sábado, 19 de setembro de 2020

Merval Pereira – Realidade paralela

- O Globo 

 A realidade não combina bem com versão de Bolsonaro para os fatos, mas como o que importa é a versão, não os fatos, como dizem os políticos mineiros, ele vai seguindo adiante com sua pantomima. Ontem, em Mato Grosso, o presidente foi abalroado pela realidade da fumaça das queimadas, que ele insiste que não existem. 
 
Na sua linguagem peculiar, Bolsonaro deu a entender que as queimadas produziram apenas “uma fumacinha”, como se referiu à Covid-19 como “uma gripezinha”: "A visibilidade não estava boa. Estamos vendo focos de incêndio pelo Brasil, isso acontece há anos", afirmou, embora tenha admitido que seu avião teve que arremeter, desistindo de pousar porque a fumaça impedia a visão do piloto, fato que acontecera apenas uma vez antes em sua vida, e não por causa da fumaça. 

É claro que um problema desses não é comum, como não é normal a nuvem de fuligem que tomou conta do céu paulistano ontem. Bolsonaro insistiu ontem no enfrentamento da Covid-19 “como homem”, elogiando os agricultores que “não entraram naquela conversinha mole de ‘fique em casa e a economia a gente vê depois’. Isso é para os fracos”. 

Para efeitos internos, aparentemente essa maneira de governar tem dado resultado, pois Bolsonaro continua aparecendo nas pesquisas como favorito para a reeleição. Mas para o exterior, a imagem do Brasil continua se deteriorando à medida que o presidente e seus assessores insistem em confrontar os países europeus que cobram medidas concretas contra o desmatamento da Amazônia e outras regiões do país. 

Não adianta nada Bolsonaro dizer que os países que criticam o Brasil já queimaram suas florestas, nem o vice-presidente Hamilton Mourão acusar a França de não combater o garimpo ilegal na Guiana Francesa. Dois erros não fazem um acerto, e não importa que exista uma guerra comercial por trás das campanhas internacionais contra o desmatamento. 

Em parte isso é verdade, e é do jogo. O que não podemos é dar margem a que nossos competidores comerciais se aproveitem de nossas fraquezas para tentar barrar nossos produtos no comércio internacional. Se o Brasil tivesse um programa de combate ao desmatamento como já tivemos, reconhecido internacionalmente, não haveria condições de sermos prejudicados. 

Todo governante com pendor autoritário tem a mesma reação de Bolsonaro, renega problemas como fósseis ou bichos em extinção se quer seguir adiante com uma obra que considera indispensável. Mas uns são mais inteligentes, e levam adiante uma política ambiental que ameniza essa tendência negacionista, convivem bem com as ONGs, mesmo quando se confrontam. 

O problema é a visão de meio ambiente do governo como um todo, que desde o primeiro momento trabalhou para liberar a ação ilegal na Amazônia. A cada pronunciamento do ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles leniente com os garimpeiros, a cada ordem de Bolsonaro para que veículos usados no desmatamento não sejam danificados, como manda a lei, a cada fala contra as terras indígenas, mais os invasores, os madeireiros ilegais, os garimpeiros se sentem protegidos por uma política de meio-ambiente que privilegia a exploração predadora da floresta em detrimento da sua preservação. 

A reação da França contra o acordo da União Européia com o Mercosul devido à política ambiental do Brasil pode ser reforçada se o democrata Joe Biden for eleito presidente dos Estados Unidos derrotando Trump, que tem uma política ambiental semelhante à nossa no negacionismo. 

Caso isso aconteça, o Brasil ficará isolado no cenário internacional, e não será um discurso distante da realidade que nos beneficiará. Perdido o apoio dos Estados Unidos, Bolsonaro se tornará um pária no mundo ocidental.

Ascânio Seleme - Fux tem razão

- O Globo 

Ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux elencou cinco pontos que deverão guiar a sua gestão pelos próximos dois anos 

Ao assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux elencou cinco pontos que deverão guiar a sua gestão pelos próximos dois anos. Separo um deles, que se o novo presidente conseguir implementar prestará um serviço inestimável à Justiça e ao país. Trata-se do que Fux chamou de “fortalecimento da vocação constitucional do STF”. Seu propósito é reduzir as dezenas de milhares de ações ingressadas a cada ano, reposicionando o tribunal “como uma Corte eminentemente constitucional”. 

De acordo com dados citados pelo ministro no seu discurso de posse, 115 mil processos foram julgados pelo tribunal em 2017. No mesmo ano, a Suprema Corte dos Estados Unidos julgou 70 casos. É verdade que a nossa Constituição é muito maior que a americana, que tem apenas sete artigos e recebeu 27 emendas em 230 anos. A brasileira tem 250 artigos e 114 disposições transitórias, e em apenas 30 anos teve 100 emendas aprovadas. Mas só isso não explica a distância que separa os dois tribunais. 

Fux tem razão, é preciso desentulhar a Corte. O problema é como se fazer isso. Primeiro, há obstáculos no caminho, alguns criados pelo próprio tribunal. Em novembro do ano passado, o STF derrubou por seis votos a cinco a prisão em segunda instância. Além de todas as questões políticas que aquela decisão encerra, como o favorecimento à impunidade, por exemplo, ela serviu como bandeira em favor do prosseguimento de qualquer ação até que ela alcance o Supremo. Se o criminoso fosse preso assim que um colegiado de desembargadores de tribunais regionais o condenasse, como estava estabelecido antes da decisão contrária do Supremo, o apelo a recursos seria obviamente menor. 

Os clientes constitucionais do Supremo são o presidente, seu vice, os membros do Congresso, os ministros de Estado, os ministros dos tribunais superiores e do TCU, o procurador-geral da República, os chefes das três Forças Militares e os chefes de missões diplomáticas. Somam mais ou menos 900 pessoas. Ocorre que qualquer cidadão que responde por crime em ações em que membros desse grupo estiverem envolvidos acaba sendo julgado também pelo STF. Eventualmente, um ministro pode desmembrar uma ação e remeter para instância inferior o denunciado sem foro privilegiado, mas nem sempre é assim. 

O Supremo também faz mal uso da súmula vinculante, preceito constitucional que dá ao tribunal prerrogativa de considerar já julgadas todas as ações que tratam de crimes reiteradamente debatidos e punidos pelo tribunal. O expediente poderia reduzir o volume de ações em curso. Mas, é absolutamente corriqueiro o atropelamento desta regra. Na semana passada, o próprio Fux pediu vista em julgamento que deveria aprovar uma súmula vinculante em questão de narcotráfico. No caso, não importa o teor da ação, mas o princípio que foi ignorado. 

