O cientista político e o sociólogo divergem sobre o impeachment e as origens da crise política atual
Por Ruan de Sousa Gabriel | O Globo / Época
• A crise e as eleições por dois respeitados intelectuais brasileiros A greve dos caminhoneiros torna mais aguda a crise política que o Brasil vive?
ANDRÉ SINGER A crise que estamos vivendo agora é decorrência da ruptura inconstitucional que ocorreu em 2016. A derrubada da Dilma por um golpe parlamentar, por uma manobra, representou um esgarçamento da democracia. A fraqueza do governo Temer, que fica visível com a crise dos caminhoneiros, é consequência dessa ruptura institucional. É um governo que tem muita dificuldade para encaminhar uma solução para uma situação desta gravidade. Infelizmente, o que estamos vivendo é consequência de um conjunto de decisões muito mal encaminhadas desde aquela época. Temos de conseguir atravessar este período difícil para chegar até as próximas eleições dentro de condições normais, dentro do calendário normal e, com isso, conseguir virar essa página. A legitimidade do governo Temer é muito baixa. Portanto, ele tem muita dificuldade para solucionar situações como esta que estamos vivendo. A crise é consequência da ruptura institucional e do esgarçamento da democracia que começou a ocorrer com o impeachment da ex-presidente Dilma.
BRASILIO SALLUM Nossa democracia está em crise. Essa crise se manifestou no impeachment de Dilma e nas tentativas de impedir o presidente Temer. O exercício do poder ficou muito difícil. A situação na qual ocorreram as paralisações dos caminhoneiros já era uma situação de fragilidade. Temer não tem força para dirigir o processo. A greve dos caminhoneiros não enfraqueceu o governo. O governo já estava fraco. O Estado brasileiro não consegue definir seus rumos. Não é uma crise nova. Estamos em crise há muito tempo. O impeachment da Dilma foi uma “solução” institucional que não superou a crise. É uma crise grave, que afetou muito a organização do Estado brasileiro, deslegitimando todo o sistema político, que se assentava num solo de corrupção. A greve dos caminhoneiros revelou a fragilidade do governo, as dificuldades do governo para exercer autoridade. Mas tudo isso já vem de muito tempo.
• Foi golpe?
AS Foi golpe. É preciso reconhecer que a Constituição prevê o impeachment, mas exige a comprovação de crime de responsabilidade, o que jamais ficou demonstrado. Logo depois da reeleição de Dilma, diversas forças políticas, como o PSDB, começaram a questionar a legitimidade da presidente. Nos bastidores, Eduardo Cunha começou a trabalhar para que a presidente não concluísse seu mandato. E a extrema-direita começou a fazer manifestações pelo impeachment imediatamente, uma pauta que, na época, ninguém assumia. Até o PSDB era crítico da ideia de um impeachment sem base. Essa falta de embasamento jurídico persistiu. O impeachment de Dilma claramente não se sustenta do ponto de vista legal. É por isso que eu afirmo que, sim, houve um golpe parlamentar.
BS Não foi golpe. O termo “golpe parlamentar” é uma figura de retórica que foi utilizada por quem perdeu. Collor também falava em “golpe parlamentar”. Temos de reconhecer o valor das regras democráticas. Os perdedores da disputa democrática não devem desqualificar as regras. Não se pode dizer que o impeachment não tem base jurídica ou que dois terços da Câmara e do Senado são golpistas porque concluíram que as pedaladas fiscais constituem crime de responsabilidade. Os perdedores podem discordar da tese, mas isso não transforma os outros em golpistas. Infelizmente, esse discurso do “golpe” se manteve, o que prejudica a democracia, pois desqualifica as regras segundo as quais vivemos. Mas, principalmente, esse discurso do “golpe” é um equívoco político tremendo porque tira do principal partido de esquerda do país a capacidade de negociar ao desqualificar seus adversários e transformá-los em inimigos.
• Por que Dilma caiu se, diferentemente do que aconteceu no impeachment de Collor, não havia um amplo consenso das forças políticas em favor de sua destituição?
