terça-feira, 7 de abril de 2020

Cristovam Buarque* - A voz do vírus

Diz-se que a verdade é a primeira vítima na guerra. Na epidemia é a lucidez. A urgência no atendimento para barrar a epidemia e cuidar da saúde das pessoas faz esquecer que a vida continuará depois. A saúde não assegura a vida plena para uma pessoa e a sociedade. No ano de 1348, auge da peste negra, o imperador Carlos IV fundou a Universidade de Praga. Depois, ela serviu para o Renascimento que abriu as portas para a ciência que indica como enfrentar a nova peste: com o isolamento.

A insensatez está levando ao debate sobre a importância e não sobre a urgência. Respirar e comer são igualmente importantes, mas o oxigênio é mais urgente. No lugar de debater o que é mais importante, o sensato é tomar as medidas urgentes para salvar as vidas hoje, cuidando da respiração das pessoas, sem esquecer de cuidar da recuperação da economia depois, para assegurar o necessário à vida plena: emprego, renda, produção, um propósito para viver e condições para buscar a felicidade.

O vírus está mostrando a falta de solidariedade dos que não pensam na urgência da epidemia, e a insensatez de não levar em conta o futuro depois dela. Precisamos ser solidários, como manda a ciência médica, com isolamento, leitos, respiradores e renda para os sem salário. Mas também temos que cuidar da recuperação posterior da economia e da sociedade.

O vírus está dizendo que fomos insensatos no passado. Há séculos deixamos milhões de pobres sem renda por causa da estrutura social. Falamos agora da necessidade de trabalho, mas nunca tivemos preocupação com pleno emprego. Dizemos que é preciso cuidar da higiene para evitar a transmissão do vírus, mas deixamos 35 milhões de pessoas sem água em casa para lavar as mãos e 100 milhões sem tratamento de esgoto. Criticamos a irresponsabilidade de um presidente que não entende a urgência do isolamento, mas esquecemos que a falta de água tratada e rede de esgoto é produto de governos anteriores. “Nossos” governos.

Merval Pereira - Sem tinta

- Globo

Alcolumbre ligou para o Planalto para avisar que demissão de Mandetta provocaria uma reação do Congresso

Funcionou, não sem um estresse desnecessário, a tutela branca dos ministros militares que ocupam os gabinetes do Palácio do Planalto. Foram eles, mais o Congresso e o Supremo, que deram respaldo à permanência do ministro Luiz Henrique Mandetta no ministério da Saúde, depois que o presidente mandou aprontar um decreto demitindo-o.

Mais uma vez o presidente Bolsonaro criou um clima de instabilidade no país a troco de nada. Ou melhor, a troco de demonstrar infantilmente o poder de sua caneta presidencial, e o que conseguiu foi explicitar que lhe falta tinta para usar a caneta, como havia ameaçado na véspera.

O presidente tantas fez que acabou perdendo as condições práticas de governar. Seus desejos, no mais das vezes voltados para seu beneficio pessoal, não do país, encontram cada vez mais barreiras pela frente. Só são respeitados entre seus filhos, e naquele núcleo radicalizado que alimenta as redes sociais com intrigas e difamações, além de falsificações, como fizeram com o ministro Mandetta.

Criaram um perfil falso na internet onde o ministro da Saúde criticava o presidente Bolsonaro, dando motivos para sua quase demissão. O mais curioso é que Bolsonaro parece até mesmo acreditar nas falsidades criadas pelo “gabinete do ódio”, que trabalha dentro do Palácio do Planalto sob o comando de seu filho 02, o vereador Carlos Bolsonaro, que abandonou sua função no Rio para aboletar-se em um gabinete palaciano para aconselhar seu pai.

Carlos Andreazza - Herói por contraste (obituário)

- O Globo

Foi Bolsonaro quem converteu a normalidade de Mandetta em algo notável

Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro em atividade, não é um técnico; mas um agente político de passado modesto, médico de formação, com alguma experiência regional de gestão na área da Saúde, que, desafiado pela peste (o novo coronavírus, para que não haja dúvida), de súbito se destacaria — alçado mesmo à condição de estadista —pela oposição pública que lhe fez o chefe, um populista autoritário cujo comportamento sociopata transforma equilíbrio e razoabilidade em brilhantismo, talvez mesmo em atributos da coragem.