Há ainda questões acessórias e mesmo triviais que tornam chatos e demorados os julgamentos do STF. Como a TV Justiça, que foi criada em em 2002 em nome da transparência. Ela deixou os ministros mais maleáveis, o que é perigoso. Com a transmissão ao vivo das sessões, juízes podem ser levados a julgar de acordo com a orientação da galera, o grito das ruas. Com julgamentos públicos, muitos de importância crucial para a vida política e institucional do Brasil, os ministros podem ser constrangidos pela pressão política e popular que sofrem em tempo real. 

A TV Justiça ajudou a produzir o que Fux chamou de “protagonismo deletério, que corrói a credibilidade dos tribunais, especialmente do STF”. De certa forma as sessões do Supremo viraram espetáculo e os ministros passaram a gastar muito mais tempo para ler seus votos, que foram engordados em páginas e citações. Alguns tomam horas para serem lidos e comentados. O componente “vaidade humana” é quase palpável de tão vivo nos julgamentos do tribunal. E é evidente que isso colabora com a morosidade do tribunal e o acúmulo da pauta. 

Desgoverno 
O governo anunciou que pode extinguir alguns ministérios, como o do Turismo, por exemplo. Não farão nenhuma falta num governo que em diversas áreas não governa mesmo. A turma do Bolsonaro não governa na Cultura, todos sabem. Aliás, se lixa para ela. Também não governa no Meio Ambiente, não se incomoda com a derrubada de árvores na Amazônia e muito menos com queimadas no Pantanal. Tampouco governa para as mulheres e para os direitos humanos e mal governa na saúde e na educação. Pode fechar ministérios à vontade, excelência, eles pouco importam. 

Pauta para Lira 
O centrão quer fazer o deputado Arthur Lira (corrupção, lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito, violência doméstica) presidente da Câmara. Com o aval do Planalto, já está oferecendo cargos no governo aos que votarem nele. O agrupamento suprapartidário também tem prontos alguns pontos da pauta do mandato de Lira: finalizar a Lava-Jato; reduzir o papel do Ministério Público; e introduzir carência de quatro a oito anos para magistrado poder se candidatar a cargo eletivo. Um ataque explícito a quem combate a corrupção. 

Agora, sim 
O estado que já teve cinco governadores presos e tem um sexto ameaçado de prisão, pode agora inovar e eleger um prefeito previamente detido. É o Rio inovando e surpreendendo o Brasil e o mundo. A candidatura de Cristiane Brasil, do PTB, presa preventivamente em caso de corrupção, teve sua candidatura homologada pelo Tribunal Regional Eleitoral. O partido insistiu em indicar a encarcerada porque ela é filha do dono, quer dizer, do presidente do partido, o mal afamado Roberto Jefferson. Nada de mais, na verdade. Afinal, não foi aqui que vereadores foram eleitos dentro da cadeia? 

Recomendo livros 
Três bons livros que merecem sua atenção. O jornalista Pedro Doria acaba de publicar “Fascismo à brasileira”, que conta a história da criação do partido integralista brasileiro e mostra suas muitas semelhanças com o bolsonarismo. O jornalista e ex-candidato a deputado federal Ricardo Rangel colocou nas livrarias “O destino é o caminho”, em que narra sua jornada de 800 quilômetros pelo Caminho de Santiago de Compostela. E o escritor e cientista político Sérgio Abranches lançou “O tempo dos governantes incidentais”, onde conta como populistas se aproveitaram de frustrações políticas acumuladas para se eleger e em seguida ameaçar a democracia e as instituições. 

Paulo Freire, 99 
Paulo Freire, o mais importante educador brasileiro e um dos maiores do mundo, completaria hoje 99 anos. Inúmeras homenagens e palestras sobre o professor e sua obra serão realizadas nos próximos 12 meses em comemoração ao seu centenário. Ele é o brasileiro com mais títulos de doutor Honoris Causa. São 41, inclusive das superuniversidades de Harvard, Cambridge e Oxford. Autor de 19 livros, com edições em incontáveis línguas, Paulo Freire dá nome a 31 ruas e praças no Brasil, além de 302 escolas, municipais, estaduais e privadas. Respeitem Paulo Freire. 

Fazendas e incêndio 
Além da evidente má vontade da União com o meio ambiente, da falta de fiscalização adequada, da seca, dos ventos e do difícil acesso, um fator econômico serve de combustão para as queimadas do Pantanal. Diversas fazendas foram divididas ao longo dos últimos anos e muitas pararam de produzir, demitiram peões e fecharam suas porteiras. Essas áreas são as mais desguarnecidas e descuidadas, por onde o fogo se alastra sem impedimento. Outras fazendas, cinco no Mato Grosso do Sul, são investigadas pela Polícia Federal por queimadas intencionais. 

Dando linha 
Fabricantes de linhas do interior de São Paulo tiveram queda nas vendas de até 80% no início da pandemia. Apavorados, fizeram muitas demissões achando que a crise demoraria e a recuperação econômica só teria início em 2021. Cinco meses depois, uma dessas fábricas já opera no azul, ou no azulão, com vendas 120% maiores do que antes da crise sanitária. A concorrência chinesa ficou muito cara. 

EUA desbancados 
Para quem acha que o problema alcança somente países pobres, este dado pode surpreender. O Federal Reserve dos Estados Unidos, o FED, similar ao nosso Banco Central, informou na semana passada que um em cada quatro americanos não tem conta bancária ou tem apenas uma conta pagamento. Significa que 82 milhões são desbancarizados nos EUA. 

Correção 
Não é do MDB o ex-prefeito de Cocal (PI) João Maria Monção, que disse em discurso gravado que roubou, sim, mas não tanto quanto o seu adversário na próxima eleição. Ele era do PTB, que o expulsou após a declaração.

Míriam Leitão - Desmatamento e esperança

- O Globo 

A defesa do meio ambiente recebeu, esta semana, reforços importantes. Empresas unidas a ambientalistas foram dizer ao governo que este é o momento de mudar de rumo. E, mais do que apelos, levaram propostas concretas de como fazer essa mudança. O governo, contudo, dobrou a aposta no seu descaminho. O vice-presidente se atrapalhou nas declarações, o presidente Bolsonaro piorou o seu negacionismo. Foi ao Pantanal e não viu a queimada, mas a fumaça o buscou até no avião. Os dois lados foram claros. Eles estão bem distantes um do outro. 

