domingo, 19 de julho de 2020

Opinião do dia – Henri Lefebvre* ( O conhecimento)

"Quais são as características mais gerais do conhecimento enquanto fato?

a) Em primeiro lugar, o conhecimento é prático. Antes de elevar-se ao nível teórico, todo conhecimento começa pela experiência, pela prática. Tão-somente a prática nos põe em contato com as realidades objetivas. Imaginemos um ser que tivesse uma consciência semelhante à consciência humana, mas que fosse – se é possível imaginá-lo - inteiramente passivo, sem atividade prática, sem poder sobre as coisas através de seus membros e de suas mãos; em tal ser, as próprias impressões se desenvolveriam como uma espécie de sonho; ele nem sequer imaginaria o que pode ser um conhecimento que penetra nas coisas e investiga o que elas são em si mesma.

b) Em segundo lugar, o conhecimento humano é social. Na vida social, descobrimos outros seres semelhantes a nós; ele agem sobre nós, nós agimos sobre eles e com eles. Estabelecendo com eles relações cada vez ricas e complexas, desenvolvemos nossa vida individual; conhecemos tanto eles com tanto nõs mesmo. Além disso, esses outros seres humanos nos transitem – pelo exemplo ou pelo ensino – um imenso saber já adquirido.

c) Finalmente, o conhecimento humano tem um caráter histórico. Todo conhecimento foi adquirido e conquistado. Há que partir da ignorância, seguir um longo e difícil caminho, antes de chegar ao conhecimento. O que é verdadeiro para o individuo é igualmente verdadeiro para a humanidade inteira: o imenso labor do pensamento humano consiste num esforço secular para passar da ignorância ao conhecimento. A verdade não está feita previamente; não é revelada integralmente num momento predestinado. Na ciência, tal como no esporte, por exemplo, todo novo resultado supõe um longo treinamento; e todo novo desempenho, todo melhoramento de resultados, são obtidos de modo metódico."

*Henri Lefebvre (1901-1991), filósofo e sociólogo francês. Estudou filosofia na Universidade de Paris, onde se graduou em 1920. ‘Lógica formal /Lógica dialética”, p. 49-50. - Editora Civilização Brasileira, 1975

Luiz Sérgio Henriques* - Os vivos e os mortos

- O Estado de S.Paulo

Não é mais incomum ver EUA e Brasil associados sob o rótulo de ‘párias’ ambientais e sanitários

Que os mortos possam julgar os vivos não é um absurdo. O que nos educa para cenas desse tipo, naturalmente, é a arte, uma forma extraordinária de conhecimento. E aqui ressurge a lembrança do “incidente” imaginado por Érico Veríssimo na sua fictícia Antares. Uma greve de coveiros faz com que se acumulem os insepultos. E são esses mortos sem sepultura que retornam, exigindo providências para poderem enfim descansar. Revisitam parentes e amigos, testemunham discussões e conflitos embaraçosos, até ocuparem a praça da cidadezinha, onde encenam um duro juízo sobre a mediocridade e a vileza que desgraçadamente puderam constatar entre aqueles que assombraram com sua volta fantástica.

Deixamos para trás a ditadura, em cuja atmosfera, na arrojada ficção de Veríssimo, se quis cancelar da memória o “incidente”, e já há três décadas vivemos o mais longo período democrático da História republicana. Nesta pandemia, contudo, os mortos ao redor parecem reatualizar a incômoda alegoria. É que eles são em número muito maior do que se poderia esperar de um país cuidadoso com seus cidadãos, mesmo que esta seja uma catástrofe sanitária sem paralelo desde 1918 e, nascida na globalização, se tenha espalhado feito rastilho de pólvora, cobrando pesadíssimo tributo, em especial das populações do Brasil e dos Estados Unidos, os líderes mundiais na contagem de corpos.