Para que reste claro: o ministro, demitido no mercado futuro, só virou estrela, um herói, por motivo de contraste — do outro lado estando o presidente da República, vulgo conflito ambulante, aquele que jura um colaborador e depois vai orar.

Um pouco de história — porque tenho memória. Mandetta só se tornou ministro como consequência de uma indicação política (algo legítimo, mas criminalizado pelo bolsonarismo) que o então presidente eleito aceitara no escuro (uma temeridade); e que — eis o ponto — passaria a ser vendida, por Bolsonaro, como de natureza técnica. Nunca foi. Estava longe de ser nomeação que justificasse a propaganda de uma equipe de notáveis. Mandetta não é um Oswaldo Cruz. Faz, porém, trabalho correto e seguro. Era o presidente quem o apregoava como técnico. Esse mesmo técnico que o presidente fulminaria à primeira demonstração de alguma... técnica.

Foi Bolsonaro quem converteu a normalidade de Mandetta em algo notável. Sua comunicação irresponsável, expressão da incapacidade de liderar o país na empreitada contra a Covid-19, faria do auxiliar uma espécie de oásis da tarde — aquele cuja fala, ao fim do dia, programa de confinado, vem para trazer temperança, manifestação percebida e esperada pela sociedade como a palavra que desembaraçará o emaranhado de estímulos conflitantes disparados pelo presidente, com método, para fins de desinformação e desordem.

José Casado - O falso dilema de Bolsonaro

- O Globo

Presidente passa a flertar com o suicídio político

Morreu um brasileiro por hora nos últimos 20 dias de pandemia. É provável que o número de mortos no país aumente para 25 por hora na média dos próximos 180 dias. Em São Paulo, a previsão oficial é de 111 mil mortos até setembro. É o cenário governamental mais suave para os próximos seis meses.

O que faz o presidente? Jair Bolsonaro insuflou uma crise de confiança na sua capacidade de liderar o país na devastação. Talvez consciente da própria inconsciência, resolveu apostar no agravamento da situação.

Ele se esforça para submeter o ministro da Saúde à tortura da humilhação pública. Até agora, só conseguiu aumentar o respaldo a Luiz Mandetta nas pesquisas e o estresse na gerência do socorro à população.

Alguns veem fobia paranoica na fantasia de criar inimigos para afirmar o poder. Outros percebem em Bolsonaro apenas um político oportunista, à procura de dividendos na tragédia, interessado só na reeleição.

Bernardo Mello Franco - Bolsonaro risca o fósforo e toca harpa

- Globo

Demitir Mandetta agora significaria atear fogo às vestes. Embora Bolsonaro o veja como ameaça, o ministro é quem ainda empresta alguma credibilidade ao governo

Há dez dias, a revista britânica “The Economist” chamou o presidente do Brasil de “BolsoNero”. O apelido resume o espanto global com o homem que governa o maior país da América Latina. Enquanto o mundo faz um esforço de guerra contra o coronavírus, o capitão insiste em tratar a pandemia como uma “gripezinha”, a ser curada com jejum, reza e declarações amalucadas.

Ontem Bolsonaro indicou que assumiria de vez o papel de piromaníaco. Ele riscou o fósforo no início da tarde, ao comunicar aliados que pretendia demitir o ministro da Saúde. Quando os bombeiros conseguiram conter o incêndio, o presidente já tocava harpa diante das labaredas.

Mandar Luiz Henrique Mandetta para casa significaria atear fogo às próprias vestes. Embora Bolsonaro o veja como ameaça, o ministro é quem ainda empresta alguma credibilidade a seu governo. Numa equipe repleta de aloprados e bajuladores, ele se destaca pela serenidade e pelo apego à ciência.

Ricardo Noblat - É só uma questão de tempo para que Bolsonaro demita Mandetta

- Blog do Noblat | Veja

Caneta cheia de tinta à espera do melhor momento

Atribuir aos militares a permanência de Luiz Henrique Mandetta no Ministério da Saúde seria supor que, se contrariados, eles derrubariam o presidente Jair Bolsonaro ou o abandonariam. Não fariam nem uma coisa nem outra.

Mandetta ficou porque as forças que queriam que ele ficasse foram por ora superiores às forças que queriam vê-lo decaído. A não ser que se acomode à situação, em parte alguma presidente da República vira Rainha da Inglaterra.

