidade de desigualdade e baixa mobilidade social remonta a uma sociedade constituída sobre o colonialismo e o escravagismo. Construímos um país que ostenta distância abissal entre quem tem acesso à instrução e aos bens e serviços do progresso e os empobrecidos que quase nada têm para subsistir e cuja possibilidade de ascender a outra posição socioeconômica é quase nula.

Isso tem muito que ver com a estrutura de Estado que vem sendo historicamente montada. Para não nos afastarmos muito na linha do tempo, basta olhar para o getulismo, a ditadura militar e a Constituinte de 1988 e perceberemos o vulto fortalecido de um Estado concentrador de renda e de oportunidades, e perversamente promotor de desigualdades.

Eliane Cantanhêde - Infernópolis

- O Estado de S.Paulo

Nove jovens mortos. Mas, com o excludente de ilicitude, vai ficar ainda mais macabro

Ao se transformar em Infernópolis, Paraisópolis confirma várias certezas num momento em que os governos e um lado doentio da sociedade aprovam e estimulam armas, polícias violentas e matanças de criminosos a qualquer custo. Não faltam “cidadãos do bem” pregando, sem um pingo de pudor, que “bandido bom é bandido morto”. Mas não são os bandidos, ou não só eles, que estão morrendo.

A palavra de ordem vem do próprio presidente da República e dos seus filhos, vai descendo para os governadores, atinge as secretarias de Segurança e, claro, chegam à ponta: os próprios policiais, que são pagos para defender vidas humanas e acabam virando ameaças à sociedade. Não raro, cidadãos e cidadãs acabam tendo tanto medo do policial fardado quanto do bandido que surge do nada.

As investigações continuam para estabelecer responsabilidades e circunstâncias, mas o fato nu, cru e cruel em Paraisópolis é que nove jovens, entre 14 e 23 anos, morreram de maneira estúpida e inadmissível numa invasão policial num baile funk de fim de semana. Mais uma vez, como já é corriqueiro no Rio, por exemplo, nove famílias, uma comunidade, uma cidade, um Estado e um país sofrem a dor da morte, da violência, do descaso com a vida. E por quem? Por agentes do Estado, pagos inclusive pelos pais, mães, amigos e vizinhos das vítimas de Paraisópolis.

Ana Carla Abrão* - Democracia e justiça social

- O Estado de S.Paulo

Se por um lado os governos petistas passaram mais de uma década distribuindo benesses particulares – de forma mais ou menos republicanas –, o presidente Bolsonaro, orgulhoso representante da direita, hoje vacila em avançar nas correções

Há dois temas que deveriam ser capazes de unir os extremos políticos de um país como o Brasil: o combate às desigualdades sociais e a defesa da democracia. Afinal, são esses os alicerces para que justiça social e garantia das liberdades e direitos individuais estejam sempre protegidos. Mas nem esses, que são conceitos universais, têm gerado a convergência necessária para o nosso avanço.

Justiça social não combina com defesa de grupos específicos de interesse e não conversa com a proteção de privilégios – nem à direita e nem à esquerda. E se houve algo a que o nosso país se acostumou ao longo dos últimos anos foi com uma perversa combinação de clientelismo e patrimonialismo, extraindo o pior do que um Estado pode ser para os seus cidadãos. Essa combinação gerou um Estado ineficiente, pouco efetivo e que reforça as diferenças econômicas e sociais e coloca a população refém do seu próprio governo. Nesse contexto, as forças políticas tendem a ceder às pressões de alguns grupos e a defender políticas públicas e práticas que pouco fazem pelo interesse geral, mas muito agradam a alguns poucos privilegiados. Reformas estruturais são relegadas e condenam o País a um crescimento medíocre. Mas garantem-se votos para as próximas eleições, reforçando o mesmo ciclo.

Pedro Fernando Nery* - Inflacionista nutella

- O Estado de S.Paulo

Enquanto os mais ricos se protegem com aplicações financeiras, os mais pobres não possuem instrumentos para se defender da 'ditadura' da hiperinflação; a concentração de renda piora

Chama-se Teoria Monetária Moderna (MMT, na sigla em inglês). Desconhecida até pouco tempo, ganhou notoriedade por parlamentares mais à esquerda no Partido Democrata americano, como Ocasio-Cortez e Bernie Sanders. Oferece a prescrição dos sonhos para qualquer político: em linhas gerais, o governo poderia gastar sem precisar aumentar impostos. O lema é que governos jamais vão quebrar, se imprimem a própria moeda.

É claro que a modinha já chegou aqui e na semana passada desembarcou no Brasil Randall Wray, professor expoente da MMT. Criticou as políticas do atual governo, mesmo trazido por um órgão federal (a Fiocruz, há muito caixa de ressonância da pauta do funcionalismo). Também participou de evento organizado por sindicatos de servidores.