Não são poucas as dessemelhanças entre os dois países-contintente. A riqueza e o poderio americano, de alcance global, contrastam com o tamanho menor da nossa economia e sua projeção externa obviamente mais contida. Paradigma do capitalismo liberal – que às vezes, para o bem e para o mal, tentamos reproduzir, rasgando nossa certidão “ibérica” de nascimento –, os Estados Unidos conseguem mobilizar mais recursos científicos, apesar de se contarem entre os heróis brasileiros sanitaristas da altura de um Oswaldo Cruz ou de um Vital Brasil, que nos legaram uma tradição valorosa de pesquisadores e instituições. Sobretudo, apesar da nossa abissal desigualdade, temos o SUS, que, como se diz com precisão, é a barreira que nos separa da barbárie e nos diferencia da medicina privada dos americanos.

Roberto Romano* - O peso ético do termo ‘leviano’

- O Estado de S.Paulo

O apodo aplicado ao ministro Gilmar Mendes não poderia ter outro endereço?

Em nota de repúdio às declarações do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), os comandantes das Forças Armadas e o ministro da Defesa o acusam de várias coisas. Na ética, a mais grave afiança que Mendes falou de modo leviano. Para um juiz ou militar que se preze é essencial o recato da linguagem.

O modelo do soldado virtuoso começa em Esparta. A vida silente encontra seu elogio naquela cultura. Mesmo em Atenas, onde o cidadão assumia ao mesmo tempo a guerra e a segurança interna, a fala excessiva não era apreciada. Longos discursos seriam reservados para a Assembleia. Ali se orientava o destino de todos, generais incluídos. A inflação das palavras, no governo do Estado, foi combatida pelos políticos e filósofos gregos.

Plutarco, de quem o mundo ocidental recebeu o maior contributo ético – sobretudo em matéria de moralidade militar –, redigiu tratados sobre o abuso das palavras e os danos que ele acarreta. No De Garrulitate e em seu par, o De Curiositate, o pensador adverte – com base em fatos reais – sobre os perigos da fala sem peias. Comandantes militares que frequentam barbearias são avisados: a conversa descuidada com o fígaro pode ser ouvida por espiões e arruinar a defesa coletiva. Guardar o discurso sóbrio evidencia uma das mais celebradas virtudes militares.

Quando se aponta alguém como leviano é preciso que tal acusação seja absolutamente certa e comprovada em fatos e lógica. Caso oposto, trata-se de uma quebra perigosa da ordem pública e privada. O acusado é atingido no fundamento da ordem civil: a personalidade reta.

Cristovam Buarque* - Nossos negacionistas

- O Globo

Para eles, estatal é sinônimo de público

Tudo indica que o atual governo deixará o Brasil em situação pior do que recebeu. A culpa não será da herança nem da epidemia, mas de seu obscurantismo, reacionarismo e falta de empatia. Bolsonaro olha o mundo por retrovisor embaçado, com raiva do passado e sem projeto para o futuro. Basta citar sua crença em mitos e narrativas sem comprovação científica; sua obsessão por ideias ultrapassadas, tanto as que adota quanto as que ele combate. Sua negação da realidade e da ciência, ao lado da falta de empatia, é o fator determinante para agravar a falta de coesão e rumo que enfrentamos há muitos anos.

Lamentavelmente, o negacionismo não é apenas dele e de seus seguidores. Muitas das lideranças na oposição também negam a realidade. Acreditam que estatal é sinônimo de público; que o Estado é sempre comprometido com justiça social, com eficiência e sem corrupção. Não enxergam que cada estatal tem também interesses próprios de políticos, servidores e dirigentes, às vezes opostos aos do público. Negam a realidade da corrupção, visível em malas com dinheiro, contas em santuários fiscais, propinas devolvidas. Veem a realidade como desejam que ela seja e divulgam as narrativas que lhes interessam.

Há momentos em que, para enfrentar catástrofes ou para executar projetos, governos responsáveis e solidários gastam mais do que arrecadam. Para isto, tomam empréstimos ou emitem moeda, mas sem negar que o déficit será cobrado depois por juros altos, aumento de impostos ou por desvalorização da moeda, com a desestruturação da economia e sacrifícios sobretudo para os pobres. Mas, enquanto bolsonaristas acreditam que a Terra é plana, oposicionistas acreditam que o Tesouro público é elástico, com dinheiro ilimitado. Outros confiam na lógica temerária de que os empréstimos ou emissões de moeda induzirão crescimento de produção que aumentará a arrecadação na dimensão necessária para cobrir déficits.