Bolsonaro não se acomodará. Não dá sinais disso. É o maior fabricante de crises que já vestiu a faixa presidencial. E assim continuará até o último dos seus dias na cadeira que é demasiada larga para ele. O prazo de validade de Mandetta acabou.

E daí que ele seja o mais popular dos ministros e que sua aprovação na pesquisa Datafolha (76%) tenha ultrapassado de longe a de Bolsonaro? E daí que apenas 18% dos brasileiros sejam contra a política de confinamento total defendida por Mandetta?

Pedro Cafardo* - É uma bênção quando o nº 1 sabe dar ordens

- Valor Econômico

Pessoas sensatas agem para que medidas restritivas façam efeito e crise possa ser superada o mais rápido possível

Chegará o dia em que os paulistanos lotarão a avenida Paulista, os cariocas superlotarão as praias de Copacabana e Ipanema e os brasileiros, em geral, sairão às ruas para comemorar o “Dia da Vitoria”. Muitos, com lágrimas nos olhos, esquecerão sua condição de petista ou bolsonarista, de esquerda ou direita e se abraçarão na via pública. Como no fim da Segunda Guerra, um marinheiro uniformizado beijará uma jovem enfermeira no cais do porto de Santos, a exemplo do que um americano fez na Time Square, em 1945.

Sim, esse dia da vitória, que na verdade será a derrota do coronavírus, vai chegar. Acredita-se, porém, que não haverá um único dia D dessa vitória, porque a retomada será gradual e também em tempos diferentes, dependendo do país e da cidade. Em Wuhan, na China, por exemplo, as comemorações já começaram.

Seja como for, haverá um momento em que, a um sinal das autoridades da área da saúde, a vida voltará ao normal. Estaremos livres das quarentenas e dos isolamentos sociais, sem riscos de morrer por deficiência respiratória. Estará terminada uma batalha global nunca antes travada pela humanidade com tamanha intensidade, caracterizada de um lado por um único inimigo, poderoso, e, de outro, por quase 8 bilhões de terráqueos.

Andrea Jubé - O capitão prepara o adeus ao marechal

- Valor Econômico

Bolsonaro não desistiu de demitir ministro da Saúde

O começo teve ar de mau agouro. No dia 20 de novembro de 2018, quando confirmou a escolha do ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta para compor o seu time de auxiliares, o então presidente eleito Jair Bolsonaro disse aos jornalistas: “eu confirmo o marechal Mandetta, que se Deus quiser assumirá ano que vem com essa enorme missão”.

É singular a associação do nome de Mandetta, na largada do governo, a um posto da hierarquia militar extinto em 1967. O marechalato havia se transformado no regime militar em uma espécie de sinecura a militares em fim de carreira, e o fim da patente - embora decretado como uma tentativa do presidente Castello Branco de impor revés ao general Costa e Silva - acabou recepcionado como um aceno à austeridade fiscal.

Voltando ao presente, é como se Bolsonaro ao anunciar o “marechal Mandetta” para o ministério o tivesse nomeado já com prazo de validade.

Sem vaticínios ou ilações, o que os fatos mostram nas últimas semanas é o desgaste da relação entre o presidente e o auxiliar acentuando-se num crescendo quase insuportável. No domingo, Bolsonaro admitiu a um interlocutor que o visitou no Palácio da Alvorada que a decisão de demitir o ministro da Saúde é irrevogável. A dúvida continua sendo quando consumar o ato.

Luiz Carlos Azedo - Quem lidera?

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Bolsonaro vê em Mandetta um possível concorrente nas eleições de 2022. Mas, se o demitisse agora, estaríamos diante de uma tempestade perfeita”

No balanço do primeiro ano de mandato do presidente Jair Bolsonaro, recorri à obra clássica de Nicolau Maquiavel, O Príncipe, para destacar que sua capacidade de lidar com as mudanças de cenário à frente da Presidência ainda estava por ser testada, sem jamais imaginar que fôssemos enfrentar uma pandemia como esta, que deixou o mundo de pernas para o ar. Uma combinação de Virtù (a coragem, o valor, a capacidade, a eficácia política) e Fortuna (a sorte, o acaso e as circunstâncias) viabiliza a chegada ao poder. A primeira exige talento pessoal para dominar as situações e alcançar um objetivo, por qualquer meio. O exercício do poder, porém, não depende exclusivamente das virtudes individuais, mas também das circunstâncias favoráveis.