A coalizão Brasil Clima Florestas e Agricultura já seria importante só pela parceria inédita que representa, mas além disso levou uma lista de coisas práticas a fazer. Eles acham que é preciso punir quem comete crime ambiental, na mesma linha da entrevista do executivo da Marfrig, Roberto Waack, ao GLOBO, ontem. Propõem a suspensão dos registros do Cadastro Ambiental Rural que estão em florestas públicas. Parece incrível que se tenha que propor que não se legalize o roubo da terra pública, mas assim é o país. Eles sugeriram uma ação superimportante: criar unidades de conservação e de uso sustentável em 10 milhões de hectares próximas às áreas que estão sob maior pressão. Foi exatamente assim que se conseguiu, no passado, inverter a curva do desmatamento. 

Querem que haja total transparência — e isso de fato é o mínimo — nas autorizações de desmatamento. Sugerem a suspensão de todos os processos de regularização fundiária em terras nas quais tenha havido desmatamento ilegal depois de julho de 2008, data do Código Florestal. 

O vice-presidente Hamilton Mourão, sobre quem está depositada a expectativa de que o governo entenda do que está se falando, deu sinais mistos. Ele recebe e ouve de forma polida. Mas acusou um “opositor” de dentro do Inpe de divulgar os dados. Erro crasso, porque os dados são públicos, uma conquista de governos passados. Democracia, como se sabe, combina com transparência. Qualquer pessoa pode buscar esses dados no site do Inpe. Na sexta-feira, ele deu um estranho sinal. Defendeu a criação de uma nova agência de governo, que concentre os sistemas de monitoramento por satélite na Amazônia. Citou como exemplo a ser copiado o NRO (Escritório Nacional de Reconhecimento) dos Estados Unidos. Ou seja, o governo tentará tomar dos cientistas para entregar aos militares o trabalho que hoje é executado pelo Inpe. Já que não pode controlar a agência de controle, que tal desmontá-la? Tem sido assim em outras áreas do governo. 

 O presidente em seu desvario disse que o Brasil está de parabéns em sua política ambiental mesmo numa semana em que se acumularam evidências de que está tudo errado, que o crime está avançando e destruindo um bem coletivo. Ontem em Sinop foi a mais um ato de campanha muito antes do seu tempo. Falou com produtores agrícolas do Mato Grosso repetindo a ideia de que as críticas que fazem ao Brasil são de competidores internacionais. Uma sandice porque, ainda que fossem, o mais inteligente seria não lhes dar motivo, até porque estaríamos, antes de tudo, defendendo nossos próprios interesses.

É muito mais que apenas uma briga comercial. Esta semana houve também uma carta de oito embaixadores de países europeus entregue ao governo Bolsonaro. Dizem que está difícil importar alimentos do Brasil por causa do desmatamento. Eles são compradores de produtos brasileiros. Minimizar os alertas, alegando que a Europa importa relativamente pouco do Brasil, é não entender a lógica da economia atual. Os consumidores pressionam as empresas que tomam decisões que nos afetam. O que acontece na Europa certamente se espalhará por outras regiões. Se o projeto é fazer do Brasil um país pária, é por aí mesmo o caminho. 

Sob os gritos de “mito”, Bolsonaro entregou títulos de regularização fundiária. A verdade sobre o assunto já escrevi aqui para os leitores. Este governo, no ano passado, distribuiu apenas seis títulos. Nos governos anteriores, a média era de três mil por ano. 

O Brasil vive uma tragédia ambiental de enorme dimensão. Há pressões internas e internacionais para que o governo mude sua desastrosa política ambiental. Esta semana os recados foram mais claros. E mais uma vez o governo não deu qualquer motivo para se ter esperança.

Almir Pazzianotto Pinto* - O trabalhador e a covid-19

- O Estado de S.Paulo 

 Ministro de Estado não cria, modifica ou revoga lei, menos ainda por meio de mera portaria 

 Aspecto de relevante importância do contrato de trabalho diz respeito à garantia do emprego. O artigo 7.º, I, da Constituição de 1988 protege-o “contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de legislação complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos”. 

Por motivos que aqui não cabe examinar, a lei complementar permanece à espera de projeto. Enquanto não for aprovada, a proteção referida no inciso I do artigo 7º se limita “ao aumento, para quatro vezes, da porcentagem prevista no art. 6.º, caput e § 1.º, da Lei n.º 5.107, de 13 de setembro de 1966” – Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), artigo 10, I. 

Após o advento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço são raros os casos de estabilidade. Não é possível demitir arbitrariamente e sem justa causa dirigente sindical; empregado eleito para cargo de direção de comissão interna de prevenção de acidente (Cipa); gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A Lei n.º 8.213/1991, que dispõe sobre o Plano de Benefícios da Previdência Social, garante a permanência no emprego pelo período de 12 meses do empregado vítima de acidente de trabalho, de doença profissional ou doença do trabalho, constantes de portaria do Ministério do Trabalho. 

Há poucos dias o setor empresarial foi surpreendido pela Portaria 2.309, de 28/8, baixada pelo então ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello. S. Exa. incluiu o coronavírus Sars-CoV-2 na Lista das Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDTT), instituída pelo Ministério da Saúde, para assegurar 12 meses de estabilidade a empregado infectado. 

As estatísticas referentes a mortos e infectados pela pandemia evoluem dia após dia. No Brasil o número de vítimas de morte ultrapassa os 135 mil. Nos países desenvolvidos, cientistas das melhores universidades travam intensa batalha na busca de vacina infalível e confiável. Os avanços são animadores, mas é impossível prever quando estará ao alcance da população. 

A covid-19 não se encaixa nas definições legais de doença profissional ou do trabalho. Segundo a referida lei, doença profissional é “a produzida ou desencadeada pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade”. Doença do trabalho é “a adquirida ou desencadeada em função de condições especiais é realizado e com ele se relacione diretamente” (artigo 20, I e II). 

Disseminada pelo mundo, a pandemia não revela preferência por determinada camada social, profissão, nível intelectual, conhecimento científico. Ignora limites e fronteiras. O grau de risco é aquilatado pela idade ou condição de saúde: quanto mais idosa e frágil a pessoa, maior o perigo de contaminação. Pouco importa se é médico, enfermeiro, comerciário, bancário, operário, motorista, desempregado ou aposentado. A Consolidação das Leis do Trabalho exige de todo empregador a adoção de medidas coletivas de segurança e de proteção à saúde dos empregados; e do empregado, que cuide da higiene pessoal e faça uso de equipamento de proteção individual. São providências gerais e obrigatórias que nada têm que ver com eventual epidemia de gripe, sarampo ou covid-19. 

A segunda matéria submetida ao leitor diz respeito à natureza de portaria ministerial e à competência funcional de ministro de Estado. Portaria é simples instrução interna destinada à “orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência”. Destina-se a “expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos” (Constituição, artigo 87). Ministro de Estado não cria, modifica ou revoga lei. Deve obedecer-lhe e exigir dos subordinados que obedeçam a ela. 