Merval Pereira - Liberdade como base

- O Globo

Livro ressalta a responsabilidade que cada um assume ao fazer suas escolhas do uso da liberdade

O encontro entre o editor Roberto Feith e o constitucionalista Gustavo Binembojn deu-se em torno de uma causa nobre, contra a proibição das biografias independentes, em defesa da liberdade de expressão. Feith, como vice-presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livro (Snel) e Binembojn como advogado no Supremo Tribunal Federal da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) que resultou vitoriosa, eternizada pelo voto da ministra Carmem Lucia com a exclamação “Cala a boca já morreu!”.

Essa relação deu frutos. Os dois voltam a se encontrar neste livro “Liberdade Igual, o que é e por que importa” que inaugura o selo História Real, criado por Roberto Feith com Jorge Oakim, da Intrínseca, para tratar da história recente do país. No panorama geral que Binembojn traça da liberdade como inerente à condição humana, ele ressalta o caráter universalizante da responsabilidade que cada um assume ao fazer suas escolhas do uso da liberdade.

Nada mais atual do que essa reflexão, diante da pandemia de Covid-19 que nos assola indistintamente. Quando se constata que a liberdade de circular pelo espaço público, reconquistada aos poucos, não leva em conta os que nos circundam, mas a fruição egoísta da individualidade sem máscara, que nos protege mas também protege os outros, vemos que ainda precisamos, como humanidade, levar em conta que a liberdade “é uma empreitada coletiva”. Entendida como a possibilidade de definir seu próprio destino, “é atributo essencial da condição humana que nos une e iguala”.

Luiz Carlos Azedo - Estado de choque

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Guedes propõe solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Como sabe que é isso, pode ser para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo”

A ideologia de livre mercado do vienense Friedrich August Von Hayek, paradigma da política liberal conservadora do pós-guerra, foi historicamente associada às doutrinas de choque. Embora originárias das décadas de 1920/1930, suas ideias somente ganhariam força após a II Guerra Mundial. Esse caráter de “choque” foi resultado do envolvimento de Hayke com regime ditatoriais da América Latina, entre os quais a ditadura sanguinária do general Augusto Pinochet, no Chile. A doutrina de choque funciona como uma chantagem, porque as pessoas são persuadidas de que a única opção é aceitar o “mal menor” diante das crises, o que se traduz em soluções selvagens para a desregulamentação da economia e alienação patrimonial, assim como a naturalização do desemprego em massa e da chamada “destruição criativa”.

Obviamente, Hayke foi um crítico das teorias de John Maynard Keynes, o que dificultou muito sua vida no imediato pós-guerra, por causa do sucesso das políticas keynesianas nos Estados Unidos, depois da Grande Depressão de 1929, e na reconstrução da Europa Ocidental, com o Plano Marshall, no imediato pós-guerra. Entretanto, Hayke ganhou o prêmio Nobel de 1970 e conquistou corações e mentes dos dois principais líderes ocidentais da década seguinte, Ronald Reagan, presidente republicano dos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, primeira-ministra conservadora do Reino Unido. Com isso, sua figura controversa deixou de ser associada aos ditadores latino-americanos e passou ser identificada com a bem-sucedida política “neoliberal” desses dois líderes.

Com o colapso da antiga União Soviética e do comunismo no Leste Europeu, o mundo ingressou num período de aparente unipolaridade, até a Rússia de Putin se reerguer como potência energética, a aliança franco-alemã se consolidar na Europa e a China, emergir como novo player da economia mundial, cujo eixo comercial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. Simultaneamente, um filósofo norte-americano, John Rawls, que cresceu em Baltimore e havia servido no Pacífico — Nova Guiné, Filipinas e Japão —, durante a II Guerra Mundial, começou a ser muito discutido nos Estados Unidos, por causa de suas teses sobre a justiça, o direito dos povos e a equidade. Formado em Princeton, no começo dos anos 1950, estudou na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde conviveu com outro gigante do liberalismo, Isaiah Berlin.