Uma metáfora de Maquiavel descreve a situação: “Comparo a sorte a um desses rios impetuosos que, quando se irritam, alagam as planícies, arrasam as árvores e as casas, arrastam terras de um lado para levar a outro: todos fogem deles, mas cedem ao seu ímpeto, sem poder detê-los em parte alguma. Mesmo assim, nada impede que, voltando à calma, os homens tomem providências, construam barreiras e diques, de modo que, quando a cheia se repetir, ou o rio flua por um canal, ou sua força se torne menos livre e danosa. O mesmo acontece com a Fortuna, que demonstra a sua força onde não encontra uma Virtù ordenada, pronta para resistir-lhe e volta o seu ímpeto para onde sabe que não foram erguidos diques ou barreiras para contê-las”.

A analogia é perfeita para a crise política que se arma em meio à epidemia de coronavírus, que alterou completamente as condições em que Bolsonaro governa. Sobre isso, Maquiavel havia advertido que o risco de chegar ao poder muito mais pela Fortuna do que pela Virtú é não conseguir mantê-lo quando as circunstâncias mudam, o que está acontecendo agora. De caso pensado, Bolsonaro tornou-se um fator de desestabilização do quadro político, extremamente tensionado por suas atitudes negacionistas da gravidade da pandemia e beligerantes com o Congresso, os governadores e os prefeitos, num momento em que o país precisa de coesão social e foco administrativo no enfrentamento da epidemia. As novas condições em que governa poderão selar a sorte de sua gestão, porém, Bolsonaro resolveu agir na contramão do que seria o bom senso político.

Eliane Cantanhêde - Caneta sem tinta

- O Estado de S.Paulo

Demitir Mandetta é provocar STF, Congresso, governadores, sociedade e... generais

Na reunião decisiva de dez dias atrás em que alertou o enciumado presidente Jair Bolsonaro de que não pediria demissão, o ministro Luiz Henrique Mandetta também assumiu o compromisso de não capitalizar política e eleitoralmente o eventual sucesso da estratégia do Ministério da Saúde ao fim da pandemia. Isso, porém, não depende só de Mandetta, depende das circunstâncias.

Médico ortopedista, nascido em Mato Grosso do Sul, 55 anos, Mandetta foi secretário de Saúde no seu Estado, cumpriu dois mandatos de deputado federal e não disputou a eleição de 2018. Mas, apesar do currículo político magro e da discrição no primeiro ano no Ministério da Saúde de Bolsonaro, ele conquistou imensa visibilidade, disparou em popularidade e passou a mexer com os brios de Bolsonaro ao ser olhado como candidato. A quê? Neste momento, a qualquer coisa.

No início dos anos 1990, o professor e sociólogo Fernando Henrique Cardoso não se reelegeria para o Senado e discutia se valia a pena disputar uma vaga na Câmara quando o presidente Fernando Collor caiu, o vice Itamar Franco assumiu e ele, no Ministério da Fazenda, foi o grande avalista do Plano Real. Conclusão: em 1994, elegeu-se presidente da República já no primeiro turno.

O Plano Real foi para FHC o que a pandemia pode se tornar para Mandetta: a grande alavanca da sua carreira política. O Real, por ter sido o maior plano de estabilização da economia da história. A covid-19, por ser o maior desafio de vida ou morte das pessoas e das lideranças de todo o mundo. O ex-presidente Lula levou tão a sério o isolamento que nem se sabe onde está, nem que nome ele trabalha para 2022. Governadores equilibram-se entre a desgraça e o sucesso. Ciro Gomes só sabe gritar. Luciano Huck só aparece em propaganda de TV. E, em política, não há vácuos.

Paulo Hartung* - Lucidez na travessia em tempos de pandemia

- O Estado de S.Paulo

Que este momento trágico nos inspire a construir outro mundo ao fim da escuridão

Tal como guerras, pandemias têm o condão de espetar no solo da História marcos divisórios do tempo, do antes e do depois. Sob a nuvem virótica do novo coronavírus, estamos ainda no curso de uma travessia dramática, mas já se podem anotar aprendizados que nos ajudarão a acertar os passos e a acelerar rumo ao amanhã, que virá e, como sempre, será o que estamos fazendo hoje.

Já não se pode negar o fato há muito inconteste de que a vida precisa ser tratada em termos globais. Mas, na onda do negacionismo, o investimento populista de instalar muros físicos e ideológicos no mapa-múndi só nos fez ainda mais despreparados para lidar com a expansão multiterritorial da covid-19.