No âmbito do extinto Ministério do Trabalho encontraremos portarias com pretensões de ser geradoras de direitos e obrigações. As origens remontam ao regime militar, época em que era comum desconhecer o princípio da legalidade. 

Conceder estabilidade depende de lei específica. Não basta mera portaria interna, em que a inclusão ou exclusão de determinada doença depende de decisão aleatória, tomada no recesso do gabinete por ministro de Estado, seja da Saúde, da Economia ou do Trabalho. 

Em 8/9 o Estado publicou editorial com o título Portaria desumana. Ali está escrito que para se manifestar contra dispositivos do Código Penal o presidente Jair Bolsonaro, mediante portaria baixada pelo ministro interino da Saúde, general Eduardo Pazuello, “criou uma aberração jurídica”. Outras aberrações com formato de portaria existem às dezenas no âmbito do Ministério da Economia sob o título de Normas Regulamentadoras relativas à Segurança e Medicina do Trabalho. 

A Portaria 2.308 foi revogada com a rapidez da aprovação. Menos mal. Espera-se que outras, tão aberrantes quanto ela e a Portaria n.º 2.208, a que se refere o editorial do Estado, tenham idêntico destino, para preservação do princípio da legalidade, essencial ao Estado Democrático de Direito.

 *Advogado, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal Superior do Trabalho, É autor de ‘A falsa República’

João Gabriel de Lima - Um imenso Portugal ou uma pequena Índia?

- O Estado de S.Paulo 

 Estamos mais perto da Índia do que de Portugal em muitas coisas. Para o bem e para o mal 

 Em seu Fado tropical, Chico Buarque rimou que nosso ideal seria virar um imenso Portugal. Havia ironia nos versos do poeta, escritos em parceria com o cineasta Ruy Guerra. A música é de 1973, e nem Brasil nem Portugal viviam grande fase, oprimidos por ditaduras. Olhando em retrospectiva, seria ótimo se tal profecia tivesse se realizado. 

Portugal se livrou de seu regime de força em 1974, com a Revolução dos Cravos. O Brasil restabeleceu a liberdade em 1985. Hoje Portugal é uma das democracias mais consolidadas do mundo, com 96 pontos em 100 possíveis na classificação da Freedom House. O Brasil alcança 75. Em 2019, Portugal cravou a 40.ª posição no ranking de desenvolvimento humano, formando no pelotão de frente. O Brasil está em 79.º, no segundo bloco. 

Enquanto o Brasil peleja para arrumar suas contas públicas, passo essencial para investir na área social, Portugal fez seu ajuste no início da década, o que permitiu preservar o estado de bem-estar. Veio o coronavírus, e Portugal se tornou referência positiva dentro do padrão europeu. O Brasil é a tragédia que conhecemos. O terceiro país com mais mortos no mundo, recentemente superado pela Índia. 

Talvez seja injusto comparar os dois países, dado que a população brasileira é a portuguesa multiplicada por 20, e as circunstâncias – com exceção da língua – são consideravelmente diferentes. Como talvez fosse despropositado comparar o Brasil com a Índia, que tem seis vezes a nossa população. Se continuarmos o exercício, no entanto, veremos que em muitas coisas estamos mais perto da Índia do que de Portugal. Para o bem e para o mal. 

Para o bem. Índia e Brasil têm democracias vibrantes, sociedade civil engajada, universidades de excelência, cultura riquíssima e plural. Para o mal. Além de referências negativas no combate ao coronavírus, Índia e Brasil estão entre os países mais desiguais do mundo. A pandemia expôs tais desigualdades de forma dramática. A Índia pré-independência era um país de príncipes e plebeus divididos em castas. No Brasil, os príncipes estão na classe média. São os que podem trabalhar de casa, usando seus laptops, e se proteger da doença que chegou a ceifar mais de mil vidas por dia. 

Nesta semana inicio um período de estudos em Política Comparada na Universidade de Lisboa. Para esta coluna, nada muda. Com a tecnologia, é possível acompanhar as notícias do mundo todo em tempo real, e redação e entrevistados estão ao alcance de um zoom. A ideia é continuar dando uma visão moderna da política. A atividade, hoje, não se desenrola apenas nos parlamentos, mas também nas redes e ruas, universidades e organizações cívicas – a tal sociedade civil. 

Tudo mudou muito e em muito pouco tempo. A economia mundial cresceu. A distribuição de renda melhorou, embora a concentração tenha aumentado em alguns países. As democracias passaram a dialogar com instituições do mundo globalizado. Surgiram os populismos. Entender como os diferentes países lidam com os desafios do presente é mais esclarecedor, muitas vezes, do que mergulhar nas lições do passado. Num planeta cada vez mais integrado, é válido comparar-se tanto com a Índia quanto com Portugal. 

O mote desta coluna é: nas democracias, não se melhora a vida dos cidadãos sem recorrer ao conhecimento. Quem ignora a ciência acaba como o prefeito do filme Tubarão: um político sem votos numa cidade sem banhistas. Estudar é preciso. Bora estudar.

Adriana Fernandes - Cansaço

- O Estado de S.Paulo 

 O Renda Brasil não sai sem medidas duras que terão de ser aprovadas pelo Congresso 

O Renda Brasil se transformou no estranho caso do programa que nem mesmo nasceu, morreu e ressuscitou no dia seguinte. O disse me disse desta semana em torno do Renda Brasil do presidente Bolsonaro revelou a dificuldade que é colocar de pé um programa social com mais dinheiro e beneficiários, sem uma afinação entre as área econômicas e social, o Palácio do Planalto, líderes partidários e os parlamentares. 

O cansaço do debate está visível, como reclamou a presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), Simone Tebet. As semanas começam e terminam no mesmo ponto. Não há avanço concreto. Em alguns casos, retrocesso. E já estamos no final de setembro com o fim do auxílio emergencial chegando junto com o aumento da fome. 

É um erro achar que agora, com o apoio do Centrão, tudo poderá ser aprovado. O Centrão vai até aonde a corda estica. O imbróglio em torno da desindexação dos benefícios previdenciários, medida já tentada no passado e sempre abortada, mostrou o deslocamento entre o desejo antigo da equipe econômica e a realidade. 

Do jeito que está hoje o arranjo da política fiscal e o teto de gastos, o programa não sai sem medidas duras que terão que ser apresentadas pelo Congresso e aprovadas. 

Bolsonaro quer que os parlamentares aprovem o novo programa sem patrocinar nenhuma delas: nem para tirar dos “pobres para os paupérrimos” e nem para tirar dos “ricos e privilegiados para os pobres e paupérrimos”. Não tem jogo, embora a segunda opção esteja sendo cobrada pela sociedade e a maioria dos políticos continue cega para essa demanda. 