Eliane Cantanhêde - Platô no vírus e na política

- O Estado de S.Paulo

Finalmente, a direita real e moderna descola-se da direita fake e patética. E o Exército?

O presidente Jair Bolsonaro continua sendo uma fonte de instabilidade e temos dois milhões de contaminados e perto de 80 mil mortos pela covid-19, mas o Brasil conteve a dupla escalada e – ainda que em patamares desesperadores – vai chegando a um platô na política e no vírus e é hora de deslanchar o pós-pandemia e prestigiar a força das instituições e da sociedade civil. A imagem do País esfarela mundo afora, mas é preciso reconhecer a incrível capacidade de resistência a ameaças e bravatas.

Com Bolsonaro em fase de trégua e de quarentena, o Judiciário em recesso e o Legislativo trazendo as reformas estruturais de volta à pauta do País, vem essa sensação de platô político e de volta à normalidade, reforçada por indicadores ainda frágeis, mas em viés de alta, na economia. A situação da pandemia ainda é macabra, sem prazo para terminar, mas constrói-se união para minimizar os danos colaterais e tratar as feridas: quebradeira de empresas, milhões a mais de desempregados e o aprofundamento da miséria.

Esse debate é possível depois da fantástica resistência aos ataques contra as instituições, a ciência e a inteligência. O Supremo liderou esse processo e, mesmo atuando no limite, às vezes balançando perigosamente para o excesso, deu a sustentação indispensável para uma reação que brotou de todos os lados e cristalizou a certeza de que o Brasil não é o melhor dos mundos, mas sabe sustentar a democracia.

Mesmo antes de pegar a covid-19 (o que ele buscou fervorosamente), Bolsonaro já tinha parado de disparar insultos diários, atiçar as hordas golpistas, avalizar a guerra da internet contra tudo e todos, reabrindo o diálogo e as relações com os poderes. O vírus fez o resto e, com o presidente devidamente recolhido, o País passou a respirar melhor, a acordar sem tanto sobressalto.

Janio de Freitas – O poder sem as ilusões

- Folha de S. Paulo

Generais buscaram relevância logo nas duas áreas mais expostas à corrosão de imagem

Foi-se a cerimônia. Ou, mais autêntico, o temor. O temporal de críticas ao Exército dilui as ilusões militares sobre a sua corresponsabilidade, aos olhos públicos, na sanha destrutiva do governo Bolsonaro.

Aos generais construtores desse comprometimento não bastaram os erros de análise conjuntural e de presunção da sua capacidade. Buscaram relevância logo nas duas áreas mais expostas, no momento, à ofensiva das cobranças e da corrosão de imagem —a Saúde e a Amazônia.

Os militares do Exército não têm aptidão para lidar com essas circunstâncias adversas. Fazem dos fatos e das divergências a leitura facciosa e fantasiosa aprendida como arma na Guerra Fria.

O que está em questão, por exemplo, na reprovação exposta pelo ministro Gilmar Mendes, mas generalizada, à ocupação militar do Ministério da Saúde, não é susceptibilidade de tal ou qual instituição, como querem os comandantes e seu general-ministro. É, isto sim, nada menos do que vida. Vida humana, nas suas alternativas saúde, doença e morte.

Elio Gaspari - Epidemia de descaso na educação

- O Globo / Folha de S. Paulo

Esse Enem será um massacre para os jovens do andar de baixo, e não há educateca ilustre preocupado com isso

Se faltasse uma cena capaz de mostrar que Brasília é uma ilha de fantasias e o governo de Jair Bolsonaro vive no mundo da Lua, mostrou-se perfeita a posse do professor Milton Ribeiro no Ministério da Educação. Os estudantes brasileiros estão sem aulas presenciais desde março e, em janeiro, 5,8 milhões de jovens que concluíram o ensino médio irão para o Enem sem o preparo necessário. A respeito dessa desgraça, nem uma palavra.