AS Também por isso podemos falar em golpe. Para derrubar Dilma, formou-se uma maioria relativa para atender ao número de votos que a Constituição exige. No entanto, não se formou nenhum consenso capaz de um impedimento, ao contrário do que ocorreu na época do ex-presidente Collor. Naquela época, havia um consenso no Congresso e na sociedade de que o mandato tinha de ser interrompido porque havia crime de responsabilidade. Nada disso aconteceu agora. Repito: formou-se uma maioria relativa, mas não um consenso que garantisse, além de razões legais, bases sociais e políticas para sustentar o impedimento.
BS No impeachment de Collor, houve um consenso entre as forças políticas que tinham promovido a redemocratização e a Constituição de 1988. Essas forças políticas democratizantes se articularam numa frente para evitar que Collor atuasse antidemocraticamente. Ele agia de forma extremamente voluntarista, não seguia as regras do presidencialismo de coalizão. Collor tinha uma coalizão precária e suspeitas de corrupção pessoal. No caso de Dilma, houve uma sucessão de equívocos da presidente, que tinha uma extraordinária dificuldade de manejar o sistema político — além de uma crise econômica terrível. Nos dois casos, eram presidentes voluntaristas e incapazes de manejar as demandas do Congresso. O que torna extraordinário o impeachment de Dilma é que não havia acusação de corrupção contra ela. Ela caiu por inabilidade política.
• Qual o peso da economia na queda de Dilma?
AS Enorme. É difícil quantificar, porque também houve a Lava Jato e a formação de uma frente antirrepublicana, comandada por Eduardo Cunha e Michel Temer. Mas, claro, a economia pesou muito. A ex-presidente tomou decisões econômicas consistentes. O problema não foi de competência. Não quero dizer que não tenha havido erros técnicos, mas, sim, que houve um plano econômico defensável e consistente, que respondia às demandas dos principais setores industriais, como desvalorização do real, queda dos juros e medidas de proteção à indústria. A nova matriz econômica era consistente, mas perdeu o apoio dos industriais. Dilma fez tudo isso para alavancar o investimento industrial, mas os empresários começaram a reclamar que o governo era muito intervencionista. Mas o governo intervinha em favor da indústria. Há um paradoxo político aí. De fato, em meados do primeiro mandato, Dilma perdeu uma base de apoio fundamental e não conseguiu se recuperar dessa perda.
BS Tremendo. Houve a junção de duas coisas: crise econômica e suspeita de corrupção. O ritmo da economia caiu violentamente a partir de 2014. A crise, combinada à percepção de corrupção no governo petista, criou um mal-estar que justificou a paulatina oposição dos empresários, que, inicialmente, apoiavam Dilma.
• Houve sete impeachments na América Latina entre 1992 e 2015. Esse número elevado contribui para a instabilidade das democracias da região?
AS O impeachment é um recurso constitucional para ser usado muito raramente. Na América Latina, o impeachment está se tornando uma espécie de semiparlamentarismo. Governos muito fracos são interrompidos, o que é um recurso típico de regimes parlamentaristas. Nestes, os governos caem quando não têm mais maioria parlamentar. Mas, na América Latina, não há parlamentarismo, e sim presidencialismo. Esse uso do impeachment é uma completa distorção de sua finalidade.
BS As democracias latino-americanos têm demonstrado extraordinária resistência. Os governos civis se mantiveram. Nos últimos 30 anos, os principais países do continente têm apresentado crescimento econômico medíocre se comparado ao desenvolvimento econômico pujante que ocorreu entre os anos 1930 e 1980. Depois dos anos 1980, houve uma queda assustadora do ritmo de crescimento. Nesse contexto de pobreza relativa, a preservação das regras democráticas é positiva. As quedas de presidentes simplesmente atestam que um presidente não pode governar de forma voluntariosa. Quando um presidente ultrapassa certos limites, ele não se sustenta mais. Ou se sustenta apenas na base da opressão.