Tem muito negociador político que parece não entender esse ponto ou está de má-fé empurrando com a barriga a confusão para ver quem cai primeiro. 

A sucessão no início de 2021 do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM RJ), que abraçou a pauta econômica de Guedes e do mercado, deve ser o ponto final da inflexão de política econômica que começou com a pandemia. Quando fevereiro chegar lá, veremos o time mudar de campo de vez. Essa é o cálculo político de quem está embaralhando as cartas. Se nada mudar, provavelmente ficaremos nesse rame-rame até lá. 

Ganha força agora a ideia de aprovar o Renda Brasil no Orçamento com despesas condicionantes. A estratégia já foi usada na “regra de ouro” (que impede o governo de fazer dívida para pagar despesas correntes). 

Funciona assim: a fonte de financiamento fica carimbada no Orçamento com a condicionante de aprovação de uma determinada medida. O gasto só pode ser feito se a medida de corte de despesa for aprovada. Ou seja, o Renda Brasil aumenta além dos recursos destinados ao Bolsa Família em 2021 – R$ 35 bilhões – se as medidas forem votadas. 

Se for esse o caminho para arrumar mais dinheiro para a para a área social e os investimentos necessários à retomada, o Congresso deveria aproveitar o impasse fiscal em torno da criação do programa social para aprovar o projeto de revisão periódica de gastos. Resolveria de cara um problema recorrente: planejamento. 

É bom esclarecer que revisão de gastos não é o mesmo que avaliação da eficiência dos programas governamentais. 

A revisão (spending reviews, em inglês) tem como produto a obrigatoriedade de cortar os gastos, explica o economista do Senado Leonardo Ribeiro, que estuda o tema há quatro anos. Ribeiro ressalta que essa prática institucionalizada como regra passou a ser adotada por vários países depois da crise financeira internacional de 2008. 

Antes da crise, alguns países da Europa, como Dinamarca, Finlândia, Reino Unido, e a Austrália, já usavam esse modelo. Mas foi depois do terremoto financeiro que a maioria dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) passou a adotar a revisão. Historicamente, o Brasil tem dificuldade em cortar despesas e renúncias fiscais. Um ponto de partida importante foi essa semana inclusão da necessidade de uma revisão periódica de gastos no relatório da Comissão Mista do Congresso da covid-19. Pode ser um começo. Ou recomeço.

Hélio Schwartsman - Experimentos eleitorais

- Folha de S. Paulo 

 Métodos de votação ranqueada são playground para matemáticos 

A única vantagem do caótico sistema eleitoral norte-americano, que permite que estados, condados e municípios criem suas próprias regras para contar sufrágios, é que ele se presta a experimentos. Um deles, conhecido como voto preferencial, que já era utilizado havia décadas em poucas cidades, vem ganhando espaço. 

O Maine vai estrear o sistema nas eleições presidenciais deste ano. No mais populoso Massachusetts, haverá um plebiscito para decidir se o estado também o adotará. A cidade de Nova York terá sua primeira eleição nesse modelo no ano que vem. 

Há vários métodos de votação ranqueada —essa área é um verdadeiro playground para matemáticos. Um dos mais fáceis de explicar é aquele em que o eleitor ordena os candidatos segundo sua preferência. Caso nenhum dos postulantes seja a primeira escolha de mais de 50% dos votantes, procede-se a um returno virtual em que o candidato que ficou em último lugar é eliminado das cédulas e elas são recontadas. O processo segue até que alguém obtenha a maioria absoluta. 

A vantagem indiscutível do sistema, ao menos nas localidades que se valem do segundo turno, é a economia de tempo e recursos, já que ele permite obter um resultado parecido com o do sufrágio em duas rodadas com uma só visita à urna. Especula-se, também, que ele favoreceria a moderação, já que interessaria aos candidatos tanto conquistar a preferência dos eleitores como também evitar a rejeição. Ainda não há consenso dos cientistas políticos sobre esse efeito. 

Do lado negativo, contabilizam-se o custo de aprendizado —pode ser difícil explicar para o eleitor por que o candidato com mais primeiras preferências não levou o pleito— e a ausência de um embate direto entre os dois mais bem votados num segundo turno. A literatura, porém, sugere que debates e a própria campanha são bem menos decisivos do que parecem na narrativa dos candidatos e da imprensa.

Demétrio Magnoli* - O fogo deles; e o nosso

- Folha de S. Paulo 

 O crime compensa quando o governo simula não vê-lo 

 O fogo devasta as florestas do oeste dos EUA e, em outro hemisfério e outras latitudes, extensas áreas da Amazônia e do Pantanal. As mudanças climáticas aproximam os incêndios deles dos nossos. Mas são fogos diferentes. Aqui, as labaredas indicam ação criminosa, coordenada em larga escala. 

Nos EUA, Trump revela uma vez mais sua aversão à ciência quando nega o papel decisivo das mudanças climáticas. Contudo, tem razão ao mencionar o diagnóstico de técnicos florestais que acusam o ambientalismo fundamentalista pelo agravamento da crise. 

Florestas temperadas de clima subúmido exigem permanente manejo para evitar o adensamento excessivo da vegetação. Nas últimas décadas, porém, sob pressão de grupos preservacionistas extremados, reduziu-se tanto a exploração madeireira sustentável como a boa prática de incêndios controlados. 

Na sua vastidão, os incêndios florestais nos EUA relacionam-se primariamente com o aquecimento global, mas é difícil negar a contribuição do acúmulo de matéria orgânica, viva e morta, nos estratos inferiores. 

Os sistemas ecológicos tropicais da Amazônia e do Pantanal funcionam de forma diversa. O fogo é um componente deles, durante as estações secas, mas o intrincado tecido de superfícies líquidas opera como fator limitante. 

Normalmente, focos amplos de incêndio acabam contidos pelos rios, furos, igarapés, corixos e lagoas de vazante. Incêndios tão extensos como os que estão em curso só podem ser explicados por ações humanas persistentes e deliberadas. 

O aquecimento global está na base dos incêndios, mas há fogos e fogos. Queimadas comuns para a limpeza de pastos não se confundem com as labaredas ateadas depois da derrubada criminosa de áreas de reserva legal com a finalidade de substituí-las por pastagens. O segundo fenômeno origina inúmeros dos incêndios amazônicos e pantaneiros. É que o crime compensa, quando o governo simula não vê-lo. 

Desta vez, entretanto, a escala do desastre solicita um crime maior. Nos sistemas ecológicos do trópico úmido, incêndios que saltam incontáveis barreiras líquidas só podem nascer de fogos ateados simultaneamente ao longo de arcos de centenas de quilômetros. 