Ribeiro contou que sua Universidade Mackenzie foi a primeira a receber filhos de escravos e que estudou na rede pública. Bolsonaro lembrou que fez toda a vida em escolas da Viúva. Nenhum dos dois percebeu que, de acordo com dados de 2008, três em cada dez jovens que concluíam o ensino médio não tinham acesso à internet. Sem ela e sem aulas, resta saber como podem se preparar direito. Os jovens Milton e Jair provavelmente estariam ferrados no Enem de janeiro.

Esse Enem será um massacre para os jovens do andar de baixo, e não há educateca ilustre preocupado com isso. Sabe-se lá o que pode ser feito, mas a triste realidade é que eles nem fingem estar preocupados.

A única coisa que se fez foi colocar em circulação a cloroquina pedagógica do ensino à distância. Na teoria, resolve qualquer problema, na prática, resolve os problemas de alguns espertalhões.

Bernardo Mello Franco - Entulho autoritário

- O Globo

O governo Bolsonaro ressuscitou a Lei de Segurança Nacional para intimidar os críticos. Contra a ofensiva autoritária, juristas discutem uma nova legislação

Virou rotina. A cada semana, o governo Bolsonaro encontra um novo pretexto para ressuscitar a Lei de Segurança Nacional. Na última terça, o alvo foi o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Sete dias antes, o jornalista Hélio Schwartsman, da “Folha de S.Paulo”. Em junho, o cartunista Aroeira, do portal Brasil 247.

Nos três casos, a lei da ditadura militar foi invocada para enquadrar críticos do governo. Uma desculpa patriótica para blindar o poder e sufocar a liberdade de expressão.

O ministro André Mendonça mandou a Polícia Federal investigar Aroeira por uma charge que irritou o presidente. Depois repetiu o expediente com Schwartsman, que disse torcer pela morte do capitão. O leitor pode ver mau gosto no desenho e no artigo, mas nenhum deles ameaça a segurança do país. A lei foi exumada para intimidar a imprensa, um dos esportes preferidos do bolsonarismo.

Hélio Schwartsman - A era das lacrações

- Folha de S. Paulo

O mundo será bem menos interessante se não pudermos discordar nem das locuções com as quais se defendem as causas inatacáveis

No que talvez seja o melhor exemplo de lacração que destrói as próprias razões, em 2006, muçulmanos saíram às ruas de várias cidades em manifestações, muitas delas violentas, para protestar contra uma aula magna do papa Bento 16 em que ele supostamente havia afirmado que o islamismo era uma religião violenta.

Em 2020, um grupo de 550 acadêmicos acaba de publicar uma carta em que pede que a Sociedade Linguística da América retire Steven Pinker de sua lista de membros distintos. Eles alegam que o linguista e psicólogo cognitivo minimiza as injustiças raciais e abafa as vozes daqueles que sofrem indignidades sexistas e raciais.

O que dá o toque papesco à história é que, poucos dias antes da carta, Pinker assinara um manifesto em que, ao lado de 152 intelectuais, incluindo pesos-pesados da esquerda e da direita, como Noam Chomsky e Francis Fukuyama, denuncia a política de lacrações que se apossou do debate público e pede que as discussões se deem em torno de ideias e argumentos, sem interdições “a priori” nem condenações ao ostracismo.

Bruno Boghossian - Entre a mentira e incompetência

- Folha de S. Paulo

É difícil saber se o presidente apenas mente ou se não tem ideia do que está fazendo

Jair Bolsonaro não gostou da ideia de vetar queimadas no país por quatro meses para conter a devastação da Amazônia. Na noite de quinta-feira (16), ele criticou a medida e avisou: “Não assinei ainda. Está previsto assinar”. O presidente deve ter se confundido. O decreto com a proibição havia sido publicado naquela manhã e trazia sua assinatura.

