O Congresso ontem nos proporcionou dois exemplos de como em política é sempre arriscado dizer que este ou aquele grupo está previamente derrotado ou, ao contrário, que alguém já ganhou de véspera uma disputa. O governo tem uma base política invejável tanto na Câmara quanto no Senado, uma maioria que ronda os 70%.
No entanto, teve de ceder em duas votações importantes: na Câmara, derrotado pela própria base parlamentar na votação do Código Florestal, e no Senado, tendo que negociar na CCJ uma proposta oposicionista que limita a edição de medidas provisórias.
A votação do novo Código Florestal é exemplar para mostrar que a tão propalada maioria da base governista no Congresso na verdade não existe.
A última negociação liberou, contra a vontade do governo, os proprietários com menos de quatro módulos fiscais de reflorestar reserva legal. O líder do governo discordou, mas o governo foi derrotado por sua própria maioria.
A CCJ do Senado, por sua vez, aprovou, contra o voto do líder do governo, José Pimentel, uma proposta de emenda constitucional que altera a tramitação das medidas provisória.
A proposta prevê que uma comissão permanente mista de deputados e senadores examine em dez dias a MP, podendo decidir pela transformação em projeto de lei, fazendo com que ela perca sua eficácia imediata caso considere que o assunto tratado não é urgente nem relevante, ou devolver a MP se ela tratar de mais de um assunto, como vem sendo feito, contra legislação já existente.
Os dois casos representam situações políticas diferentes. No caso do Código Florestal, o governo não teve maioria para impor à sua base conservadora sua orientação, que era basicamente a posição do PT. E nem mesmo ao relator, o deputado Aldo Rebelo, do PCdoB. Deu-se a união improvável entre a bancada ruralista e o partido que representa a extrema esquerda na política brasileira a favor da produção, mas também contra a hegemonia do PT.
Já no caso das MPs, mesmo o governo querendo matar a proposta do senador Aécio Neves na raiz, não conseguiu fazer valer sua maioria na CCJ, porque falou mais alto a necessidade dos senadores de valorizar a atividade parlamentar, tão desgastada atualmente. Ou, em alguns casos, a vontade de dificultar a atuação do governo para valorizar seu apoio.
A base governista no Congresso é fragmentada e heterogênea, e mais ainda após o surgimento do PSD, que, mesmo antes de existir, já engrossa potencialmente essa base. A senadora Kátia Abreu, provável futura presidente do novo partido, hoje negocia os interesses dos grandes produtores rurais de dentro da base governista, ou muito mais próxima dela do que quando estava no DEM.
Vários dos partidos que formam esse arco amplíssimo, que vai da direita — com o PP e o PR — à extrema esquerda — com o PCdoB —, estão ali por razões puramente pragmáticas, o mesmo pragmatismo que fez com que o governo Lula os abrigasse em sua base e o de Dilma ampliasse o número de partidos aliados.
O controle dos partidos através da distribuição de cargos e de métodos mais radicais como o mensalão neutraliza a ação congressual, permitindo a formação de aliança política tão homogênea quanto amorfa com partidos que em comum têm só o apetite pelos benefícios que possam obter apoiando o governo da ocasião.
A situação faz com que a maioria governista seja apenas virtual, a ser montada a cada votação.
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Na coluna de ontem, "A cabeça de Obama", não devo ter deixado claro, por algumas mensagens que recebi — poucas, é verdade, diante do grau de polêmica que envolve o caso —, que o ideal seria que se pudesse seguir os preceitos legais no caso de Osama bin Laden, mas a situação era atípica, e os riscos eram enormes.
Uma das mensagens, do advogado Ian Muniz, abordava especificamente o princípio do "devido processo legal", "inserido na 14 Emenda à Constituição dos Estados Unidos da América, é um princípio universal de direito, que nenhuma nação dita civilizada pode prescindir. Nenhum ser humano (não importa quão odioso) será condenado sem o devido processo legal, incluso direito de plena defesa".
"Cabe lembrar que tal princípio foi inserido no direito americano em 1868, logo após a Guerra Civil, como dispositivo para assegurar que nenhum ser humano (não importa se negro ou branco) será privado da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal".
"Assim, sustentar que o princípio somente se aplica a cidadãos e não a seres humanos é totalmente equivocado.
Esse é um princípio que faz a diferença entre a barbárie e a civilização, e não podemos transigir com o mesmo".
A tese é boa, mas insisto que a situação peculiar e o risco real de uma reação suicida não permitiriam margem de manobra aos militares americanos, embora houvesse advogados a bordo de um navio para o caso de Bin Laden ser preso com vida, o que indica que matá-lo não era a única alternativa.
O jurista alemão Günter Jakobs é o autor da teoria do Direito Penal do Inimigo, que após os ataques terroristas de 11 de Setembro ganhou força em contraposição ao Direito Penal do Cidadão, com as garantias clássicas. Pela teoria, o inimigo é quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias de que vai continuar seguindo as normas legais.
O jurista se utiliza de preceitos filosóficos para embasar sua tese, como o pensamento de Rousseau, segundo quem, ao infringir o contrato social, o inimigo deixa de ser membro do Estado, está em guerra contra ele; logo, deve morrer como tal; ou Fichte, que diz que quem abandona o contrato do cidadão perde todos os seus direitos; ou Kant, para o qual, quem ameaça constantemente a sociedade e o Estado, quem não aceita o "estado comunitário-legal", deve ser tratado como inimigo.
O inimigo, para Jakobs, não pode contar com direitos processuais. Contra ele não se justifica um procedimento legal, mas de guerra, pois do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas.
FONTE: O GLOBO