Imagens de satélite indicam uma origem coordenada desses incêndios. A PF dispõe de meios para chegar aos organizadores de um crime ambiental aterrador. O obstáculo não é técnico, mas político: os criminosos agem à sombra do poder. 

O Ministério do Meio Ambiente é parte do problema, não da solução. Seu titular, Ricardo Salles, não é um fanfarrão ideológico, um adorador de mestres místicos, um Weintraub qualquer, mas um operador profissional que serve aos interesses da devastação ambiental. Sua missão oficiosa consiste em desmontar os aparatos de fiscalização do Ibama e do ICMBio. 

Restaria a esperança na ação dos militares, sob o comando de Hamilton Mourão. O vice-presidente fala, para alguns públicos, na proteção da floresta e ensaia a formação de uma “força tática da Amazônia”. Mas vale a pena apostar na figura que, em parceria com Salles, postou o célebre vídeo negacionista do mico-leão-dourado? 

 “Nós temos que fazer a contrapropaganda. Isso faz parte do negócio”, justificou-se Mourão, confundindo o dever institucional de dizer a verdade com a “guerrilha da informação” típica do bolsonarismo de redes sociais. 

O declínio de um vice que chegou a funcionar como contraponto civilizado de Bolsonaro mancha, inevitavelmente, a imagem das Forças Armadas. 

Os militares são um símbolo perene da soberania nacional na Amazônia. A história os colocou na linha de frente da preservação do patrimônio ambiental constituído pelas florestas. 

Hoje, porém, em nome de lealdades políticas circunstanciais ou de privilégios corporativos que se acumulam, eles curvam a espinha diante do crime ambiental. Isso não “faz parte do negócio” —e não será esquecido. 

 *Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Alon Feuerwerker - A luta do centrismo

- Revista Veja 

 O objetivo é construir a base de alternativas competitivas para 2022 

 Uma característica destas eleições municipais, além da pulverização das candidaturas a prefeito trazida pelo fim das coligações para vereador, é a movimentação do centrismo para construir a base de alternativas competitivas na eleição presidencial. Acontece na esquerda e na direita. Nesta, nota-se a atração mútua entre PSDB, MDB e Democratas. Naquela, entre PSB e PDT. 

O objetivo de cada um é quebrar a hegemonia em seu campo. Na direita, reina soberano por enquanto Jair Bolsonaro. Na esquerda, apesar dos pesares, nenhum desafiante chega perto de Luiz Inácio Lula da Silva, mesmo consideradas as atribulações jurídicas do ex-presidente. Ciro Gomes ainda consegue alguma musculatura. Mas João Doria come poeira. E Sergio Moro até agora é uma incógnita. 

Em condições normais de temperatura e pressão, a primeira fila no grid para 2022 estará, portanto, ocupada. Mas o que pode mudar? No centrismo de esquerda, uma esperança é que, desta vez, o eleitorado de Lula, se ele não puder concorrer, não marche para o candidato de Lula. No centrismo de direita, o sonho é que Bolsonaro seja removido antes da largada por algum fato ainda fora do radar. 

Daí que, num apenas aparente paradoxo, o foco da pancadaria de cada um seja o “aliado” potencial, e não o adversário eleitoral. O objetivo principal de tucanos, democratas e emedebistas nesta eleição para prefeito e vereador é derrotar o bolsonarismo. E o esforço maior de pessebistas e pedetistas é maximizar as dificuldades político-eleitorais do PT para impor ao partido de Lula o maior desgaste possível. 

Observadores cartesianos da cena podem até achar estranho, mas assim é a política. Qualquer análise desta que não tenha como centro a luta crua pelo poder é desperdício de tempo e energia intelectual. E ninguém alcança um segundo turno sem passar pelo primeiro. E o principal obstáculo no primeiro turno costuma ser exatamente aquele “amigo”, o eleitor a quem você vai ter de pedir apoio e voto quando chegar a hora da decisão. 

Daí por que se compreende o presidente da República resistir a colocar o cacife dele na mesa dos primeiros turnos nos municípios. A não ser quando for importante para, desde agora, enfraquecer diretamente seus possíveis adversários em 2022. Já no caso de Lula, a prioridade parece ser evitar que o PT se dilua em alianças que podem fortalecer quem deseja aposentar o ex-presidente. 

 Não que ambos, Bolsonaro e Lula, dependam tanto assim do resultado deste novembro. Ele é vital para seus concorrentes, mas os dois podem sobreviver bastante bem a reveses de sua tropa. Pois eleição presidencial tem características de eleição solteira. O eleitor não vota no presidente porque o deputado ou o governador mandaram, mas pode muito bem decidir votar no governador ou no deputado porque são apoiados pelo candidato a presidente. 

E tem outra: quanto mais cada partido, o bolsonarista e o lulista, vier a sofrer agora, mais precisará do líder para comandar a colheita na urna daqui a dois anos. Fica a dica.

Dora Kramer - Cru e quente

- Revista Veja

Obcecados por 2022, políticos deixam de lado as aflições locais do eleitorado 

  No sempre ponderado papel de bom conselheiro, o dito popular cansa de avisar ao apressado sobre o risco de comer cru e quente. A julgar pelos preparativos para as eleições de novembro próximo, partidos e políticos não estão preocupados em dar ouvido à chamada sabedoria de caminhão, tal a afoiteza com que têm entrado nas disputas municipais de olhos pregados em 2022.

Não que devessem descuidar da semeadura do terreno. A eleição de prefeitos e vereadores tem importância na formação das bases dos que concorrerão a deputados, senadores, governadores e presidente dois anos depois. É importante, mas não determinante. Assim atesta a série histórica desde a retomada ampla e irrestrita do voto direto.

Não vamos longe, bastam os exemplos das capitais de maior repercussão política/eleitoral: Rio de Janeiro e São Paulo. No ano que antecedeu a primeira direta para presidente, o PSDB elegeu o prefeito do Rio, o PT levou Luiza Erundina à prefeitura de São Paulo e nada disso teve a ver com a vitória de Fernando Collor em 1989. Mario Covas, tucano como o também eleito em Belo Horizonte, Pimenta da Veiga, ficou em quarto lugar.

Da mesma forma, em 1994 Fernando Henrique ganhou para presidente sem que nisso tenham reverberado as eleições de Paulo Maluf (SP) e Cesar Maia (RJ) dois anos antes. Ah, foi o Plano Real, não vale? O.k., pulemos para as eleições de Lula. Na primeira, o PT estava na prefeitura paulistana (Marta Suplicy), mas no Rio sentara-se de novo o conservador/liberal Cesar Maia. Na segunda de Lula, em 2006, no Rio outra vez Cesar e em São Paulo, o tucano José Serra.