Às vezes, é difícil saber se Bolsonaro está só mentindo ou se não tem a menor ideia do que está fazendo. Ao dizer que não havia assinado um despacho que já estava no Diário Oficial, o presidente fica dividido entre o atrevimento de ludibriar seus próprios eleitores e a total falta de competência para exercer o cargo.

Além de enganar a população, Bolsonaro já mostrou que elabora seu discurso e toma decisões a partir de um pacote de informações falsas ou distorcidas. A qualidade dessas bobagens é tão baixa que ajuda a reforçar a incapacidade do próprio governo.

Míriam Leitão - O inverno do capitão

- O Globo

Em um ano e meio, o governo parou a educação, destruiu o meio ambiente, isolou o Brasil e fez uma tragédia na saúde. Até aqui, fracassou

O governo Bolsonaro fracassou. Um ano e meio depois, o Ministério da Educação recomeça pela terceira vez e agora fala em Estado laico, a Saúde está cercada de mortos de uma pandemia que não sabe enfrentar, na política externa o Brasil virou um país pária, a agricultura paga a conta dos crimes no meio ambiente. A ideia de governar com truques na mídia social terminou em páginas desativadas e uma investigação no Supremo. A economia não entregou o que prometeu e vive agora das promessas do ministro que declama as mesmas histórias sem relação com os fatos e números. E os militares? Ah, os militares são um caso à parte.

Oficiais generais se deixaram usar por um ex-militar, que nunca se destacou nas tropas, enfrentou a justiça militar por mau comportamento e teve uma carreira medíocre como deputado. Hoje estão no pior dos mundos: as tropas executam com denodo as missões recebidas, mas os comandos as colocaram como sócias de um desastre. As Forças Armadas jamais poderiam ter se misturado a um governo que fomenta o ódio e a divisão do país. Elas pertencem ao Estado, têm compromisso com a união, e recuperavam o prestígio perdido na ditadura. Hoje voltam a sofrer desgaste e deveriam ouvir as palavras fortes do ministro Gilmar Mendes como conselho para que batam em retirada.

Vinicius Torres Freire - A vida política no eclipse do Brasil

- Folha de S. Paulo

O obscurantismo é, por enquanto, o movimento social mais forte

Nada de relevante vai acontecer na economia até que saibamos do ritmo da despiora. Pouco vamos saber da despiora até que se conheça o efeito do fim dos auxílios e socorros, mais de meio trilhão de reais, a partir de setembro e olhe lá.

Em si mesmas, uma despiora lentíssima ou uma recaída não provocam efeito político imediato, se algum. Por exemplo, Jair Bolsonaro se cansar de Paulo Guedes ou sua popularidade baixar aos 10%.

Não há oposição do establishment a Guedes. É improvável que militares ou pastores digam outra coisa no ouvido do seu capitão, os donos do dinheiro grosso muito menos, mesmo que o ministro dê mais foras. O Congresso está aí para entregar uma cesta básica de reformas e segurar as pontas de Guedes, a não ser em caso de revolta popular. No mais, a política segue nas sombras do eclipse do Brasil.

O fato político novo mais relevante na epidemia foi o auxílio emergencial. Evitou a derrocada final do prestígio de Bolsonaro, saques, tumultos, ruína ainda maior e lançou um debate que envolve da esquerda à extrema direita. Ideias socioeconômicas alternativas não têm apelo ou estão em quarentena. Se der certo, a renda básica será conveniente para Bolsonaro, tudo mais constante.

O fato político imediatamente mais relevante foi a ameaça de cadeia para o bolsonarismo, cortesia de processos no Supremo (fake news, comícios golpistas) e do pretérito mais do que presente dos Bolsonaros (Queiroz e milícias). A gente se cansou de usar o termo, mas isso é política judicializada. Não para por aí.

