Aos 99 anos, autor lança 'Conhecimento, Ignorância, Mistério', em que defende a necessidade da contradição para se alcançar o conhecimento complexo
Paulo Nogueira | O Estado de S.Paulo / Aliás
E que tal um livrinho de 109 páginas, escrito por um cara de quase 100 anos, que é uma espécie de teoria de tudo, incluindo a última palavra na ciência e nas humanidades, e até na ignorância e no incognoscível? Pois Conhecimento, Ignorância, Mistério entrega tudo isso, e é uma suma do pensamento de Edgar Nahoum, aliás Edgar Morin (o codinome dele na Resistência contra os nazistas, que nunca mais abandonou).
É uma obra por vezes um tiquinho críptica. Primeiro porque os temas são complexos, e segundo porque o autor é francês. Salvo honrosas exceções (Montaigne, por exemplo), intelectual francês prefere complicar a simplificar. Aqui, só o prólogo tem dez (10!) epígrafes. Há passagens involuntariamente burlescas: “Em outras palavras, tudo que elucida se torna obscuro sem deixar de elucidar.” Ou: ”Assim, a noção de emergência fornece um esclarecimento decisivo, embora ela seja inexplicável.” Lembra aquela piada em que mostraram a um cientista francês uma máquina construída segundo suas diretrizes, e ele resmungou: “OK, funciona na prática – mas funcionará na teoria?”
Não choremos de barriga cheia: é um livrinho apaixonante. Como quase toda obra deste autor de 99 anos (que acabou um novo título, sobre a pandemia). Morin pintou e bordou sobre política (Política e Civilização), ecologia (Terra Pátria e Uma Era Ecológica), educação (Os Sete Saberes e Uma Cabeça Bem Feita), poética e afetividade (O Homem e a Morte e Amor, Poesia e Sabedoria), epistemologia (O Método) e dilemas globais (Para Sair do Século 20 e Diante do Abismo).
Sem falar em duas obras clássicas na bibliografia da sétima arte: As Estrelas e O Cinema e o Homem Imaginário. Ainda por cima, Morin tem um xodó pelo Brasil (sim, tem gosto para tudo), que considera sua segunda pátria e já visitou várias vezes – além de ter escrito um livro a quatro mãos com o líder indígena Marcos Terena.
Quase centenário, Morin adora fuçar novas fronteiras. Como a noética, que estuda os fenômenos subjetivos da mente, sob uma perspectiva científica. Daí o intrigante conceito de “qualia”, celebrizado pelo filósofo australiano David Chalmers. Ou a amortalidade, uma longevidade cada vez maior, porém sem a decrepitude da velhice, e que adia indefinidamente (mas não infinitamente) a morte. Ou seja: Matusaléns com corpichos de Peter Pans.
Na presente obra, começa-se por reconhecer a precariedade do “cognoscível”: a realidade, essa impostora. Aliás, não é de hoje: para os “Vedas”, ela não passava de “maya” (ilusão); o budismo fala em “samsara” (aparências) e Platão em “sombras”. Já a contemporaneidade chuta de vez o balde com a relatividade e a incerteza quântica. Tá puxado. Na vida cotidiana, vamos empurrando com a barriga e os absolutos newtonianos, que conferem um pouco de ordem à casa.
Morin, compatriota dos “philosophes” iluministas e ex-comunista (foi expulso do PC francês por seu anti-stalinismo), questiona tanto o fetiche da razão quanto o determinismo materialista. Um dos fundadores do Centro de Estudos Transdiciplinares de Paris (junto com o grande Stephane Lupasco), é um dos poucos intelectuais franceses transdisciplinares (a par de Michel Serres) que não é nem um cientista nem um filósofo da ciência.