Assim viemos com alternância de aliados e adversários de presidentes e/ou candidatos ao Planalto em prefeituras de capitais. Era, e é, habitual que ao fim de uma disputa municipal se façam contas “colando” os resultados nas próximas presidenciais. Quando elas acontecem, no entanto, as análises sobre a influência de um pleito no outro revelavam-se irrelevantes e até inúteis.

A despeito das evidências, a prática não apenas se repete como toma conta com muito mais força de governistas e oposicionistas neste esquisitíssimo ano de 2020. Bolsonaro manda seus aliados espalhar a versão de que não pretende se envolver em disputas pelo poder municipal, enquanto se mostra envolvido como nunca se viu um presidente se envolver. Diz que não vai apoiar ninguém, mas age para amealhar apoios a sua reeleição e desde já engajar seus adeptos na cruzada contra adversários. Sejam eles assumidos ou meramente presumidos.

A oposição segue a mesma toada, atuando em ritmo de ensaio-geral para daqui a dois anos. Nada demais se a questão principal, o funcionamento das cidades, não estivesse quase totalmente negligenciada. Há gente, como o prefeito Bruno Covas (SP), que se recusa a nacionalizar politicamente o discurso, embora no caso dele seja fácil porque a presença de João Doria no cenário de alianças montadas de olho no futuro é autoexplicativa.

O excessivo e precipitado peso dado ao reflexo desta na próxima eleição já vimos por exemplos anteriores que será insignificante, mas pode vir a se revelar contraproducente. Partidos e políticos se movimentam tendo como referência a eleição de 2018. Além de ignorarem as especificidades do diálogo com o eleitor quando o jogo é local, não levam em conta que o ambiente mudou inteiramente em relação a dois anos atrás, e tenderá a estar ainda mais diferente quando 22 chegar.

Marcus Pestana* - As lições da pandemia

Chegamos a mais de 135 mil vidas brasileiras perdidas para a COVID-19. Lá se vão seis meses de pandemia. Todas as guerras e as grandes crises promoveram além de vítimas, mudanças, inovações e novas oportunidades. Além da tristeza, ficam as lições. 

O primeiro aprendizado é que, apesar de nossa federação não garantir o grau de autonomia como nos EUA aos entes subnacionais, e os municípios não serem, diferente do Brasil, componentes da estrutura da organização federativa na maioria dos países, e o Supremo Tribunal Federal ter decidido unanimemente em abril que além do governo federal, governos estaduais e municipais tinham competência para determinar regras de gestão da pandemia em seu território, a coordenação federal é imprescindível. 

O governo federal fez uma interpretação torta da decisão do STF e renunciou à liderança nacional. Transferiu para governadores e prefeitos toda a responsabilidade de gerir a situação de crise. E mais, numa postura negacionista, sinalizou contra a estratégia de isolamento social, entrou em conflito com estados e municípios, politizou a questão da cloroquina, abriu mão de centralizar a compra de equipamentos e medicamentos – atitude que evitaria várias situações de desabastecimento e corrupção- e deixou de orientar corretamente a população. Outro legado importante é a percepção da centralidade da comunicação social nas políticas públicas. Enquanto tínhamos as entrevistas diárias do então ministro Luiz Henrique Mandetta se estabeleceu uma relação de confiança, empatia e de tranquilidade social, na medida do possível. 

Havia um rumo. Depois que o governo central parou de se comunicar com o país ou passou a emitir sinais equivocados, a população se sentiu órfã e insegura em relação a medicamentos, isolamento social, vacinas, prevenção, testes, etc. Aprendizado importante será a valorização do SUS, da atenção primária e das ações de prevenção em saúde. Nós, gestores do SUS, sempre tentamos mostrar que, apesar de todas as dificuldades financeiras e de gestão, o sistema tinha uma boa arquitetura e segurava a barra. Os dados reafirmam as desigualdades brasileiras. A mortalidade foi maior entre pobres e negros. 

A mortalidade foi maior nos hospitais públicos do que nos privados. Mas, no limite de suas forças, o SUS deu conta do recado. E ficou claro que nos próximos anos não haverá recursos abundantes adicionais para o SUS, nem aumento da renda das famílias que as permitam contratarem planos privados. 

Por isso, ao invés de erguermos “Muralhas da China” temos que perseguir o diálogo entre o SUS e a saúde suplementar, numa parceria que produza ganhos múltiplos. Os ensinamentos da crise são vários, mas o espaço aqui é curto. Sem saudosismos de estratégias cepalinas de substituição de importações dos anos de 1950, temos que estar atentos à necessidade de seletivamente termos produção local de itens essenciais para não ficarmos tão dependentes em momentos assim de países como Índia e China. 

Também é impressionante a desburocratização que ocorreu durante a crise. Decisões que demoravam anos foram decididas em semanas. Fica a lição: é possível um governo ágil. Gostaria de falar sobre a mudança nos processos de trabalho, home work, tele-saúde, tele-educação, inovações e e-comerce, solidariedade social, mas o espaço acabou. 

 *Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)

O exemplo dos brasileiros – Opinião | O Estado de S. Paulo

O exemplo que o País tem a dar ao mundo e a si mesmo não é a gritante insensatez de seu presidente da República, e sim a força de sua sociedade 

“Somos um exemplo para o mundo”, disse o presidente Jair Bolsonaro em evento do agronegócio em Sinop (MT), referindo-se à política ambiental do País. Há alguns dias, a propósito da pandemia de covid-19, o presidente declarou que o Brasil foi “um dos primeiros países que melhor enfrentou (sic) essa crise”. 

Na concepção do presidente da República, portanto, nada do que se constata a olho nu – tanto a devastação da Amazônia e do Pantanal como a tragédia múltipla causada pela pandemia, ambos os casos resultantes em parte da inépcia militante do governo federal – é real. Ao contrário: segundo Bolsonaro, o Brasil vai muito bem, melhor do que os outros países do mundo, e as críticas que o governo recebe são fruto de ignorância ou má-fé. 

Declarações como essas mostram a profunda desconexão da realidade por parte do presidente Bolsonaro, o que é extremamente preocupante por se tratar da autoridade máxima do Poder Executivo. Se não é capaz de reconhecer os problemas, mesmo os mais evidentes, tampouco o será para pensar em soluções. 

A tônica do discurso de Bolsonaro tem sido desde sempre atribuir a terceiros as responsabilidades que são principalmente de seu governo em relação às crises, muitas das quais criadas ou agravadas sobretudo por sua própria incompetência. Essa tática pode até livrá-lo momentaneamente do ônus eleitoral de seus equívocos, pois afinal é apenas isso o que lhe interessa, mas deixa o País desgovernado. 