Celso Ming - O governo quer taxar o comércio eletrônico

- O Estado de S.Paulo

Esse novo imposto digital será fonte de enormes encrencas

O ministro da Economia, Paulo Guedes, nunca escondeu, e agora menos ainda, que prepara a criação de um novo imposto, que não seria mais a volta da CPMF, motivo de repulsa instantânea do Congresso e da sociedade, mas o que chama de taxação do “comércio eletrônico”.

Para dar a essa nova garfada uma embalagem aceitável e não mais a de um imposto em cascata, que é proibido pela Constituição, avisa que não haverá aumento da carga tributária, mas apenas a substituição dos encargos sociais sobre a folha de pagamentos (desoneração) por um tributo de base mais ampla, com o objetivo de criar os empregos que estão desaparecendo pelos altos custos trabalhistas.

E, como a enfermeira que tenta encorajar uma criança apavorada pela injeção iminente, o ministro adianta que é uma picadinha de nada: “É só uma alíquota pequenininha, de apenas 0,2%”. A gente já conhece essa história de alíquota pequenininha que, lá pelas tantas, vira grandona, como com a CPMF. Independentemente do tamanho da picadinha, o ministro reconhece que seu potencial arrecadador é enorme: mais de R$ 100 bilhões por ano. (Só para comparar, a CPMF arrecadava pouco mais de R$ 40 bilhões.)

Até agora, ninguém fora da equipe econômica sabe o que seria esse novo imposto. Não foi divulgado nenhum anteprojeto. As declarações fragmentadas de Paulo Guedes sobre o assunto escondem até mesmo o principal.

Dorrit Harazim - Fresta aberta

- O Globo

Saber, curiosidade e humanidade podem emergir após pandemia

Da cidade de Wuhan, onde nasceu, cresceu e escapou o novo coronavírus, os relatos que conseguem driblar a censura do regime chinês ainda são esparsos e picados. Talvez sejam necessárias mais algumas gerações até que se consiga historiar como a Covid-19 transformou aquela cidade em laboratório humano. Mas de Bergamo e comunas vizinhas na Lombardia, berço e epicentro da mortandade na Europa, os relatos de terra arrasada transbordam à medida em que a vida, ali, retoma seu curso. Ou o que dela restou. O repórter Eric Jozsef, do diário francês “Libération”, fez um dos apanhados mais impactantes do que foi aquele manto da morte sobre Bergamo. Diante da escalada pandêmica cada vez mais abstrata, por incompreensível e incerta — 14 milhões de infectados globais, Estados Unidos apontando para 150 mil mortos, Brasil ultrapassando 2 milhões de contaminados —, vale retornar ao horror concreto de menos de 5 meses atrás.

Na próspera Bergamo de 120 mil habitantes, os fornos crematórios não davam conta do fluxo de mortos. Três semanas após o registro do primeiro infectado no país, um comboio de caminhões militares atravessou as ruas desertas da cidade transportando dezenas de caixões para serem incinerados em outros burgos. Foi apenas o primeiro de 45 comboios noturnos semelhantes. Ao longo de 40 dias houve um enterro a cada 30 minutos. Ao todo foram 6 mil, muitos deles sacrificados em função da idade ou do estado de saúde. A jornalista local testemunha: “Houve dias em que parecia haver um atirador de metralhadora disparando a esmo”. A enfermeira não esquece: “Os olhos dos moribundos pareciam lhes saltar da órbita, como se o vírus estivesse ali. Era o olhar da morte”. O pároco relembra: “Tivemos de interromper o tocar de sinos por um mês, tantos eram os mortos”. O septuagenário que perdeu 3 irmãos em duas semanas sentencia: “Eram tantos avisos de óbito que eles passaram a ocupar os painéis publicitários. Uma geração inteira desapareceu”.

A urna e o mandato – Editorial | O Estado de S. Paulo

A escolha de bons prefeitos e de bons vereadores, que sejam verdadeiramente honestos e competentes, pode proporcionar efetiva melhoria da administração pública, bem como da própria política

As eleições municipais deste ano podem fazer uma enorme diferença na vida de cada cidade – e isso não é uma afirmação fútil. A escolha de bons prefeitos e de bons vereadores, que sejam verdadeiramente honestos e competentes, pode proporcionar uma efetiva melhoria da administração pública, bem como da própria política estadual e nacional. Além de ser a porta de entrada da carreira política, a esfera municipal tem enorme impacto na vida de cada cidadão.