O leitor pode se espantar com a autodenominação “moderna” da teoria. Afinal, o teste da impressora é um pelo qual o País já passou diversas vezes na tentativa de financiar o Estado de forma indolor. A emissão de moeda e a hiperinflação desorganizava a economia e deixava os miseráveis mais miseráveis. O próprio Wray admitiu no tour brasileiro que a MMT não traz nada de novo e faz a ressalva de que a emissão pode ter como consequência a inflação, mas é difícil conciliar os alertas tímidos com os slogans mais animados do movimento.

Wray veio ensinar a missa ao padre. Vá lá, a simpatia pela MMT na política americana é compreensível para o país que emite dólar, tem histórico de juros baixos e não viveu em décadas recentes episódios de hiperinflação. Aqui, não faz sentido ignorar o problema fiscal e cair no conto de que a impressora resolva os problemas.

De fato, recebeu críticas da esquerda nesse sentido. Na revista Jacobin, o jornalista Doug Henwood apontou neste ano que a MMT está enraizada em um contexto de país rico e na noção do excepcionalismo americano: “Seria triste ver a esquerda socialista, que parece mais forte do que esteve em décadas, cair nesse óleo de serpente. É um fantasma, um sonho febril e imperial, não uma política econômica séria”.

Anjana Ahuja* - Mudanças climáticas em ponto crítico

- Valor Econômico

Estamos caminhando para a transformação do planeta em uma estufa

Quatro anos atrás foi Paris; nas próximas duas semanas será Madri. O cenário muda, mas a mensagem não: o mundo está ficando sem tempo para frear uma mudança catastrófica no clima. Os esforços feitos para honrar a promessa de Paris 2015 de limitar o aumento da temperatura média global a menos de 20 C, preferencialmente 1,5º C, acima da média pré-revolução industrial, têm sido “totalmente insuficientes”, segundo o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU). António Guterres, num pronunciamento feito na Espanha antes do encontro CoP-25 sobre o clima, para negociar o sistema de negociação de emissões, alertou que a Terra caminha para um “ponto sem retorno”. Ele culpou os políticos por continuarem subsidiando os combustíveis fósseis e se recusando a taxar a poluição.

Talvez Guterres tenha lido um artigo publicado na “Nature” na semana passada, especulando que o planeta pode já ter chegado a um estado crítico de aquecimento e que agora estaria condenado, climaticamente falando. A análise de “nove pontos climáticos críticos” conclui que estamos numa “emergência planetária” e possivelmente caminhando para a transformação do planeta numa estufa.

Algumas mudanças climáticas, como o derretimento descontrolado das camadas de gelo, eram historicamente previstas para ocorrer na eventualidade de as temperaturas globais médias subirem 5º C, mas modelos mais recentes reduziram parte dessas margens para algo entre 1º C e 2º C.

Andrea Jubé - As ‘fake news’ e os dois coelhos da cartola

- Valor Econômico

Depoimento de Joice pode ser divisor de águas na CPMI

No dia 26 de junho, um falso portal de notícias publicou uma falsa entrevista do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), onde ele atacava o governo e o presidente Jair Bolsonaro com frases grosseiras e ofensivas.

Foi uma operação sofisticada, muito além do mero impulsionamento de notícias falsas. Antes de publicar o conteúdo fraudado, o portal fantasma (www.portal79.news) funcionou durante um mês, com o mesmo logotipo e reproduzindo integralmente matérias do site original, o Portal 79 (www.portal79.com.br), a fim de imprimir credibilidade ao material.

Entretanto técnicos do site verdadeiro haviam detectado a clonagem desde o início e acompanharam diariamente os desdobramentos da fraude. Quando a entrevista falsa foi ao ar, o diretor de redação do Portal 79, Higor Trindade, acionou o senador. Foi instaurado inquérito na Polícia Federal. A investigação corre em sigilo, mas os investigadores já descobriram que a página fantasma que saiu do ar estava hospedada na Romênia.

Alessandro Vieira diz que o objetivo da fraude era criar desconforto entre ele e o governo e setores da direita. Ele se declara “crítico ao governo”, mas jamais daria as declarações de baixo calão que lhe foram atribuídas.

Hélio Schwartsman - Bolsonaro apequena a Presidência

- Folha de S. Paulo

Defeito primordial do mandatário é a falta de comprometimento com a democracia

Discordo da avaliação do secretário de Comunicação Social da Presidência, Fábio Wajngarten, expressa em artigo publicado na segunda (2). O editorial da Folha “Fantasia de imperador” não desrespeitou a figura institucional do presidente da República; é Jair Bolsonaro quem apequena o posto.

Seu defeito primordial é a falta de comprometimento com a democracia, que fez questão de expressar antes, durante e depois da campanha que o sagrou presidente. É meio assustador que os brasileiros tenham escolhido para liderá-los um sujeito que defendeu a tortura e o fuzilamento de adversários, mas esse é um efeito adverso possível da soberania popular. Temos de viver com isso.