A exemplo da Organização das Nações Unidas (ONU) e suas agências, um dos legados mais importantes dos tempos de guerra da primeira metade do século 20 foi exatamente a construção de um modus operandi global para a condução multilateral da vida no planeta, em termos ambientais, políticos, econômicos e culturais.

A ciência, que já alertava para a possibilidade de uma pandemia, mas não foi ouvida, tornou-se outro alvo do cruzamento que se deu entre o populismo e o medievalismo assombroso que recrudesceu ultimamente.

Com um método próprio, a ciência, e, num lugar específico, as universidades, a humanidade vem construindo um patrimônio crucial de conhecimento para lidar com os desafios e as incertezas do existir. Mas da negação das mudanças climáticas à boataria contra as vacinas, passando pela louvação do senso comum como ataque sorrateiro ao saber intelectual, o mundo desidratou sua racionalidade científica.

Outra questão é que, com raríssimas exceções, o planeta tateia, ziguezagueando sob os efeitos de um vazio de lideranças nacionais e globais. Poucos fazem jus à efetiva acepção do termo líder como quem torna viáveis soluções, concilia forças, indica caminhos, explica decisões, mobiliza a união, promove o diálogo, galvaniza a convergência, tudo isso em torno do bem comum.

Hélio Schwartsman - Domingo eu almocei duas vezes

- Folha de S. Paulo

Como há mal no mundo, um deus onisciente, onipotente e benevolente não existe

Domingo passado eu almocei duas vezes. Fi-lo porque comer é gostoso e para me contrapor ao jejum anticoronavírus convocado pelo presidente Jair Bolsonaro e por lideranças evangélicas. Se existe um deus com as características apregoadas pelas principais religiões monoteístas, então a culpa pela epidemia e o sofrimento que ela causa é toda dele —e parece inútil apelar para sua misericórdia.

O problema do mal, que já abordei neste espaço, é filosófico e, ao que tudo indica, foi levantado pela primeira vez por Epicuro (341 a.C.-270 a.C.). Numa formulação mais moderna e técnica, o argumento reza: se há um deus onisciente, onipotente e benevolente, então não existe mal. Ora, há mal no mundo.

Portanto, um deus onisciente, onipotente e benevolente não existe.

A forma lógica do raciocínio, "modus tollens", é impecável. Se as premissas são verdadeiras, a conclusão necessariamente também o é. Daí que, para esboçar uma resposta, é preciso negar a onipotência/onisciência de deus, ou sua benevolência ou a existência do mal.

Ranier Bragon - Navio-fantasma

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro criou para si uma escolha de Sofia

Há bastante tempo, ninguém mais pode se dizer desavisado, apanhado de calças curtas em um território envolto em sombras. Do batedor de carimbos até o mais alto lustra-botas, seja no palácio, seja em qualquer outro lugar, inclusive na imprensa, todos já sabem muito bem a quem servem e o que tudo isso representa.

Resta-nos perguntar: mesmo que não sejam nem de longe inocentes, como reagirão, no caso de demissão de Luiz Henrique Mandetta, aqueles do governo que ainda tentam vender um verniz de sensatez e seriedade?

É certo que, sob uma lupa rigorosa, o ministro da Saúde pode não ter tido um desempenho tão bom assim. Mas o simples fato de não agir como um paspalhão —a exemplo do colega de Esplanada que "cuida" da Educação— o torna quase um Oswaldo Cruz dos dias atuais.

No mês passado, esta Folha ponderou, em editorial, que o melhor a fazer na ocasião seria deixar Bolsonaro isolado, falando e fazendo asneiras sozinho, enquanto os capacitados lidavam com o novo coronavírus. Mas o presidente quer retomar o leme do seu navio-fantasma.

Pablo Ortellado* -Insensibilidade e descaso

- Folha de S. Paulo

Atos do governo Bolsonaro estão atrasadas e não protegem adequadamente os trabalhadores

Não poderíamos estar em piores mãos. O governo federal é um amálgama de conservadores que acreditam na conspiração do vírus chinês e fanáticos ideólogos do Estado mínimo. Quando olhamos para as ações sociais para enfrentar a crise, tudo o que vemos são medidas atrasadas, descuidadas e completamente insuficientes.