Justamente quando mais precisa de uma liderança que conduza o debate político de maneira racional para encontrar as melhores soluções para tão graves problemas, o Brasil está sob a direção de um negacionista contumaz, que enxerga a destruição como sinal de progresso. É o pior dos mundos.

Felizmente, o Brasil não se restringe aos devaneios palanqueiros de seu presidente, cada vez mais desacreditado aqui e no exterior. A sociedade, na ausência de governo – ou, o que é mais grave, muitas vezes tendo que enfrentar a oposição do próprio governo –, se mobiliza, com recursos próprios e movida por altruísmo, para mitigar os efeitos mais danosos das crises. 

Tome-se o exemplo dos incêndios no Pantanal. Enquanto o governo permanece indeciso em relação à destruição de parte da rica fauna daquela região como resultado das queimadas, organizações não governamentais – desde sempre demonizadas por Bolsonaro e seus fanáticos seguidores – têm atuado de maneira corajosa para salvar os animais da região. Como bem lembrou Fernando Gabeira em recente artigo no Estado, “não importam os insultos vindos do mundo oficial, a esperança de reduzir o impacto destrutivo dessa passagem do fundamentalismo pelo poder ainda se baseia em solidariedade e trabalho voluntário”. 

A mesma solidariedade se verifica no enfrentamento da pandemia, menosprezada desde o primeiro dia pelo presidente Bolsonaro, que trocou de ministros da Saúde até que encontrasse um que corroborasse suas fantasias delirantes. São muitos os exemplos de filantropia e desprendimento pessoal com o propósito de ajudar no esforço contra a doença e seus efeitos econômicos e sociais mais nefastos. Enquanto o governo federal, na pessoa de seu presidente, tudo fazia para sabotar os esforços de coordenação do combate à pandemia, a sociedade se mobilizava para fazer frente a esse desafio. Não fosse por isso, a calamidade seria muito maior. 

O exemplo que o País tem a dar ao mundo e a si mesmo, portanto, não é a gritante insensatez do presidente da República, e sim a força de sua sociedade. Uma vez chamados a cooperar diante de crises graves como essas que ora enfrentamos, os brasileiros, ricos e pobres, dão um passo à frente e se apresentam para o trabalho – seja por meio de doações, seja por intermédio da ação de ONGs e organizações comunitárias que fazem seu trabalho muitas vezes longe dos holofotes. 

 Que o País dependa cada vez menos de seu presidente da República para superar seus grandes desafios é um tanto exótico, mas, em se tratando de Bolsonaro, talvez seja melhor assim.

Bolsonaro não tem como se esquivar de inquérito da PF – Opinião | O Globo

Investigação poderá provar que o governo financiou propaganda antidemocrática na internet 

Depois da prisão do amigo e ex-PM Fabrício Queiroz em junho, Bolsonaro baixou o tom e procurou aproximar-se do Supremo Tribunal Federal (STF), que antes atacara várias vezes. Mas as instituições não param, e as investigações que tanto preocupam e irritam o presidente prosseguem. Resultado: no inquérito aberto em maio no STF a pedido da Procuradoria-Geral da República, um relatório parcial da PF apontou pela primeira vez a conexão entre atos antidemocráticos realizados pelo país e o Palácio do Planalto. 

O inquérito complementa um outro, que trata da produção de notícias fraudulentas dirigidas contra a Corte e seus ministros, distribuídas por bolsonaristas nas redes sociais. Os dois temas, ambos conduzidos pelo ministro Alexandre de Moraes, se misturam. 

Já havia evidências de que os canais no YouTube que pregavam golpe militar com Bolsonaro no Planalto recebiam dinheiro do governo por meio da veiculação de publicidade oficial, programada pela Secretaria de Comunicação (Secom), segundo O GLOBO revelou em maio. Informações sobre o desvio de dinheiro público para causas bolsonaristas foram enviadas pela CPI das Fake News à PF, onde as investigações são conduzidas pela delegada Denisse Dias Ribeiro. 

No relatório, ela registra que não há provas de que os agentes públicos que lançaram a publicidade na internet tomaram as devidas precauções para evitar que a propaganda oficial fosse veiculada em canais que “difundem ideias contrárias às professadas pelo estado democrático de direito”. O Google, controlador do YouTube, já explicou que seu sistema de edição de publicidade dispõe de ferramentas para destinar os conteúdos a públicos definidos pelo cliente. Logo, o inquérito sugere ter havido intenção de veicular a propaganda nesses canais, para apoiá-los com dinheiro do Tesouro. 

Quando o Facebook, numa auditoria mundial para identificar e eliminar contas e páginas usadas ilegalmente, derrubou em julho uma rede de 73 contas e 14 páginas de um grupo bolsonarista, nela estavam os filhos Zero Um e Zero Três, o senador Flávio e o deputado Eduardo Bolsonaro, ao lado de parlamentares do PSL. 

Tal varredura jogou luzes sobre a equipe de militantes que, de dentro do Planalto, gerenciava a usina de fake news chamada por Bolsonaro de “minha mídia”. A equipe, conhecida como “gabinete do ódio”, era operada pelo assessor Tercio Arnaud Tomaz, descoberto pelo vereador Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, e cedido ao pai para ajudar na guerrilha digital. Tomaz era, segundo a auditoria, um dos vértices do sistema de desinformação, calúnias e agressões à democracia. 

O trabalho da PF é uma ação republicana para desmontar um aparelho bolsonarista incrustado na máquina do Estado — a exemplo do que aconteceu nas investigações do mensalão e na Lava-Jato. Trata-se de uma ação pedagógica para ensinar os limites entre o legal e o ilegal. Bolsonaro não tem como se esquivar dela.

Escolhas difíceis – Opinião | Folha de S. Paulo

É possível abrir espaço no orçamento para um novo programa social se ineficiências forem atacadas 
 A baixa disposição do presidente Jair Bolsonaro para enfrentar debates complexos e fazer escolhas difíceis continua travando avanços na política econômica e social, como a confusão em torno do Renda Brasil deixou evidente nesta semana. 

 Frente à inação do governo, caberá às forças políticas construir um caminho para ampliar a proteção aos estratos mais vulneráveis da população, duramente atingidos pela pandemia do coronavírus. 

 O desafio é grande, dada a penúria orçamentária, e sua resolução exige um debate sério sobre as fontes de financiamento que poderiam viabilizar um novo programa e garantir a cobertura mais adequada. 

Há várias propostas em debate no Congresso. A mais abrangente estipula o pagamento de um rendimento básico a todos os brasileiros, mas seu custo, que simulações situam em 10% do PIB (Produto Interno Bruto), a torna inviável.