Ao defeito primordial somam-se vários outros. Bolsonaro parece incapaz de distinguir entre o público e o privado, comportando-se como se a Presidência fosse uma extensão de sua casa e não um Poder da República, limitado por outros Poderes, por princípios constitucionais e por leis. Embora não chegue a ser surpreendente, é chocante a forma como ele instrumentaliza o cargo para desferir ataques a desafetos políticos e à imprensa.

Pablo Ortellado* - Até quando?

- Folha de S. Paulo

Polícia Militar de São Paulo adota postura corporativa tentando proteger policiais que podem ter cometido crimes

Ao que tudo indica, na madrugada de domingo, a Polícia Militar de São Paulo atacou de surpresa uma festa de rua em Paraisópolis com mais de 5.000 pessoas. Sem emitir aviso, policiais cercaram e atiraram bombas de estilhaço e balas de borracha sobre uma multidão desavisada de adolescentes que se divertiam numa noite de sábado.

Os jovens fugiram desesperados por escadarias, vielas e becos e foram encurralados e agredidos por policiais.

Tentando fugir da violência arbitrária da polícia, cinco adolescentes e quatro jovens morreram pisoteados: Bruno Gabriel dos Santos, 22, Denys Henrique Quirino da Silva, 16, Dennys Guilherme dos Santos Franco, 16, Eduardo da Silva, 21, Gabriel Rogério de Moraes, 20, Gustavo Cruz Xavier, 14, Luara Victoria Oliveira, 18, Marcos Paulo Oliveira dos Santos, 16, e Mateus dos Santos Costa, 23.

A Polícia Militar mais uma vez se fechou em movimento de autoproteção corporativa. Em movimento reflexo negou de pronto as acusações e se apressou em proteger os pares.

Joel Pinheiro da Fonseca* - Por uma literatura verdadeiramente democrática

- Folha de S. Paulo

Quando a arte e a cultura adoecem, o povo adoece junto

Entre a possível volta do AI-5 e a escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da Flip, difícil saber qual o mais grave. Bishop, afinal, nem brasileira é. E, como se isso não bastasse, defendeu o golpe militar em uma carta. Se esse é o tipo de escritor que a esquerda democrática celebra, que esperança teremos?

Quando a arte e a cultura adoecem, o povo adoece junto, pois a sensibilidade de um povo é formada pelas obras de arte. Quisera eu que o problema fosse só a Bishop. Examinando literatura brasileira, contudo, constato que não se salva um.

Guimarães Rosa foi outro perigosamente circunspecto quanto à ditadura militar. Para completar, em sua obra maior, promove a homofobia ao “salvar” Riobaldo da homossexualidade com a revelação do sexo de Diadorim. Nelson Rodrigues, então, foi apoiador explícito do regime militar. O que de bom pode sair de uma mente dessas?

Voltemos ao “clássico” Machado de Assis. Agora celebrado como um “autor negro”, ele foi na verdade alguém que escondeu sua negritude, buscando incorporar-se à elite branca. Teve ainda o despautério de, em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, colocar o ex-escravo Prudêncio açoitando um escravo seu; falsa simetria criada para igualar opressores e oprimidos.

O que a mídia pensa – Editoriais

Nova ameaça do amigo Trump – Editorial | O Estado de S. Paulo

Guia espiritual, modelo ideológico e inspirador diplomático do presidente Jair Bolsonaro, o presidente norte-americano, Donald Trump, voltou a ameaçar o Brasil com barreiras à importação de aço e alumínio. Segundo ele, o governo brasileiro vem promovendo “maciça desvalorização” de sua moeda e prejudicando, com esse expediente, o comércio exterior dos Estados Unidos. A acusação e a ameaça valem também para a Argentina. A depreciação do real e do peso barateia produtos brasileiros e argentinos, facilitando uma competição desleal com os industriais e agricultores americanos. Essa é a essência do argumento. Teria sentido se a acusação fosse verdadeira. Mas chega a ser uma perversão acusar os governos de Brasília e de Buenos Aires pela desvalorização de suas moedas nacionais. Trata-se de evidente fenômeno de mercado, como percebe qualquer pessoa razoavelmente informada.

Poesia | Fernando Pessoa -Ah, um soneto...

Meu coração é um almirante louco
que abandonou a profissão do mar
e que a vai relembrando pouco a pouco
em casa a passear, a passear ...

No movimento (eu mesmo me desloco
nesta cadeira, só de o imaginar)
o mar abandonado fica em foco
nos músculos cansados de parar.
Há saudades nas pernas e nos braços.
Há saudades no cérebro por fora.
Há grandes raivas feitas de cansaços.
Mas — esta é boa! — era do coração
que eu falava... e onde diabo estou eu agora
com almirante em vez de sensação? ...

Música | Sambô - Você abusou