Mas seria utópico pensar que basta escolher bons candidatos nos dias 15 e 29 de novembro, datas do primeiro e do segundo turnos, para que, por exemplo, a administração da cidade melhore ou o planejamento urbano seja realizado de forma competente e responsável. O voto consciente é um passo necessário, mas não suficiente para que a política realize o interesse público. É preciso assegurar que as promessas de campanha se tornem compromissos efetivos com o cidadão ao longo dos quatro anos de mandato. E isso se consegue mediante acompanhamento e cobrança do eleitor.

A urna é o grande meio de que os cidadãos dispõem para a renovação da vida pública. Mas quando se pensa que o exercício dos direitos políticos se esgota no voto, até a urna se torna disfuncional, fazendo com que a política esteja orientada para o bem do cidadão apenas durante a campanha eleitoral. Trata-se de um grave problema, a merecer reflexão.

Justiça sem censura – Editorial | Folha de S. Paulo

A chamada cultura do cancelamento empobrece e dispensa ditador contra expressão

Como a perpetuação da vida na Terra se beneficia da diversidade das espécies, a prosperidade material e espiritual da humanidade é favorecida pela pluralidade de ideias e pontos de vista em intercâmbio e entrechoque na sociedade.

Apesar de cristalina na teoria, a garantia à plena liberdade de expressar o pensamento, que decorre daquela premissa, levou muitos séculos para tornar-se prática consagrada numa parte das nações.

Isso porque ela colide com o que vai no âmago do ser humano: quase ninguém gosta de ver-se exposto à crítica, muito menos se ela for ácida. Poderosos, sem os contrapesos institucionais das modernas arquiteturas políticas, tendem a estrangulá-la e a adotar formas veladas ou explícitas de censura.

Se foi longo e acidentado o caminho até o regime em que um indivíduo não teme ser reprimido por suas ideias, também não é sem esforço a manutenção do statu quo.

Alavanca providencial para o crescimento – Editorial | O Globo

Novo marco do saneamento pode funcionar como um dos motores da expansão da economia pós-Covid-19

A sanção pelo presidente Bolsonaro do novo marco do saneamento básico não é uma ato meramente burocrático perdido no noticiário do drama de milhares de mortos pela Covid-19, milhões de desempregados e da crise política. Na verdade, trata-se de um fato que, em meio a todos os problemas, é parte de um conjunto de ações capazes de levar a melhorias substanciais em campos variados, na economia e na área social: saúde, educação, padrão de vida etc.

O chavão do “país dos contrastes” usado para qualificar o Brasil é muito verdadeiro quando se comparam os indicadores de saneamento — água de boa qualidade, coleta e tratamento de esgotos — com segmentos modernos do país. Indústrias de elevada tecnologia e instituições financeiras sofisticadas convivem com um sistema de água e esgoto em parte estacionado no século XIX, mesmo em grandes cidades. O país com uma das dez economias do mundo deixa 35 milhões de sua população (16,5% do total de 211 milhões) sem água tratada e 100 milhões (47%) sem coleta de esgoto.

Enfim, mudanças regulatórias necessárias para impulsionar a atividade foram aprovadas pelo Congresso e sancionadas, mesmo com muito atraso, devido a todo tipo de resistência política e corporativista surgida em torno das estatais que exploram mal o serviço, mas desejam manter este rentável cartório para funcionários das empresas e políticos que orbitam neste meio.

Música | Dorival Caymmi - Marina

Poesia | Fernando Sabino - De tudo ficaram três coisas

De tudo ficaram três coisas:
A certeza de que estamos
sempre a começar...
A certeza de que é preciso continuar...
A certeza de que podemos ser interrompidos
Antes de terminar.
Por isso devemos:
Fazer da interrupção um caminho novo...
Da queda, um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro.