Site Gramsci e o Brasil, Maio 2020
Deixemos de pensar que a espantosa recessão que nos acometeu é só o fruto da pandemia e do Cisne Negro que atormenta este infeliz 2020. Não é assim: a queda do ciclo econômico é, antes de tudo, o resultado da inadequação com que foi enfrentada a crise mundial anterior, a de 2007-2008, quando se evitou discutir as origens da crise e as incoerências do modelo de desenvolvimento, que agora novamente apresentam a conta. É o que afirma com paixão, nesta entrevista a FIRSTonline, Beppe Vacca, que não é economista, mas filósofo da política, ex-deputado do PCI e ex-presidente do Instituto Gramsci, e que, como intelectual de primeira linha que é, está acostumado a pensar alto e a buscar o sentido geral dos diversos aspectos que compõem a realidade e, sobretudo, a não encerrá-la nos estreitos limites domésticos. A pandemia e a crise econômica não podem ser interpretadas só segundo esquemas nacionais, assim como é ilusório pensar num novo “milagre econômico” em termos só italianos. Para compreender o que está realmente acontecendo, é preciso abrir as janelas sobre o mundo, compreender que a Itália enfrenta o verdadeiro desafio na Europa e que é inútil colocar objetivos excessivamente ambiciosos, porque o governo Conte 2 é “uma coalizão de emergência, não uma aliança reformadora”. Refundar o nosso sistema econômico é certamente necessário, mas não agora. Mas eis como Vacca vê a situação que estamos vivendo, ecoando o que escreveu há alguns meses no seu novo livro O desafio de Gorbachev. Guerra e paz na era global (Ed. Salerno).
• Professor Vacca, se a Fase 1 da situação de emergência coronavírus e a Fase 2 do recomeço foram muito difíceis, não menos problemática se anuncia a Fase 3 da retomada econômica: há quem fale de reconstrução da Itália diante de uma recessão epocal, mas, visto que não crescemos há mais de vinte anos, não acredita que seja o momento de elevar as expectativas e visar a uma verdadeira refundação do nosso sistema econômico? Mas em que bases?
Esta pandemia tem um caráter global e, portanto, não consigo imaginar a retomada da economia italiana prescindindo da evolução da pandemia em escala mundial. Aprendendo com a experiência chinesa, em todos os países atingidos as medidas adotadas até agora são medidas de contenção da infecção, não de neutralização do vírus, como se prevê que acontecerá com a descoberta de uma vacina apropriada e sua aplicação na população mundial. Um período de alguns anos, dizem os especialistas. Se a contenção da epidemia na Itália se revelar eficaz, serão mitigadas e a seguir eliminadas as medidas de isolamento, bloqueio das atividades, da circulação, etc. A economia, como se costuma dizer, será desbloqueada; mas não poderemos relançar e muito menos “refundar” o sistema econômico sem considerar a evolução da crise econômica mundial. O tema é amplo demais para abordá-lo aqui. Para mim, bastaria que se deixasse de atribuir a crise econômica mundial à pandemia. Os 25% de desempregos a mais nos Estados Unidos, em um mês, não são só o efeito da pandemia, da ignorância e da demora com que foi enfrentada por Trump. Desde quando houve a “retomada” da economia americana graças às medidas financeiras adotadas em 2008, esperava-se para a primavera deste ano uma nova queda do ciclo econômico mundial devido, antes de tudo, ao fato de que os meios com os quais se deteve a crise de 2007-2008 repropunham o mesmo modelo de desenvolvimento da década precedente, que gerara a grande crise do subprime.
• Franco Amatori, o historiador da economia, escreveu recentemente aqui mesmo em FIRSTonline, que a Itália precisaria do seu terceiro milagre econômico depois daqueles do início do século XX e do boom entre os anos 1950 e 1960, mas, para ter a expectativa de um novo milagre, seria preciso um New Deal ou, pelo menos, uma ideia geral do futuro da Itália cuja sombra não se vê: na sua opinião, como se pode preencher um déficit cultural e político deste tipo?
Concordo com o professor Amatori na invocação de um New Deal e vejo com uma ponta de otimismo que, na reconstrução da coalizão Democrática para as próximas eleições presidenciais americanas de novembro, despontem sinais rooseveltianos. Além disso, o impacto da pandemia e da crise global está relegitimando, quase por toda parte, os modelos da economia mista demonizados nos últimos 40 anos. Mas pensar num novo “milagre econômico” não me parece realista em termos puramente nacionais. O “milagre italiano” há 60 anos se verificou no contexto da regulação da economia mundial baseada no padrão dólar, no Plano Marshall e no compromisso dos Estados Unidos de recolocar em pé a Itália, com o fim de conter a presença das potências coloniais europeias, França e Grã-Bretanha, no Mediterrâneo. Nada deste tipo está à vista hoje. A narrativa global proposta pelos Estados Unidos é a de uma nova guerra fria com a China. É uma narrativa enganadora. A guerra fria dos anos 1950 nasceu da convergência das duas maiores potências pós-bélicas (USA e URSS) para tentar reduzir a uma regulação bipolar um sistema mundial de relações internacionais já então tendencialmente multipolar. No mundo multipolar e interdependente de hoje, o esquema da guerra fria não pode ser proposto. Os desafios entre os grandes players globais devem ser encarados por meio da cooperação multilateral, senão cresce a tentação de uma guerra mundial, que talvez a Covid-19 tenha por ora afastado. De todo modo, antes de falar do mundo, deveríamos olhar para a União Europeia, quando menos porque é a dimensão em que a Itália pode renascer, com seus parceiros iniciais, ou afundar com eles e mais do que com eles.