A medida social mais urgente, a renda básica emergencial, só saiu porque o Congresso se antecipou ao governo e ampliou consideravelmente a cobertura e o valor do benefício. Com os dados e os cadastros de que o Estado dispõe, a cobertura limitada a uma faixa de renda e a quem compõe o Cadastro Único, é MEI ou contribui com o INSS era a saída mais rápida e sensata.

Porém ela deixou de fora informais de baixa renda que não constam em nenhum dos três cadastros.

Ninguém sabe exatamente o tamanho do problema, mas talvez ele não seja pequeno. A saída pode ser ampliar rapidamente a cobertura do Cadastro Único e incluir esses novos cadastrados.

Quanto aos trabalhadores formais que compõem a outra metade da força de trabalho, a medida provisória do governo foi cruel. Guedes autorizou o corte de jornada acompanhada do corte de salário ou a suspensão temporária dos contratos, com o seguro-desemprego cobrindo apenas parcialmente os prejudicados.

Joel Pinheiro da Fonseca* - A crise revela o caráter

- Folha de S. Paulo

Pandemia expõe a natureza do populismo de direita no mundo todo

A crise revelou os caráteres de nossas lideranças. Revelou que o Brasil não tem um líder, e sim um presidente covarde, que é não apenas irrelevante para o esforço coletivo de combate à epidemia, como sabota quem participa. O ministro Mandetta segue no cargo, por enquanto, tendo que passar pela indignidade de ser atacado por seu próprio chefe.

Mas além do caráter pessoal de cada liderança, a epidemia da Covid-19 nos revela a natureza do populismo de direita que cresceu no mundo todo.

No momento de necessidade, quando precisamos fortalecer os vínculos de solidariedade e cooperação (interna e internacional), a direita populista se despe de qualquer disfarce e se revela aquilo que sempre foi: a defesa do interesse do mais forte, ou seja, a lei da selva.

A conduta dos EUA neste momento é a de um verdadeiro pirata. Primeiro, quis comprar da Alemanha os direitos de monopólio sobre uma possível vacina. Agora age como um bandoleiro internacional em busca de insumos médicos da China, cortando quem tiver de cortar para colocar as mãos no butim.

Luiz Gonzaga Belluzzo* Pandemia econômica

- Valor Econômico

Em ocasiões como esta, o setor privado não tem condições de avaliar e muito menos de bancar o risco

O presidente do Banco da Inglaterra, Andrew Bailey, escreveu no Financial Times: “O uso do financiamento monetário prejudicaria a credibilidade da política de controle da Inflação... Isso também resultaria em um balanço insustentável do Banco Central e é incompatível com a meta de inflação fixada por um banco central independente”.

Mais adiante, Bailey justifica sua posição: “A política monetária não pode aumentar a produção acima do potencial no longo prazo e qualquer tentativa sistemática de fazê-lo aumentaria as expectativas de inflação, ameaçando a meta de 2%”.

Nas catacumbas desse pensamento peregrino, descolado das condições reais, seja qual for o significado da palavra reais, rastejam os Modelos Dinâmicos Estocásticos de Equilíbrio Geral. Nessa geringonça habita o Produto Potencial, uma construção inobservável que se propõe a definir as trajetórias dessa Enteléquia, com pleno emprego dos fatores e inflação dentro da meta.

O "hiato do produto" - a diferença entre o PIB real e a Enteléquia inobservável - é o indicador da posição cíclica da economia: quando o hiato é positivo, diz-se que a economia está superaquecida; um hiato negativo assinala a subutilização de recursos econômicos.
Imagino que os ditos modelos apontem, nesse momento, para um encolhimento do Produto Potencial causado pela derrocada das estruturas da oferta nas economias: as empresas fecham, a taxa de desemprego natural dispara, a produtividade despenca.

Nesse caso, a despeito do colapso do Produto observável, o cálculo do hiato do produto poderia constatar que essa medida não observável estaria registrando um superaquecimento da economia e qualquer iniciativa anticíclica da política monetária promoveria uma disparada da inflação.

Como ensina o economista americano Robert Gordon, “para qualquer projeção de crescimento do PIB Observável, um crescimento mais lento do PIB Potencial significa que o hiato do produto vai transitar da região negativa para o território positivo, suscitando pressões sobre a taxa de inflação”. No popular: tudo pelo “lado da oferta”.

