- O Estado de S.Paulo
O filósofo agora parece readquirir o poder de inspirar uma visão do ‘presente como história’
Benedetto Croce, de quem se dizia ser o “papa laico” da cultura italiana e o líder intelectual do liberalismo europeu na primeira metade do século 20, costumava afirmar, apesar de seu proclamado laicismo, que “depois de Cristo todos somos cristãos”. Tratava-se de uma forma refinada de admitir o que havia de efetivamente universal no cristianismo do Novo Testamento, que interpelava a consciência de todos os homens, mais além dos círculos de proximidade tribal ou territorial. Segundo Croce, querendo ou não, a partir de então passamos a ver o mundo como cristãos, como de resto ainda o vemos, independentemente de fé ou adesão a qualquer visão transcendental do mundo.
Essa percepção não vale só para um fenômeno tão extraordinário quanto a vinda de um Deus. Pensadores notáveis, radicalmente terrenos em sua busca de explicações para os fatos da vida, à sua maneira também deixaram uma marca da qual nem sempre nos damos conta, mas que está presente no espírito do tempo, moldando juízos e modos de ver até do homem comum. Karl Marx, por exemplo, cujo bicentenário ora se celebra, é um desses homens notáveis, cuja obra múltipla, fragmentada e contraditória, nascida no calor da revolução industrial movida pela máquina a vapor, parece ter sobrevivido a regimes políticos despóticos que, ainda por cima, não raro o trataram como uma espécie de oráculo infalível ou moderna divindade, capaz de resolver de uma vez por todas o enigma da História.
Inscreve-se nessa tradição desafortunada o discurso de Xi Jinping, o líder máximo chinês, por ocasião da solenidade em Beijing. O marxismo – ou melhor, uma de suas inúmeras versões burocraticamente definidas – aparece como o recurso de legitimação possível num país cujo ritmo espantoso de crescimento tem definido em grande parte a globalização, ao mesmo tempo que deixa em seu rastro índices não menos consideráveis de desigualdade. Para os que apreciam medidas objetivas, a desigualdade chinesa hoje se situa em nível comparável ao dos Estados Unidos, o que repõe como atual o pensamento de Marx nas duas circunstâncias, desde que tomado criticamente e, portanto, afastado de qualquer ideia grosseiramente igualitária da vida social.