Míriam Leitão - Dinheiro não chega nas empresas

- O Globo

Dinheiro para financiar a folha de pagamento das empresas não chega na ponta pelas exigências e demoras do próprio governo

O crédito para pequenas e médias empresas, anunciado como parte do pacote de ajuda há dez dias, estava parado ontem à tarde em dois obstáculos: havia uma exigência de que só empresas sem débito previdenciário poderiam receber, e isso eliminaria um terço delas. E o Tesouro não havia ainda transferido o dinheiro para o BNDES. Os bancos ofereceram então antecipar os recursos, com a garantia de que eles realmente chegarão.

A informação que me foi dada ontem por um executivo de banco mostra a crônica incapacidade do governo de pôr em prática as medidas tomadas. O auxílio emergencial aos informais foi anunciado há quase três semanas, no valor de R$ 200, e só hoje será anunciado o calendário de pagamento, de R$ 600, após aprovação no Congresso, sendo que o governo começará pelo mais fácil que são os beneficiários do Bolsa Família, política pública que existe há 16 anos.

Na verdade, o governo tem anunciado muita coisa e parece que todos aqueles bilhões apresentados estão indo para a economia, mas não. Entre o anúncio e a realização há muitos obstáculos. Esse foi, inclusive, o tema central da conversa de empresários do comércio com o ministro Paulo Guedes. A ideia do socorro às empresas através de um crédito para pagar a folha foi proposta pelos próprios bancos ao governo há três semanas. O presidente do Banco Central, Roberto Campos, gostou da proposta, mas disse aos banqueiros que eles teriam que ter skin in the game, ou seja, teriam que correr risco também. A proposta inicial era de que os bancos entrassem com 20%, os bancos disseram que entrariam com 10%, e acabaram fechando em 15%. O resto vai ser do Tesouro. Mas só que o dinheiro tem que chegar ao BNDES, que vai operacionalizar essa linha. Serão R$ 20 bilhões por mês.

Ana Carla Abrão* - De repente, não mais que de repente

- O Estado de S. Paulo

Tempo precioso tem sido perdido com a dispersão de esforços e com a lentidão na operacionalização das medidas de socorro

Quando tirei férias desta coluna, há pouco mais de um mês atrás, ainda era carnaval. Meu último texto foi publicado na terça-feira gorda. Naqueles dias, o que ainda nos tirava o sono eram preocupações convencionais e já habituais. Ameaças (repetidas) às nossas instituições fiscais, a força e o oportunismo das pressões corporativistas – algumas vitoriosas –, a crise de Estados e municípios, que não cedia na ausência de reformas estruturais e as revisões para baixo do PIB de 2020, indicando uma frustração nas expectativas de retomada da economia.

Além disso, discutíamos as reformas tributária e administrativa que, passado o carnaval, continuavam na concentração.

De repente tudo mudou. Em um intervalo de dias, o mundo virou de ponta cabeça e com ele o Brasil. Prioridades foram subitamente (e corretamente) alteradas quando já iniciávamos uma triste contabilidade de infectados e, infelizmente, de mortos. Se achávamos que sabíamos o que era uma crise grave, do dia para a noite fomos obrigados a atualizar nossos conceitos e a aprender em tempo recorde que há crises mais fortes, mais profundas e mais amplas do que as que já havíamos vivido no passado.

Vivemos a queda do PIB por dois anos consecutivos e crescimento pífio desde então, desemprego em níveis recordes, déficits fiscais sucessivos e crescentes, entes subnacionais em colapso financeiro, relação dívida/PIB ameaçando a solvência e minando a confiança no País. Confiscos, congelamentos, desvalorização cambial. Nada disso se compara ao que está diante de nós agora.

A crise atual difere das demais a começar pelo seu caráter sanitário, impondo uma pressão sem precedentes nos sistemas de saúde público e privado. No Brasil, onde a vasta maioria da população depende do atendimento público, já sabidamente deficitário, os desafios são ainda maiores. A depender do ritmo de escalada da contaminação, o resultado pode ser trágico. Daí a importância das medidas de distanciamento social. Ganha-se tempo e distribui-se melhor a pressão sobre o sistema, e é disso que precisamos.

Felipe Salto/José Roberto Afonso* -Um orçamento para a guerra

- Folha de S. Paulo

Proposta que cria regime excepcional fiscal e financeiro é arma poderosa

A gravidade da crise disparada pelo espalhamento da Covid-19 requer ações contundentes do Estado. Em tempos de guerra, gastos públicos vultosos serão necessários e precisarão ser planejados e executados com uma eficiência incomum. É recomendável ter um orçamento apartado para dar total transparência a fontes e usos de recursos e para blindar as contas públicas do risco de desarranjo e insustentabilidade.

A flexibilidade já está contemplada na Lei de Responsabilidade Fiscal e no teto de gastos (exceção para créditos extraordinários). Após a aprovação da calamidade pública pelo Congresso, endossada pelo STF, causou perplexidade a demora do governo federal em agir. Medidas provisórias criaram dotações extras para gastos com saúde com a intenção de tentar preservar empregos e distribuir renda mensal temporária, além de reforçar fundos de participação. A emergência certamente as justifica, mas está claro que falta um conjunto consistente de ações, de atos, de gastos e de dívidas.

Uma melhor ordenação desse esforço de guerra é regulada pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de iniciativa do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). A PEC propõe um regime especial fiscal e financeiro para combater desde o coronavírus até os seus efeitos colaterais sobre a sociedade e a economia. Possibilitará a alocação e a aplicação céleres de recursos públicos na saúde (inclusive compra e requisição de bens e serviços), na proteção social e na reação à recessão econômica.

Um comitê gestor comandará todas as ações da crise, composto por representantes das três esferas de governo. O Congresso deverá emitir parecer sobre todas as medidas provisórias de aumento de despesas em até 15 dias. A regra de ouro será suspensa durante a calamidade, já que é inevitável contrair dívida pública para financiar custeio da saúde e transferências assistenciais.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Ameaça a Mandetta reflete o que é Bolsonaro – Editorial | O Globo

Só um presidente que não segue as leis da lógica pode afastar este ministro numa hora dessas

A fritura do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, é típica de um governo como o de Bolsonaro, em que a lógica cartesiana costuma ser contrariada por outras condicionantes. Pelo perfil psicológico do presidente e/ou por crenças ideológicas dele, da família e de quem os cerca. Não é lógico e depõe contra a inteligência agredir a China, o maior parceiro comercial do país, e de quem o Brasil precisa de ajuda para enfrentar a epidemia de coronavírus. Mas, nesta espécie de mundo paralelo, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, faz crítica à China, e o ministro da Educação, Abraham Weintraub, segue atrás e põe na rede uma brincadeira de mau gosto e de má-fé com os chineses. Não estão preocupados com assuntos de governo e de Estado, apenas com suas crendices sectárias.

Por isso, Mandetta, cuja atuação na epidemia da Covid-19 é aprovada por 76%, segundo pesquisa recente do Datafolha, corre risco de ser mandado embora e no momento em que a crise de saúde inicia sua fase de agravamento. Os sensatos que estão na cúpula do governo ajudaram a convencer ontem o presidente a não cometer o desatino. Há algum tempo Bolsonaro tem demonstrado conviver mal com esta popularidade, ameaçando usar a caneta contra aqueles que “viraram estrelas”. Mais explícito, só se citasse o nome. Talvez falte ao ministro da Saúde o cuidado que tem o colega Paulo Guedes, da Economia, de sempre consultar o chefe. Mesmo ungido superministro, Guedes deve ter considerado a necessidade de ser cauteloso diante do estilo impulsivo de Bolsonaro, mesmo que atue numa área em que teoricamente seria mais difícil Bolsonaro dar ouvidos a outros.

Música | Moacyr Luz - Joia Rara

Poesia | Joaquim Cardozo - A tarde sobe

Ao rés da Terra o tempo é escuro
Mas a tarde sobe, se ergue no ar tranqüilo e doce
A tarde sobe!
No alto se ilumina, se esclarece.
E paira na região iluminada.

Sobe, desfaz a trama de entrelaços
Superpostos na maneira dos esquadros
Sobre o chão aos poucos escurecendo.
Sobe: No meio da parte densa.

Sobe alva, serena para as estrelas
Que irão em breve aparecer,
Luzindo, no princípio da noite;
No espaço branco em que se completa
Preenchendo o centro e a esquerda
Branco que saiu limpo
De um fundo escuro de hachuras.

A tarde sobe!
Sobe até o zênite dando aos que passam
A paz e a serenidade do entardecer.

A tarde sobe pura e macia!
As linhas de baixo se inclinam
Se afastam e vão deixá-la subir.